Ao contrário do que podemos imaginar, o alargamento do direito de voto foi verdadeiramente revolucionário. Perante os apelos da mais elementar justiça, os receios eram variados: desde o desaparecimento de uma sociedade hierarquizada ao fim da ordem estabelecida; da degenerescência da cultura à perda da estabilidade social, fio condutor de uma vivência harmoniosa. Para os mais cépticos, as elites seriam postas em xeque e o Estado a ser governado por brutos. Já no século XX, a guerra 14-18 pareceu comprovar essa fatalidade e boa parte das boas consciências desejaram uma mão forte no Estado que impusesse a ordem. Não haveria outro caminho. O liberalismo estava morto e devia ser enterrado o quanto antes.

É claro que nada disto aconteceu. Passaram 100 anos e as elites continuam e até se diversificaram. Umas são políticas, outras de pendor económico, cultural e até existe uma elite social sem qualquer influência nas anteriores. Pertencer a uma não pressupõe fazer parte de outra. Ademais, qualquer pessoa pode integrar-se naquela em que mais se revê, desde que faça por isso. O conceito distendeu-se e perdeu a rigidez de outrora. Mas a ordem continua tal como antes. Tal como a produção cultural, que se desenvolveu e que deu origem a correntes e formas de expressar inimagináveis. Olhar hoje para os receios de há um século leva-nos a pensar como seria ‘se tivessem dado um tempo ao tempo’, embora seja fácil à distância, pois o que temos actualmente se deve (e foi conseguido) à custa dos erros e sucessos do passado.

A verdade é que os críticos alertaram para perigos que acabaram por suceder. Foi o custo que implicou ultrapassar e vencer esses perigos que os tornaram supérfluos.

Dos avisos dessa época à democracia liberal há um que renasceu. É o que via no alargamento do direito de voto para todos, o risco de os políticos venderem os serviços do Estado ao melhor preço. Em troca de votos, a promessa de uma vida cujos problemas seriam relegados para um segundo plano, ou simplesmente para um futuro longínquo. Edmund Fawcett (Conservatism – The Fight for a Tradition) descreve muito bem este alerta de alguns conservadores de então, com uns a defenderem o capitalismo contra a democracia enquanto outros a deixarem-se cair no totalitarismo político e social, para o qual a economia passaria a trabalhar. Os primeiros temiam que a democracia pusesse em causa a eficiência dos mercados e, em última instância, o funcionamento das próprias instituições liberais. A pressão da maioria por melhores condições de vida que, depois de alcançadas, exigiria mais e mais e reduziria o desígnio do Estado a essa satisfação sem fim. No seu entender, qualquer entrave à revolta das massas seria afastado e os equilíbrios, a própria separação de poderes, os freios constitucionais, as mais elementares regras do Estado de direito, postos de parte. Este receio foi a seu tempo vencido com a vitória dos moderados e a descredibilização dos extremistas. Pela tomada de consciência que as conquistas sociais, para se manterem e até se alargarem, não podem colocar em causa as democráticas e as políticas. O meio termo tem de ser mantido. Nesse sentido, a alternância no poder foi vista como natural e desejável. Parece algo longínquo, mas ainda me recordo dos políticos portugueses, independentemente se venciam ou se perdiam, mencionarem a alternância democrática nos seus discursos das noites eleitorais.

Este receio está a tornar-se uma das maiores preocupações políticas desde que o PS utiliza o Estado (e os fundos dos contribuintes e da UE) para satisfazer clientelas eleitorais. É a certeza de terem boa parte do eleitorado na mão que lhes permite não dialogarem com as forças políticas moderadas e até anunciarem que a direita nunca mais volta a governar. Para o PS, a democracia deixou de representar uma alternância pacífica de poder, mas reduziu-se a ganhar eleições com fundos públicos e europeus. O risco é incomensurável porque é a própria democracia que deixa de funcionar. A somar-se a isto, a economia perde eficiência, o crescimento económico torna-se uma miragem e a estagnação política, económica, social e cultural toma conta do país. A frustração ganha forma e as vozes populistas, força. A curto prazo são sinais positivos para o PS. À la longue, um grande problema para todos, inclusive para os socialistas mais novos que vão ter um dilema em mãos e que deviam pensar duas vezes antes de aplaudirem a genialidade táctica de António Costa.

A democracia liberal ultrapassou vários desafios e não tenho dúvidas que este também. Mas para que isso aconteça há entendimentos que temos de alcançar. Um é o limite constitucional ao endividamento público. Outro a reforma do sistema eleitoral que faça valer em deputados os perto de 700 mil votos que se perdem nos círculos fora das grandes cidades. Para tal, o primeiro passo seria o reconhecimento pelos próprios socialistas que o caminho por eles trilhado não tem futuro. Para o país, para a democracia e nem sequer para o próprio PS.

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