À semelhança de Assim falava Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, Lança o teu pão sobre as águas (sobre o Qohélet / Ecclesiastes), a última obra da filósofa Maria Filomena Molder, recentemente dada à estampa nas Edições do Saguão, é um livro para todos e um livro para ninguém. Não porque Maria Filomena Molder (MFM), à maneira do «cabeça de dinamite», nome que o pensador alemão deu a si mesmo, aspire neste seu trabalho a uma qualquer «filologia do futuro», mas apenas porque a decifração de Qohélet não lhe permite desembaraçar-se das «questões de filologia», título do primeiro capítulo e mote recorrente em toda a obra. Por filologia entende-se aqui uma espécie de – exactíssima e subtilíssima formulação – «fisiologia que vem da relação entre a boca e a palavra que está a ser dita» (p. 42), e que a autora  considera «a maneira mais elevada de responder às perguntas sobre o quê e o como da vida» (p. 136).

Comparando e manipulando algumas das melhores traduções contemporâneas de Qohélet, e consciente de que as bicudas questões de tradução que o poema levanta remetem inevitavelmente para os problemas da sua decifração, MFM avisa: «Qohélet não foi escrito para ser comentado por filósofos ou teólogos, mas para ser decifrado» (p. 24).

Qohélet, que na tradução grega da Bíblia Hebraica, chamada Septuaginta, passou a ser conhecido como Eclesiastes, termo que a Vulgata consagrou, é um  poema sapiencial escrito por um anónimo na chamada época helenística, provavelmente no século III a.C., fortemente marcado pela cultura e filosofia gregas que então imperavam na Judeia. O seu autor é um anónimo que  mediante um extraordinário artificio retórico se apresenta a si mesmo como «filho de David, rei de Israel em Jerusalém». Qohélet, portanto, é um pseudo-Salomão – com tudo o que a figura bíblica de Salomão, protótipo do sábio (Hakam) e patrono da sabedoria para os hebreus, significa: o sábio que teima em não se deixar enganar. «A sabedoria de Qohélet é a sabedoria da lucidez que faz enlouquecer» (p. 180).

Apesar do carácter desconcertante do seu ensino, ou por causa dele, Qohélet pertence a um corpo de manuscritos a cujo complexo os cabalistas medievais hebreus chamaram Clavicula Salomonis. Se acrescentarmos que em latim clavícula significa «pequena chave», e que em anatomia clavícula é o nome do osso que no esqueleto humano liga os membros superiores ao tronco, torna-se mais fácil perceber a analogia entre a chave que abre a sabedoria de Salomão e a raiz hebraica QaHaL, que contém o acto de ligar, juntar, reunir, congregar. Qohélet é o sábio que reúne a assembleia ou a congregação e que, tomando a palavra, se dirige a ela com palavras que ferem e fustigam, com palavras que são como «aguilhões e pregos bem pregados, para por elas sermos ensinados e doutrinados» (Eclesiastes, cap. XII, versão de Damião de Góis, Veneza, 1538).

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A palavra de Qohélet é látego, chicote, azorrague. Ela é sempre a palavra inclemente e desassombrada de um parresiasta, nome que a cultura da época helenística (332-143 a. C.) dá ao orador que usa da parrésia (παρρησία), termo grego que significa falar com franqueza e coragem, sem recuar diante de nada, sem esconder nada, sem medo de nada.Qohélet diz e rediz aquela verdade dolorosa e inaceitável que fere o tímpano da assembleia, sem dissimulação nem reserva, sem cláusula de estilo nem ornamento retórico que a possa cifrar, velar ou mascarar. Qohélet é aquele que tem a coragem de dizer a verdade lúcida, a verdade que dói e a verdade que magoa, à assembleia, desfazendo e anulando todas as ilusões da comunidade. A sua palavra é uma contra-lisonja e o seu saber é duro, implacável, cruel, mas, por isso mesmo, tanto mais necessário: o homem nada sabe, e quanto mais julga que sabe tanto mais sofre; tudo perece, e a morte a todos iguala, o rico como o pobre, o justo como o injusto, o belo como o feio.

«Nada de novo debaixo do sol», repete Qohélet. «Fumo de fumos, disse Qohélet, fumo de fumos, tudo é fumo». Na versão da Biblia de Ferrara (1553), também conhecida como a «bíblia dos marranos» da Península Ibérica, lê-se, numa tradução, sem dúvida, ousada e invulgar: «Nada de nadas, disse Qohélet, nada de nadas, tudo é nada».

É extraordinário. Não é por acaso que MFM nos recorda que Qohélet «é um escrito de um homem» (p. 17). «Como sabemos, quem fala é um homem (um homem que gosta de mulheres)» (p. 30). Com efeito, aquele que a si mesmo chama Qohélet é um homem velho, talvez mesmo um homem muito velho. Em todo o caso, o autor de Qohélet é necessariamente um homem, pois, pergunta MFM, «que mulher diria: “Nada de novo sob o sol”? Um filho é sempre uma coisa nova sob o sol» (p. 17).

«Sou mulher e tinha que terçar armas com o Qohélet até poder chegar a um entendimento (condicionado) com ele»  (p. 142). E é precisamente com armas de mulher, e com armas de mãe, que MFM nos guia pelos lacónicos versículos do poema.

Mas, o homem que afirma (sempre no português renascentista de Damião de Góis): «achei ser a mulher mais amarga e pior que a morte, a qual é como laço dos caçadores, e seu coração é rede, e suas mãos cadeias», é exactamente o mesmo homem que uns passos adiante ordena: «goza, e deleita tua vida com a mulher a que queres bem, todos os dias que te são concedidos viveres, e que te são dados debaixo do sol».

O sermonismo intransigente e radical de Qohélet, que não vê senão fumo e vacuidade nas acções dos homens e que grita e chora de raiva pela condenação de viver, não o impede, antes pelo contrário, de se comprazer com o nascer-do-sol e com o pôr-do-sol. Aprovando furiosamente a vida – e não tentando corrigi-la. «Nada de novo debaixo do sol» é uma injunção que o próprio Qohélet suspende e infirma sempre que ele segue os sobressaltos do seu coração, o verdadeiro órgão de conhecimento do homem: «A oposição entre a mulher como “mais amarga que a morte” e  o prazer de se viver com a mulher que se ama, tudo isso provém da lucidez de se ver e não afastar o olhar, cuja sede é o coração» (p. 75).

Profundamente anti-idolátrico, Qohélet sabe muito bem que Deus é absolutamente inacessível, que Deus permanece obstinadamente oculto e que ele é verdadeiramente insondável. Edmond Jabès, poeta de língua francesa e incansável leitor dos livros sapienciais da Bíblia Hebraica, formulou como porventura ninguém esta dissemelhança abissal entre Deus e o homem: «Não é a imagem que é objecto de interdição divina; mas a semelhança que toda a imagem inaugura. “Deus quer-Se sem frente-a-frente”».

Qohélet fareja a morte e a precariedade da vida do homem por todo o lado. E, no entanto, não é por isso que ele deixa de aprovar e exaltar a vida – aqui e agora. E podemos aquilatar da  incredulidade radical face à imortalidade e espiritualidade da alma numa pregnante imagem do cap. IX do poema: «Não há ninguém que sempre viva, nem que se possa nisso fiar, pelo que é melhor um cão vivo que um leão morto». Não há em Qohélet rigorosamente nenhuma diferença entre homens e animais, sujeitos uns e outros ao poder da morte e ao esquecimento. Este mote foi glosado até à exaustão na tradição averroísta, e em particular na tradição marrana: «neste mundo não há mais que nascer e morrer; não há outro paraíso»; «não há paraíso ou glória para os bons, nem inferno para os maus, não há mais do que nascer e morrer», «neste mundo não me verás mal passar, que no outro não me verás penar», e assim por diante. É por isso que o homem velho que toma a palavra no Qohélet avisa a assembleia reunida de que a ânsia de conhecer é um drama inglório e um excesso inútil. É também por isso que ele aconselha o jovem a ser jovem – e não velho – quando é jovem e enquanto é jovem: «Alegra-te, portanto, tu ó mancebo, em tua mocidade, e dá teu coração a deleites e passatempos nos dias de tua mancebia… Tira a ira de teu coração, e arranca a maldade de tua carne: que a mancebia, viço e deleitações não são senão vaidades».

«Lança teu pão sobre as águas correntes, porque depois de muitos tempos o acharás» –  eis a fórmula e a senha da sabedoria calma de Qohélet.

Até aqui, limitei-me a parafrasear alguns tópicos da imensa riqueza da reflexão de Maria Filomena Molder em torno do Qohélet / Ecclesiastes. Mas basta. Uma vez aqui chegado, chegou a hora de o potencial leitor da obra se aliviar rapidamente desta enxúndia de palavras e enfrentar, de olhos bem abertos, o livro da filósofa, que fala por si mesmo e não necessita de intérpretes.

Uma última coisa. O capítulo III de Qohélet (Ecclesiastes), o mais conhecido e glosado, é porventura um dos melhores poemas sobre o tempo alguma vez escritos. Todo o leitor conhece pelo menos os seus primeiros versículos: «Todas as cousas têm seu certo tempo, e todas passam debaixo do céu por seus espaços. Tempo de nascer, e tempo de morrer. Tempo de plantar, e tempo de arrancar o plantado. Tempo de matar, e tempo de sarar. Tempo de destruir, e tempo de edificar. Tempo de chorar, e tempo de rir. Tempo de adquirir, e tempo de perder. Tempo de guardar, e tempo de despender. Tempo de talhar, e tempo de coser. Tempo de falar, e tempo de calar», etc., etc., etc.

«Há um tempo para tudo» tornou-se hoje numa frase de tal modo vulgarizada, abusada e esvaziada de um sentido concreto e palpável, que é possível que já não estejamos em condições de verdadeiramente a compreender.

Uma coisa é certa: sabemos agora a razão por que que estávamos obrigados a esperar pela velhice da filósofa Maria Filomena Molder para podermos gozar de um livro como este. «Há um tempo para tudo».

Contra todas as evidências históricas e documentais, não é um simples acaso se alguma tradição rabínica atribui ainda hoje a Qohélet a antiguidade do próprio Salomão. Salomão teria escrito o Cântico dos Cânticos quando era jovem, os Provérbios na idade madura, e Qohélet quando era um ancião. Porque, como se diz no Midrash, quando o homem é jovem, canta; quando é adulto, pronuncia as suas máximas; e, à medida que vai envelhecendo, fala da vacuidade das coisas.

«Há um tempo para tudo». Um tempo para escrever este livro, e um tempo para ler este livro. Esse tempo é agora. Efectivamente, só a velhice, com a sabedoria e o desprendimento que ela pode trazer – «lança o teu pão sobre as águas, porque depois de muito tempo o acharás»…» – nos poderia entregar uma reflexão deste calibre, reflectida numa prosa pensativa com um fôlego ímpar e um ritmo poderoso, que proíbem qualquer desatenção a um leitor comprometido. Com mão de tecelã e uma forte resistência ao emprego profissionalizante de vocabulário técnico filosófico, Maria Filomena Molder conduz habilmente o leitor através dos apertados nós que enlaçam o tecido rugoso de Qohélet. A autora apresenta-nos a sua tarefa como um paciente e demorado trabalho de «decifração», sujeito sempre a embates inesperados, que são, aliás, todo o sal e pimenta desta obra. Nada de palavreado vão. Porque também elas, sobretudo elas, as palavras professorais, são “fumo de fumos”, “névoa de nada”, “vaidade de vaidades”. Asseio e frugalidade na palavra, portanto. Ascese da palavra que é aqui condição sine qua non da ascese do pensamento.

É esse o convite, é esse o desafio, é esse o pão que a filósofa lança ao leitor.