Perorei aqui algumas vezes sobre matérias de polícias, muitas delas extrapoláveis para o resto da administração pública. Fi-lo de um ponto de vista essencialmente prático, tentando avaliar as situações não na forma, mas pelos resultados: o seu impacto nos cidadãos, destinatários finais de toda a acção da administração pública.

Por razões várias, tinha decidido arrumar definitivamente as botas de comentador, mas este artigo, de pessoa por quem nutro profunda consideração e respeito, faz-me vir novamente a campo.

Faço-o, para tentar demonstrar a seguinte tese, que reconheço herética e já aflorei em anteriores escritos: a maioria das disfuncionalidades da administração pública portuguesa resulta do peso excessivo que a cultura, tradição e classe jurídicas nela têm.

Vou-me socorrer da descrição de alguma factualidade que, por muito absurda que seja, peço ao leitor que a não veja como ficção, pois retrata situações reais.

Na segunda metade da década de 70, um Café nos arredores de Lisboa é assaltado. Quem o faz, parte o vidro da montra, entrando por aí no estabelecimento, de onde retira 23 maços de tabaco de marcas diversas, cerca de duzentos escudos em moedas (dinheiro para trocos que se encontrava na gaveta – aberta – da caixa registadora) e bebe uma garrafa de Sumol (ananás) que retira do frigorífico. Era isto o essencial da informação que constava do auto de notícia elaborado pela equipa do piquete da Polícia Judiciária que se deslocou ao local e que foi complementada pelas declarações prestadas pela proprietária do Café. Situou a ocorrência entre as 01:00 horas (quando o marido fechou o estabelecimento) e as 07:00 (quando ela o abriu), avaliou os prejuízos (furto mais danos) em dois contos de réis e, embora desconfiasse de uns malandros que por lá paravam, não apontou quaisquer suspeitos em concreto.

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O agente titular do processo, que lavrou em auto estas declarações, colheu junto do Gabinete de Identificação e Pesquisas a informação “a qualidade dos vestígios lofoscópicos colhidos no local do crime não era de molde a permitir a identificação de quem os terá produzido”, que fez constar em “cota”,  e juntou uma terceira folha ao processo (pré-impressa, fornecida pela secção de reprografia), onde constava:

Relatório Final

Exmº Senhor Inspector da __ Secção                            

Não obstante as diligências levadas a cabo no âmbito dos presentes autos, não foi possível, até à data, carrear para eles indícios que permitissem identificar o(s) autore(s) dos factos denunciados.

Assim, ouso sugerir a V. Exª que sejam tais autos arquivados a aguardar a produção de melhor prova.

O Agente

As três folhas – auto de notícia, auto de declarações e relatório final -, devidamente encapadas, numeradas e rubricadas constituíam o Processo nº x/78 que foi objecto da atenção do inspector, que nele lavrou o seguinte despacho: “Concordo. Arquive-se”, despacho a que o agente titular deu o devido andamento, averbando assim mais um processo à sua estatística mensal, estatística esta (de procedimentos, repare-se, que não de resultados) que está na base da brilhante carreira que prosseguiu na secção de furto, embora não haja memória de alguma vez ter recuperado algum objecto furtado ou identificado, quanto mais detido, algum autor de furto.

Seria de esperar que esta história, já bem recheada de absurdo, terminasse aqui. Mas não.

Dois meses após o primeiro, a dona do Café recebeu novo aviso-convocatória para ir à PJ tratar de assunto do seu interesse. Apanharam os malandros, pensou, e lá foi, toda contente, recuperar o que lhe tinham tirado.

Estranhou ser outra a sala e ser outra a pessoa que a atendeu. E mais estranhou quando lhe voltaram com a ladainha da primeira vez, ao que disse que “já tinha respondido a isso tudo” e disse onde e a quem. Confirmado que assim era, foi-lhe pedida desculpa e mandada embora.

O que aconteceu: a PJ era, à época, a única entidade com capacidade técnica para fazer exames de perícia criminalística. As vítimas contactavam normalmente a esquadra local da PSP, que “tomava conta da ocorrência”, comunicando-a ao piquete da PJ e elaborando também o respectivo auto (não era só na PJ que se vivia de estatísticas) que remetia ao tribunal da Comarca. Aqui, depois de registado como processo, o MP mandava remetê-lo à PJ, entidade competente para a investigação. Foi o que aconteceu com a dona do Café, que foi chamada segunda vez à PJ para prestar declarações no âmbito do Processo nº y/78, irmão gémeo do x/78. E, devido à indefinição da divisão das competências territoriais nas áreas suburbanas entre PSP e GNR, havia quem tivesse ainda mais azar que a dona do Café e fosse chamado três vezes: no processo x, gerado pela PJ, no y, pela PSP e no z, pela GNR (e todos contavam para as estatísticas, claro…).

Este absurdo durou anos e anos, prejudicou imensa gente e desbaratou recursos. Não beliscava quaisquer normas legais e convivia pacificamente com a constante violação de elementares normas de boa gestão e organização e, até, de bom senso. Houve várias tentativas para o emendar, mas estavam condenadas ao fracasso porque as várias camadas de juristas responsáveis, salvo poucas mas muito honrosas excepções, não vendo nele qualquer vício legal na forma, não curavam da substância. E, claro, em 1978 nenhum jornal titulava “Cidadã Ucraniana chamada três vezes à Polícia Judiciária para nada” nem a BBC informava o mundo “Lisbon’s police instead of solving cases annoys citizens”.

Como passei muitos anos a virar frangos destes, tenho de fazer um grande esforço para não atafulhar o leitor com mais exemplos. Só acrescento que estudei mais Direito durante o tempo em que, como dirigente de um organismo da administração pública, tinha de contrariar os pareceres do respectivo Gabinete Jurídico, que durante o percurso da respectiva licenciatura.

Porque este é um dos bloqueamentos do secular modelo organizativo da nossa administração pública. As principais decisões são tomados nos gabinetes jurídicos. Formalmente, a responsabilidade é de quem assina a decisão. Mas, entre um “Visto. Concordo” e um “Pesem, embora, as razões aduzidas neste douto parecer, entendo…” e desmontar toda a argumentação e decidir em sentido contrário ao proposto, vai uma enorme distância que só pode ser percorrida por quem saiba e se queira dar ao trabalho.

Foram os bacharéis do séc. XIX, saídos de Coimbra, e os licenciados do séc. XX, saídos de Coimbra e Lisboa, que formataram a administração pública que ainda hoje temos. Foi um modelo que terá tido o seu tempo; a sua época de ouro, até; muitos desses bacharéis e licenciados terão sido figuras de inquestionável gabarito intelectual. As taras organizacionais e funcionais sempre lá estiveram (como estão em todas as organizações). O que mudou foi o ritmo e a escala. Porque está cada vez maior, mais obesa, é-lhe cada vez mais difícil acompanhar o ritmo das mudanças sociais e tecnológicas. E a maior dimensão, ao torná-la mais visível, torna-lhe as taras mais evidentes e frequentes. Nada que não se tenha já visto noutras paragens. O que é raro ver noutras paragens é esta banalização das taras administrativas, que só faz delas notícia quando têm dimensão política e internacional. Às taras do dia-a-dia já ninguém liga. E isso é que me parece preocupante, porque não se vai resolver despejando-lhe legislação em cima, que é a única receita que tem sido seguida.

O que é que tudo isto tem a ver com o artigo invocado como motivação?

No tocante às flagrantes violações do Regime de Protecção de Dados e às atinentes responsabilidades não poderia estar mais de acordo com o autor.

O meu ponto é que a jusante do plano da produção normativa e do exercício de funções judiciais e jurisdicionais, o “estilo jurídico” – permitam-me que, por facilidade, designe assim o “caldo de cultura” que marcou indelevelmente  as sucessivas gerações que passaram pelas nossas faculdades de direito e, dentro delas, sobretudo aqueles sectores pouco dados à aprendizagem ao longo da vida e que, por isso, cristalizaram no que lá aprenderam e preenchem o grosso dos quadros superiores da Administração Pública –  o “estilo jurídico”, dizia, não é o mais adequado, hoje em dia, para conduzir  grandes organizações. E o que a C.M.L. nos mostrou não terá resultado de qualquer intenção deliberada de fornecer dados pessoais fosse a quem fosse, tal como há 40 anos ninguém tinha a intenção de prejudicar a dona do Café. Esta, então, e os manifestantes, hoje, são sobretudo vítimas da nossa pujante burocracia: uma perfeita harmonia entre um topo que não se quer chatear e uma base que também não se quer chatear e quer trepar; onde nada funciona mas tudo vai andando. E só abana quando fica à mostra, porque enquanto os vícios forem privados, em público são só virtudes.

Claro que o caso do Café assaltado nos anos 70 e o atropelo de direitos praticado na CML divergem substancialmente. No primeiro, a legalidade foi respeitada, no segundo, não. No entanto, em ambos houve cidadãos prejudicados, vítimas de uma burocracia que, agindo legal ou ilegalmente, é sempre obtusa e danosa. Donde, a necessidade de ir além da dimensão jurídica.