De fora é difícil apercebermo-nos dele.

Sempre existiu. Mas seja porque há menos lugares disponíveis, porque a desfaçatez vai aumentando ou o pudor diminuindo, a endogamia administrativa é uma tendência manifestamente em alta, susceptível  de tornar ainda mais gravosas as consequências de outra tendência dominante: o incremento do estatismo.

Para além dos casos em que a comunhão onomástica deixa rasto – o nepotismo às escâncaras – há imensos em que a relação é de afinidade, parentesco afastado, amizade, ou “empenho” e aí, no nepotismo oculto, só quando a relação laboral estiver consolidada é que se poderá vir a saber, porque normalmente as ajudas não se ficam pelo empurrão inicial e acabam por dar nas vistas.

As panaceias correntes para os males da administração pública — leis, regulamentos, pareceres, despachos … — não conseguem aliviar os sintomas, quanto mais curar a maleita.

E, convenhamos, não é só por causa da já amplamente demonstrada incapacidade da abordagem meramente jurídica para a resolver que ela persiste. O problema não é fácil. É escorregadio, como o podem ser os seus afins corrupção, tráfico de influências e peculato. Efectivamente, João, lá por ser filho do Senhor Director (ou da Dona Etelvina do Economato, para o caso tanto faz) não pode ser impedido de concorrer e, concorrendo, não poderá ser prejudicado por esses laços familiares.

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Esta constatação leva muita gente a entender que se, por exemplo, neste concurso público 10 dos 211 candidatos que constam da lista de classificação final forem familiares de funcionários desse serviço, tal não belisca a probidade de quem quer que seja que tenha estado envolvido no processo de selecção e recrutamento, nem pode pôr em causa a lisura de tal processo. O gabinete jurídico lá estará para produzir quantos pareceres forem necessários à garantia de uma e outra coisa. Se não chegarem, a Auditoria Jurídica do Ministério obrará os que faltarem.

Juridicamente, pode-se tentar distorcer a realidade. Matematicamente não.

A população empregada portuguesa rondará os 4 800 000 indivíduos. Este Serviço terá à volta de 1600 funcionários o que representa 0,033% desta população empregada. Num modelo em que ninguém fosse prejudicado mas também ninguém fosse beneficiado, seria de esperar que no universo dos 211 candidatos aprovados o número dos que têm relações com funcionários do Serviço estivesse alinhado com o peso relativo destes no universo da população empregada: os tais meros 0,033%.

Não neste exemplo. A percentagem de familiares de funcionários do Serviço será de 4,74%, 143 vezes superior à dos que só têm laços com os restantes 99,97% da população empregada.

Logo, podemos dizer que temos aqui um nepotismo factor 143, o que sendo uma dimensão suficientemente grande para que não se continue a assobiar para o lado parece não incomodar ninguém. Nem dirigentes, nem tutela,  nem sindicatos. Não vêm? Não querem ver? Ou também lá têm parentes, afins, amigos e empenhos?

Sugestão: em vez de hipócritas e bacocas provas de selecção [1], com o seu indecoroso cortejo de reclamações e recursos, façam-se sorteios após uma triagem assente em critérios objectivos — idade, habilitações literárias, condições físicas e psicológicas.

Polícia aposentado, antigo Inspector-Geral das Actividades Económicas (1998/2001)

[1]   Sobre o bacoquismo atente-se nas três densas páginas por onde se desdobra o pt. 9 -Legislação e bibliografia – do aviso de abertura do concurso.