Um Inquérito às Competências dos Adultos, a cargo da OCDE, mostra que quase metade dos portugueses só compreende “textos curtos e listas organizadas”. Quanto a números, 40% dos nossos compatriotas ficam-se pelos redondinhos, sem casas decimais, e são capazes de realizar operações desde que estas consistam em adicionar e subtrair quantidades pequenas. Não fossem os chilenos, que pelos vistos rivalizam em destreza mental com uma bigorna, seríamos os últimos entre os 31 países estudados. Ainda assim, temos cepos para dar e, se cepos maiores caírem na trapaça, vender.

Suspeito que boa parte dos cepos anda pelas televisões a comentar coisas, e a parte restante a ouvi-los. Voluntariamente desprovido da caixa que descodifica aquilo, não tenho acesso directo a canais. O Twitter, porém, faz o favor não requisitado de me enriquecer com uma amostra do que por aí vai, e a cada dia sou agraciado com vídeos, abençoadamente curtos, de novos sujeitos e sujeitas, irremediavelmente ridículos, a falar acerca de assuntos que não dominam com uma autoridade que não possuem. Escusam de me esclarecer que sou livre de não “abrir” os vídeos em questão: eu sei. Sucede que o pervertido em mim gosta de assistir a um certo tipo de desastres. É o tipo de deplorável prazer que senti ao ler – sim, confesso – a autobiografia de Zezé Camarinha. E comparado com a vastíssima maioria dos comentadores televisivos, Zezé Camarinha era um portento de lucidez.

Antigamente, digamos há vinte anos, teríamos por junto uma ou duas dúzias de comentadores televisivos, bons, sofríveis, maus e péssimos. Hoje, devem ser centenas, quase todos para lá de inacreditáveis. Excepto pelas relíquias, estilo Paulo Portas e Marques Mendes, e aqueles com quem me relaciono pessoal ou profissionalmente (não por coincidência os únicos decentes), não conheço nenhum. Aos poucos, vou reconhecendo alguns.

Não lhes retenho os nomes. Retenho o descaramento com que partilham alucinações, em geral alinhadas com o “zeitgeist” e as respectivas direcções de informação. Em vez de tentarem explicar – e, já agora, perceber – os factos, a regra é torcerem-nos até os factos se adequarem aos seus desejos. “Wishful thinking”, portanto, método que, em matéria de eficácia, está para a análise da actualidade como o candomblé para a chuva.

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Dias antes das eleições americanas, vi, na Sic Notícias, um jovem que parecia saído dos velhos filmes da Hammer “provar” com satisfação que Trump atingira o seu máximo nas intenções de voto enquanto Kamala apenas poderia crescer, circunstâncias que cabalmente previam a espectacular vitória – da candidata que perdeu por larga margem. Que eu saiba, o jovem continua a ser chamado aos estúdios a fim de iluminar as massas, as massas com QI similar ao dele. E o mesmo, no mesmo canal, acontece à senhora que descreveu o ataque do Irão a Israel com “mísseis basílicos”. Ou, na RTP, à jurista com empatia pelos Taliban e por assassinos de gestores de empresas. Os exemplos de burlesco, ou balístico, abasteceriam dezoito crónicas.

Onde desenterram esta gente? Uns nas universidades, dos outros não faço ideia. Porque desenterram esta gente? Aqui tenho uma teoria, que se subdivide em duas: em primeiro lugar, porque sai barato. Descontada a CMTV, que não finge ser “séria” e enche manhãs, tardes e noites com conversa igualmente baratinha sobre fofocas, “dramas do quotidiano” e bola, consta que as demais estações, RTP incluída, acumulam prejuízos imensos. Despachar horas e horas de emissão com palpiteiros obscuros, que cobram pouco ou nada, é uma maneira racional de tentar controlar os gastos. Lembro que, a acreditar na OCDE, 60% dos portugueses consegue fazer contas. Basta que um desses cidadãos integre a administração dos canais para defender a proliferação dos palpiteiros e introduzir certa moderação económica na “grelha” (é verdade que não tem resultado, talvez porque os administradores que não conseguem fazer contas asseguram a subida incessante do passivo). Palpiteiros, movidos por uns trocos ou pela vaidade inerente a “aparecer na tv” (juro!), não faltam. O público não abunda, mas uma população repleta de analfabetos funcionais assegura os mínimos.

Eis a minha segunda teoria: o “superavit” de comentadores sem aptidões nem interesse garante a apetecida escassez de pensamento próprio. Salvo por uns generais que, sem acertarem uma, são algo excêntricos à ortodoxia em temas bélicos, as hordas de “especialistas” falham de mãos dadas com o discurso dominante nos temas que calhar. Ou seja, funcionam em rigorosa sintonia com os clichés da época, que reproduzem com a convicção dos simples. Para os donos e os editores das televisões, que por lastro ideológico ou receio de comprometer subsídios estatais não apreciam dissidências, é muito agradável que 98,7% (pronto, fintem a vírgula e arredondem para 99%) da opinião reproduzida caiba na distância que vai do “Acção Socialista” ao “Esquerda.net”. Ou do lobo frontal ao lobo occipital do eng. Guterres.

Isto é grave? Ora essa: a gravidade da situação, à semelhança da da Lua, roça o zero (1,62 m/s², mas quis evitar vírgulas e gatafunhos). Os moços e moças (de recados) discorrem em circuito fechado, um mundo a brincar para eles e para os que neles reparam. No mundo a sério, não incomodam ou influenciam vivalma. Principalmente não beliscam a realidade, indiferente e teimosa rumo a um futuro que, como o passado, será pródigo em maravilhas e horrores. Mas que, em princípio, não incluirá a Sic Notícias.