Rui Rio ganhou e ganhou bem as directas no PSD. Será o próximo presidente do partido. Mas o caminho que terá de percorrer para ganhar as eleições de 2019 é muito mais complexo e cheio de obstáculos do que esta corrida onde só teve de enfrentar um candidato de 25ª hora, Pedro Santana Lopes.

Mas porventura mais do que ganhar as eleições em 2019, Rui Rio devia ter como ambição ser o rosto do país que não se reconhece no Portugal que temos e, por inerência, não se reconhece num governo da geringonça que governa para clientelas eleitorais e para deixar tudo como está – ou ainda pior do que está. Isso significa que tem de ser o rosto não apenas da alternativa “às esquerdas”, mas ser alternativa ao PS – seja esse PS o de António Costa ou outro qualquer.

Dir-se-á: tudo isto é tão óbvio que nem merece discussão. E perguntar-se-á: não é exactamente isso que Rui Rio pretende?

Aqui é que está o ponto: não sei e duvido que alguém saiba. Primeiro, porque o candidato optou por ser deliberadamente vago na sua plataforma de candidatura, fugindo a definir políticas alternativas para Portugal. Não concordo mas, hoje por hoje, esse nem o problema principal.

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O problema principal surgiu quando Rui Rio admitiu poder vir a apoiar um governo minoritário do PS e tomou forma esta segunda-feira quando Manuela Ferreira Leite veio defender essa estratégia como correspondendo a um necessário movimento de “vender a alma ao diabo”.

Durante a campanha para as directas discutiu-se a oportunidade das palavras de Rui Rio: afinal que líder é este que já está a fazer cenários de derrota? É uma crítica que faz sentido mas peca por limitada. Assim como é limitada a observação de que esse gesto de aparente “abertura política” poderia corresponder tão somente a uma tábua de salvação para um líder derrotado nas urnas mas salvo por levar o seu partido de regresso à casa do poder. Contudo, em vez destes debates mais “táticos” e politiqueiros, o que se devia realmente discutir é o retrato mais global e interrogarmo-nos sobre que líder é este que parece não ter entendido o que mudou na política portuguesa com a geringonça, porque é isso que está em causa.

Mas nada como citar Manuela Ferreira Leite para compreender melhor o vício de um raciocínio que a antiga presidente do PSD parece partilhar do o futuro presidente. Eis o que ela disse na TSF: “Da mesma forma que o Bloco de Esquerda e o PCP têm vendido a alma ao diabo, exclusivamente com o objetivo de pôr a direita na rua, eu acho que ao PSD lhe fica muito bem se vender a alma ao diabo para pôr a esquerda na rua“.

Há vários problemas nesta frase e o mais óbvio é ela colocar o PSD no mesmo patamar do PCP e do Bloco de Esquerda. Mas não é o mais grave. O mais grave é assumir que o PS passa a ser o partido central da democracia portuguesa, um partido que pode tranquilamente gerir as suas passagens pelo poder – virtualmente eternas – com alianças à esquerda e à direita, conforme soprem os ventos do dia. Já vários notaram – nomeadamente aqui e aqui – que isso poderá conduzir a um processo de rápida redução do papel do PSD ao de um SPD português, isto é, à sua progressiva erosão e transformação no satélite de um partido maior, com a diferença que em Portugal o PS de Costa desempenharia o lugar de partido-pivot que na Alemanha é ocupado pela CDU/CSU de Merkel.

Pior: esta forma de olhar para o xadrez político e para as possíveis coligações de Governo passa ao lado daquilo que estes últimos anos tornaram cristalinamente evidente: sem ambição de chegar à maioria absoluta sozinho ou em coligação com o CDS (o seu parceiro mais natural), nunca o PSD poderá ambicionar voltar a governar o país.

Eu sei que, olhando para a história da nossa democracia com frieza, devíamos já saber que a direita só governa se tiver maioria no parlamento. Foi assim logo em 1979 com Sá Carneiro, o primeiro a ter uma clara consciência dessa realidade quando formou a primeira AD. Foi assim com as maiorias absolutas de Cavaco Silva, foi assim com Durão Barroso em 2002 e Passos Coelho em 2011. Só não foi assim em 1985 com o primeiro governo de Cavaco Silva mas apenas porque então existia no parlamento um partido centrista que teve vida efémera, o PRD inspirado por Ramalho Eanes.

Isto significa que o líder do PSD só pode ambicionar a maioria absoluta, não lhe chega eleger o maior grupo parlamentar como Passos Coelho conseguiu eleger. Qualquer ilusão a esse respeito desfez-se em 2015 e não se pense que a convergência das esquerdas foi um fenómeno irrepetível, pois não só a convergência à esquerda está na natureza do actual PS, como a aproximação ao PS é o destino natural de partidos como o Bloco.

Só que há um outro ponto fulcral – o mais fulcral de todos – que impede o PSD de olhar para uma coligação com o PS, ou mesmo o apoio pontual a um governo socialista minoritário, como algo aceitável sem grandes estados de alma, e esse outro ponto fulcral é que a democracia portuguesa necessita de propostas políticas alternativas, claramente distintas, e não apenas de nuances que permitam às clientelas ajeitar-se a qualquer tipo de governo, desde que estejam lá. Mais: a existência dessa alternativa ficou bem clara à esquerda com a actual solução governativa, pelo que à direita não se pode pecar por omissão.

Falar de alternativa não é falar no vazio. Esta solução de governo tornou mais evidente a verdadeira natureza do PS, isto é, provou que mesmo sendo um partido preparado para cumprir com as regras europeias, até a contragosto, até escondendo os défices e os problemas debaixo do tapete, mas que em tudo o mais rema no sentido contrário de uma sociedade mais aberta, mais livre e capaz de alimentar uma economia mais competitiva e com mais ambição. O Estado e o estatismo estão e estarão sempre no coração dos socialistas, fazem parte dos seus genes, compõem o seu instinto primeiro.

O PSD de que o país precisa – ou a direita de que o país precisa, para ser mais abrangente – não é apenas a de uma versão do PS mais moderada e centrista –; o PSD de que o país precisa é um PSD que defenda as reformas que o PS nunca quis ou quererá fazer, as reformas que já foram muito parcialmente realizadas e as que estão por fazer. Mais: à direita do PS é necessário não apenas dar voz e expressão política a todos quantos não são clientes do Estado, como construir a base social de apoio indispensável às reformas que aproximem o nosso país da Europa desenvolvida e o afastem da Europa subsídio-dependente.

Durante muitos anos defendi convergências entre o PS e o PSD, defendi até o Bloco Central, em nome da necessidade de ter uma maior base de apoio para uma política reformista. Hoje não tenho ilusões: o PS nunca será o parceiro maior nesse processo. Na melhor das hipóteses pode ser um parceiro menor e por arrastamento.

Argumentar-se-á: mesmo assim não será melhor, na hora da verdade, “vender a alma ao diabo” para afastar a esquerda radical do poder? Não, não vale a pena. Mesmo nessas circunstâncias é melhor que os portugueses percebam que têm de escolher entre propostas rivais, é melhor que acabe a falácia de que há uns que “nunca governaram” e que esses também sejam julgados pelos executivos que apoiam.

Isso é mau para o país? É. Mas, não estando em causa a democracia nem a nossa integração no espaço europeu e atlântico, será ainda pior ficar tudo numas águas turvas em que todos parecerão iguais e o clima político rapidamente se tornará malsão.

Rui Rio disse nos debates que se os eleitores souberem que o PS não necessita de ter maioria absoluta para se verem livres do Bloco e do PCP isso era uma vantagem eleitoral para o seu PSD. Eu diria que aquilo que ele deve defender é que só há uma maneira de afastar realmente o Bloco e o PCP da órbita do poder, e essa maneira é dar uma maioria aos que estão à direita do PS. Caso contrário ficaremos sempre nesta papa mole onde só se movimenta com à-vontade quem não quer que nada de realmente importante mude.

PS. Não sei se Rui Rio tinha forma de ganhar o PSD sem recorrer à cacicagem do voto, como aquela que o Observador testemunhou em Ovar, promovida pelo seu chefe de campanha. Mas depois das notícias do Expresso sobre como na zona de influência desse mesmo director de campanha moravam oito militantes do PSD numa casa que já não existe, o homem que prometeu trazer uma ética nova à política podia ter discretamente evitado transformar o seu operacional numa das estrelas da noite da sua vitória. Era o mínimo.