Experiência política, europeia e técnica não falta à equipa escolhida por Luís Montenegro. Embora seja um Governo em que a componente política é forte, naturalmente pela minoria que tem, mas, mais importante ainda, pelo novo mapa parlamentar com um peso substancial do Chega, foi possível conciliar as três componentes. A questão é que os principais problemas, que explicam em parte os resultados eleitorais conhecidos, exigem tempo que é o que a AD não tem, e arte e engenho que vamos ver se tem.

Não é a atirar dinheiro que se vão resolver aqueles que são os problemas mais profundos que hoje as comunidades enfrentam, como o sentimento de distanciamento e abandono relativamente ao seu quotidiano feito que questões concretas, como a habitação, os transportes, a saúde, a educação, a instabilidade e até insegurança nos sítios onde vivem e aonde vêm chegar pessoas que não compreendem e são vistas como lhes tirando a casa, o infantário e o espaço público.

Claro que o Governo vai ter de cumprir o que prometeu aos professores e aos polícias em primeiro lugar. Mas também aos funcionários judiciais, aos médicos e aos enfermeiros e até aos militares. Não há dinheiro para tudo, até porque temos uma dívida para pagar que, nunca se sabe, pode ser repentinamente vista como excessiva por quem nos empresta o dinheiro – já nos aconteceu em 2011. Mas também porque as contas públicas vão ser pressionadas agora também pelo ambiente de pré-guerra, como alertou o primeiro-ministro polaco. Por muito que se considere retrógrado e que o  Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), liderado pelo general Nunes da Fonseca, venha dizer que tal não pode ser visto numa “lógica redutora”, o tema do serviço militar obrigatório vai reforçar-se. Certo é que vamos ter de investir mais na Defesa, seja na contratação seja em equipamento, existindo obviamente menos dinheiro para outros objetivos de política.

O dinheiro, de qualquer forma, não vai garantir a conquista do coração dos portugueses, como aliás as eleições mostraram. Se houve tempo de distribuição de dinheiro foi o que vivemos desde a pandemia e não foi isso que garantiu a vitória do PS. Sim, é verdade que os socialistas tinham outro líder e só especulativamente se pode afirmar que António Costa teria o mesmo resultado. Mas nem que seja pela votação no partido de protesto anti-sistema, percebe-se que não é pelo “bodo aos pobres” que se consegue garantir a sobrevivência dos partidos tradicionais do regime.

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Vale muito a pena ler a análise de João Marecos com o título “Chega: nem carinho nem pancada”, em que olha para as explicações ligadas à literacia e à polarização, mas também para a falta de confiança nas instituições e a exclusão social. Nenhuma destes problemas consegue ser resolvido com rapidez, embora se possa começar a dar-lhes mais atenção do que aquela que mereceram até agora. Quer Luís Montenegro como Pedro Nuno Santos mostraram, durante a campanha eleitoral que conheciam minimamente a realidade que alguns portugueses enfrentam e que explica a revolta ou irritação que manifestaram nas eleições.

Um dos problemas que tem de ser enfrentado é sem dúvida o da imigração, sem complexos nem medo de se ser acusado de xenófobo ou racista. A situação em que vivem algumas comunidades reúne condições para gerar sentimentos anti-imigração – se é que já não gerou -, que só são prejudiciais para um país como o nosso, envelhecido e sem mão de obra disponível para algumas actividades.

Retroceder na política de imigração adoptada por António Costa, passando para uma actuação mais coordenada com as associações empresariais e as autarquias locais na atracção de pessoas, é um elemento fundamental. Ninguém ganha, nem os próprios imigrantes, em atrair pessoas que depois não têm emprego e são vítimas fáceis de traficantes. É até uma questão de humanidade, de respeito para com quem procura uma vida melhor. Paralelamente é preciso, com as autarquias, atacar o problema que já existe, de alojamento e falta de integração dos imigrantes. E não vale a pena fazer rusgas que só servem para a propaganda, já que não resolvem problema nenhum.

Temos depois o problema da falta de habitação. Primeiro é preciso reconhecer que as políticas de visto gold e regimes especiais de impostos para não residentes criaram pressão sobre a procura e orientaram a oferta para esses segmentos de mercado. Também aqui não vale a pena andar a apresentar percentagens para cada um dos segmentos para se dizer que não pesam nada, é preciso somar tudo. Aqui podemos encontrar maior resistência do Governo, mas era fundamental que se atacasses este problema que António Costa só enfrentou de forma envergonhada e como mais propaganda do que acção. Os regimes especiais de impostos criam igualmente um sentimento de injustiça que só não é maior porque boa parte das pessoas os desconhece – a falta de literacia joga aqui a favor do incumbente.

Nas políticas sociais é preciso perceber como é que se consegue mitigar o sentimento de injustiça de quem precisa e não consegue apoios ou uma casa do Estado e as vê entregues em geral à comunidade cigana ou até a imigrantes que, claro, também precisam. É preciso ter coragem de dizer as coisas, sem medo, porque só identificando os problemas os podemos resolver antes que eles nos afundem. É preciso ter uma política social mais pro-activa, mais virada para retirar as pessoas da pobreza. E é preciso olhar para os idosos com pensões baixas, área esta que faz parte da proposta da AD.

Na Saúde temos de começar a resolver o problema do SNS, sem juras de paixão, mas com soluções práticas que coloquem o cidadão no centro das preocupações, em vez de estarmos a discutir modelos. E é recomendável que não se destrua o trabalho feito, mesmo que aqui ou além não se concorde com ele. Tem de se reorganizar o SNS, contar com todo o sistema e valorizar os profissionais de saúde, melhorando salários, mas também e especialmente as condições de trabalho com investimento que tem faltado.

Na Educação e no Ensino Superior temos de regressar a padrões de exigência, dar poder aos professores e recuperar o seu estatuto não apenas remuneratório. Se houvesse tempo, muito havia a fazer para ajustar a educação às exigências dos novos tempos. em que saber aprender é fundamental. Mas já seria bom se conseguíssemos começar a recuperar a qualidade da escola pública e criar uma tendência de regresso a ela dos filhos das elites.

Temos depois a Justiça, uma das áreas que mais tem contribuído para o descrédito das instituições, com todos nós a assistirmos a julgamentos na praça pública de figuras com relevo na política e no mundo das empresas, sem que se concluam julgamentos. Vive-se aqui o pior dos mundos, com os arguidos a terem a sua vida no mínimo abalada e com a comunidade a encontrar, naquilo a que assiste, razões para alimentar a desconfiança de conluios entre as elites.

Trabalho não falta ao Governo de Luís Montenegro, tenha ele energia e especialmente coragem para escolher as melhores soluções para os problemas e não as politicamente correctas. Muitos destes problemas levam tempo a resolver-se, mas podem ter abordagens que não exigem leis, porque essas existem até em demasia. Precisamos é de governantes que conheçam o país em que vivem, o que realmente preocupa os cidadãos, em vez de se concentrarem na propaganda ou em jogos de poder.

Apesar da minoria, apesar do mapa parlamentar que existe, é possível uma abordagem mais realista e menos politiqueira dos problemas. Para no mínimo iniciar um caminho para os resolver. Se os governantes e deputados dos dois principais partidos, PS e PSD, que nos acompanharam nestes 50 anos de democracia, não se aproximarem mais das pessoas é uma questão de tempo até deixarem de ser relevantes. Os partidos também morrem.

Nota: Estarei sem escrever no Observador durante o mês de Abril, mas atenta ao que por aqui se vai passando. Regresso a 30 de Abril.