O SNS foi erigido em cima de um modelo burocrático, processual, orientado às funções e às tarefas. É esse o modelo das administrações públicas. As tentativas de modernização de um modelo caduco, incluindo a nova gestão pública, são uma série de remendos estéticos num problema que continua a ser estrutural. Em linguagem clínica, é como limpar a ferida de uma perna gangrenada.
O problema agudiza-se com a crescente centralização do sistema: o descontrolo orçamental crónico de Portugal, sobretudo a dívida pública dos hospitais, que durante décadas esteve fora do radar das contas públicas, faz com que grande parte das decisões agora careçam de autorização do Ministério da Saúde, que é como quem diz do Ministério das Finanças. A forma que encontramos de limitar os défices dos hospitais consiste em reter os despachos na secretária no Ministro das Finanças.
Este modelo é politicamente governável, pelo menos no curto-prazo, mas é ingerível e com consequências gravosas para os utentes do SNS. Na prática, as instituições de saúde não têm os mais elementares instrumentos para uma gestão eficiente dos recursos. A aquisição de consumíveis ou de fármacos, assim como a contratualização de fornecedores, está sujeita ao Código de Contratação Pública, que teria sido redigido por Kafka fosse ele legislador (curiosamente, estudou direito). Da mesma forma, a simples contratação de um profissional de saúde é um processo moroso, que exige a anuência do Ministério da Saúde (na prática, do Ministério das Finanças), e que pode demorar um ano, quando não dois ou mais, em função do tempo que pernoitará na secretária. O recurso aos tarefeiros é assim uma inevitabilidade num sistema pesado, rígido e inflexível, em que o Estado é o alfa e o ómega, fazendo de financiador, prestador e de regulador (ordens profissionais e entidade reguladora têm um papel apesar de tudo diminuto), tudo ao mesmo tempo — e mal.
O avolumar das filas e das listas de espera para consulta de especialidade e para cirurgia são a indelével consequência deste modelo. As demissões em bloco que ocorrem um pouco por todos os hospitais do SNS são o grito de desespero. E os quatro milhões de apólices de seguro de saúde são a tábua de salvação daqueles que têm meios. A gestão pública não tem as ferramentas para diferenciar os profissionais, remunerando em função daquilo que produzem; não é capaz de dar incentivos à sua retenção; não tem a capacidade para realizar investimentos estruturais (foram necessários 12 anos para o Hospital S. João conseguir ter a sua ala pediátrica fora de contentores de 40 pés); não é capaz de motivar os profissionais de saúde. Compreensivelmente, os profissionais encontram alternativas no sector privado e até fora de Portugal. E com tudo isto, o SNS tem falhado aos utentes.
Um modelo para o futuro
Recuemos ao fundamental de um sistema nacional de saúde: que todos possam ter acesso a bons cuidados de saúde, independentemente da sua condição financeira. Que o dinheiro não seja um entrave — esta é a trave-mestra que importa preservar.
Em respeito deste princípio fundamental, torna-se claro que o Estado não tem que tentar fazer tudo, sobretudo aquilo para o qual não está habilitado. O foco do Estado deve estar, assim, no financiamento e na monitorização/auditoria, e não tanto na micro-gestão administrativa de serviços.
Neste modelo de Estado-financiador, existem dois caminhos possíveis: um similar ao actual, single-payer, em que o Estado, através dos impostos, financia e contratualiza a prestação de cuidados de saúde a hospitais públicos, privados e do sector social (similar ao que acontece com os hospitais PPP) — é o modelo do Canadá e de França, por exemplo; ou um modelo em que existem vários subsistemas (similares a seguros de saúde), que contratualizam directamente com os prestadores e que são financiados com descontos próprios ou pelo Estado, caso estejam desempregados (similar à Segurança Social) — é o modelo da Bélgica, Holanda ou Alemanha. Este segundo modelo tem a vantagem de permitir introduzir concorrência nos mecanismos de financiamento, dado que os utentes podem transitar entre subsistemas. Para ilustrar esta ideia: imagine-se que existiam várias ADSEs e que os utentes podiam escolher a que ADSE querem pertencer. O primeiro modelo seria mais fácil de implementar em Portugal, dado que não requer alterações constitucionais; o segundo é mais promissor, mas juridicamente mais complexo.
Em termos do modelo de prestação, e ao contrário dos mitos criados, uma reforma profunda do SNS não implica a sua privatização. Implica, sim, que os organismos fiquem dotados dos meios e dos incentivos para uma gestão racional e eficiente dos recursos. A nível dos cuidados primários, a criação das Unidades de Saúde Familiar modelo B e modelo C permitem, por um lado, incorporar métricas de produtividade e de remuneração diferenciada; por outro, permitem aproveitar as clínicas já existentes no sector privado (caso das USF-C), desta forma integrando essa capacidade instalada no SNS de uma forma simples e transparente.
Mas a reforma pode ser muito mais ambiciosa. O conceito de Unidades Locais de Saúde, que agregam cuidados primários e secundários, pode ser alargado para integrar quaisquer prestadores, como públicos (USF-B), do sector social ou até clínicas do sector privado (em modelo USF-C). Pode também estar articulado com meios complementares de diagnóstico e terapêutica, através da subcontratação, e com os hospitais, garantindo a continuidade dos cuidados. O objectivo é a gestão integrada do paciente ao longo da vida.
Para que este modelo funcione é necessário repensar a forma como estas unidades são financiadas. À data, o Estado paga salários e consumos intermédios, o que é uma forma indirecta de financiar os serviços, e remunera intervenções com base em contratos-programa. Idealmente, financiaria em função dos resultados clínicos. No entanto, ainda estamos muito longe de o conseguirmos fazer, pois escasseia informação clínica pós-hospitalar (e até intra-hospitalar). Uma abordagem intermédia seria a de financiar por capitação, ou seja, um valor médio, ajustado à população específica de uma dada região, que consiga cobrir os cuidados de saúde tipicamente prestados ao longo da vida. Esta modalidade criaria um importante incentivo nestas unidades: todo o tipo de iniciativas que previnam e melhorem o estado de saúde dos cidadãos, como exercício físico, nutrição ou literacia em saúde, iriam reduzir o recurso aos cuidados de saúde e, por conseguinte, aumentar o retorno. Intervenções, especialmente as evitáveis, originariam uma penalização para as unidades. Seria assim do interesse (financeiro) das entidades que os cidadãos permaneçam saudáveis.
Ao nível dos cuidados secundários existem também várias possibilidades. O modelo das PPPs é (ou foi) um sucesso. Permitiu ao Estado poupar dinheiro, sem nunca pôr em causa a qualidade dos cuidados prestados; pelo contrário, os hospitais PPP estiveram sempre nos lugares cimeiros dos inquéritos de qualidade da Entidade Reguladora da Saúde. Este modelo poderia ser usado aquando da construção de novos hospitais ou até na reconversão dos hospitais de Braga, Vila Franca de Xira, entre outros, que até há pouco tempo eram PPP. No entanto, a conversão de uma parte substancial dos actuais EPEs em PPPs seria inviável, por diversos motivos, pelo que é necessária uma abordagem complementar.
Essa abordagem consistiria em dividir os hospitais públicos em micro-organizações, adaptando a legislação dos Centros de Responsabilidade Integrados. Estas micro-organizações seriam detidas e geridas por médicos e enfermeiros (e outros profissionais de saúde) e seriam responsáveis pela gestão clínica. Os diversos serviços/valências dos hospitais seriam assim providenciados por CRIs, que seriam subcontratados pelas administrações dos hospitais. Este modelo apresenta várias vantagens: permite que cada CRI contrate de forma autónoma os seus profissionais e defina condições de remuneração; permite que médicos e enfermeiros exerçam em qualquer prestador, seja ele público, privado ou social, sem o conflito de interesses que actualmente existe; e permite às administrações dos hospitais focarem-se na contratualização e estipulação das condições de prestação dos cuidados, sendo que o contrato pode ser sempre renunciado em caso de incumprimento. Assim, a administração apenas negoceia cuidados a serem prestados, métricas de cumprimento e execução, e condições de remuneração. No fundo, é como se os serviços fossem micro-PPPs detidas por profissionais de saúde. O hospital continuaria a ser público, mas a sua actividade seria subcontratada.
Todas as outras actividades de suporte dos hospitais, sobretudo as logísticas, também poderiam ser subcontratadas. O SNS britânico (NHS), que serviu de inspiração ao nosso SNS, externalizou toda a logística hospitalar de consumíveis clínicos e medicamentos — desde a sua aquisição, armazenamento, transporte até à distribuição nos serviços — inicialmente para a DHL, agora para a Unipart Group. A entidade que gere o NHS estima que se pouparam mais de mil milhões de libras com esta externalização. Uma vez mais, isto permite às administrações focarem-se na monitorização, enquanto que operadores especializados, dotados de autonomia e de conhecimento especializado, prestam o serviço com os recursos que bem entenderem. Se forem ineficientes, irão perder dinheiro.
Este modelo permite dotar os hospitais da autonomia de que necessitam para poderem ser eficientes na prestação dos cuidados. Os constrangimentos do sector público deixam de ser um entrave à prossecução de uma gestão racional dos recursos. Adicionalmente, permitiria dotar os hospitais de autonomia para a realização de despesa de capital, por forma a que os hospitais se possam modernizar, e implementar orçamentos plurianuais, para que seja possível ter visibilidade financeira para lá do ano corrente.
Muito mais haveria a ser feito a montante, sobretudo na prevenção da doença e na promoção de estilos de vida saudáveis, o que poderia passar pelo recurso a fiscalidade positiva (e não punitiva); na forma como os cuidados são prestados, implementando modelos de hospitalização domiciliária; e também no acompanhamento ao nível dos cuidados terciários, evitando que camas de internamento de hospital sirvam de albergue à Segurança Social, o que actualmente acontece.
Caso nada seja feito, continuaremos a assistir ao definhar cada vez mais acelerado do SNS. Se o Estado não serve convenientemente os seus cidadãos em matérias tão importantes como a sua saúde, serve para quê?