Estive num funeral na passada quarta-feira. Deus chamou o João David Santos, com quem cresci em acampamentos e encontros baptistas. Conhecíamo-nos pelo menos desde 1989. Não termos sido amigos próximos não me impediu de tantas vezes me sentir inspirado pelo exemplo do João David. Ele era daquelas pessoas que muda o ambiente com a alegria. A força da sua presença nem era tanto pelas graças que dizia, mas pela graça que trazia. Quando o João David chegava, chegava a alegria com ele.
Lembro duas ocasiões: em meados dos anos 90, no Acampamento Baptista em Água de Madeiros, São Pedro de Moel, o João David fez uma imitação do João Baião numa tarde de jogos e teatro (as desejadas “tardes sociais”) que se tornou de antologia. Imaginem mais de uma centena de jovens a rir a bom rir com uma versão evangélica do Big Show Sic. Tive a oportunidade de conhecer, anos mais tarde, o João Baião num programa da RTP. Pessoalmente ele corresponde à melhor imagem que sugere na TV: é mesmo um exemplo de boa disposição e boa educação—atenciosíssimo. Mas, para ser sincero, o João David ainda era um João Baião melhor do que o próprio João Baião.
Recentemente, o João David tornou-se o responsável por esse mesmo Acampamento Baptista. Em mensagens sucessivas de WhatsApp relatava cada novo projecto, cada nova obra, cada nova iniciativa. Com ritmos comunicativos assim, muitas vezes somos tentados a silenciar as notificações, como se fossem spam informativo. Mas, por alguma razão, até quando era institucional (e o João David conseguia ser muito institucional), ele era inspirador. Como é que se consegue uma combinação destas? Deus tinha dado ao João essa mistura improvável de protocolo e profusão—era um exuberante executivo.
No início de Abril uma tosse mais persistente levou-o à terrível notícia de um cancro irreversível. Menos de um mês depois, foi ter com Deus. Os baptistas todos e outros evangélicos caíram em peso na Terceira Igreja Baptista de Lisboa para se despedirem do corpo do João David. Cantámos bem, chorámos bem, convivemos bem também (porque os funerais têm o condão de juntar um povo). Foi um funeral, e graças à fé do João David, foi também uma festa.
À noite fui ao concerto do meu amigo Jorge Cruz, no Teatro Maria Matos. Cheio. Tenho cada vez menos vontade de ir a concertos, talvez porque, por alguma razão que não compreendo totalmente, sinto que a música me atinge mais quando a ouço sem a mediação do artista a tocá-la para mim. Nos últimos anos não tenho pica para shows e, sobretudo, irritam-me as cerimónias do palco, que sinto serem fajutas substituições do púlpito (meaning: a minha maior fruição musical ao vivo está hoje na Igreja mesmo, e raramente fora dela—estou mesmo a envelhecer). Acontece que o Jorge não é um artista qualquer e não é um amigo qualquer. Neste regresso aos palcos, meia década depois do seu tempo com Diabo na Cruz, tinha de estar lá.
E lá estava, eu e a minha família. A festa musical do Jorge foi tão ou mais significativa porque ele fez questão de apresentar canções novas que têm sombras. Quem ouviu a sua banda antiga, campeã do arraial nacional em modo rock, prepara-se agora para uma viagem diferente (até quando as velhas canções são tocadas de um modo distinto). As luzes estão no palco mas as canções em cima dele não se desembaraçam da penumbra. Foi um concerto inesquecível onde a festa implicou o Jorge também partilhar momentos que não estão para ela. Este Cruz vai onde o Diabo, com todo o talento que tinha, não chegou.
Num só dia um funeral deu-me festa e uma festa deu-me funeral. Não se censura o primeiro por não ser totalmente solene nem o segundo por ser algo sombrio. Pelo contrário: saí dos dois com muito mais do que quando entrei. Do primeiro amigo, o João David, despedi-me crendo que quando o reencontrar a alegria vai ser sem fim; o segundo amigo, o Jorge, abracei porque até a tristeza que sabe pôr em canção faz parte da mesma decisão pela alegria que enche palcos até quando estamos neles sozinhos. Haja festa no funeral e funeral na festa.