Vamos começar pelo princípio: a questão da autodeterminação dos povos. Sem espinhas, é um conceito teórico muitíssimo louvável. Todas as pessoas deveriam ter o direito a escolher a que nação pertencem, mais ainda quando se distinguem dos demais por razões de língua, características culturais e ainda somam a isso a possibilidade da viabilização económico-política de um estado independente. Nós, povos ex-colonialistas, impregnados das culpas dos nossos antepassados, tendemos logo a ser a favor da rebeldia, seja ela justificada ou não.
Mas há também o outro lado da história: no seu mais recente livro Michael Walzer usa exemplos do passado recente (a Índia, a Argélia e Israel – independentemente do mérito da causa de cada um, que é evidentemente diferente do de hoje) para demonstrar que os “movimentos de libertação” não são expressão da vontade popular generalizada, que está mais preocupada com a sua vidinha, mas de uma elite separatista, que constrói uma nova narrativa e tudo faz para convencer as populações de que as suas intenções e a forma como vêm a história corresponde a uma verdade que o poder instituído anda empenhado em esconder.
Na prática, os caminhos rumo à independência são sinuosos e armadilhados. Joga-se numa arena perigosa em que vale quase tudo pela causa da independência. Aproveitam-se oportunidades, espera-se por momentos da fraqueza do adversário. É um jogo sujo, regra geral, de parte a parte. Gera violência. Em casos mais extremos gera guerra civil. Em casos ainda mais extremos gera limpeza étnica. A nível regional gera instabilidade. Em muitos casos tem efeito de contágio, estremecendo outros separatismos mais ou menos adormecidos. Claro, pensamos todos, que nada disso vai acontecer na Catalunha. Afinal, estamos no século XXI, estamos na Europa. Mas deixem-me lembrar-vos duas coisas: não só os dois lados da barricada, leia-se Barcelona e Madrid, têm chegado a extremos que nunca pensámos possíveis, como os últimos anos têm demonstrado que nacionalismos, quer emotivos, quer ideológicos, quer mais centristas, quer mais extremados, não são uma relíquia do século XIX. Estão bem e recomendam-se. Assim, a história não se repete, mas rima. Os nacionalismos regressam, mas agora num contexto muito diferente do passado. E nós, na Europa, estamos mal preparados para ele.
Como é que se chegou aqui? O separatismo catalão tem uma longa linhagem. O dia nacional da região, o 11 de setembro, remete para acontecimentos de 1714, quando Barcelona perdeu a sua autonomia para Espanha, na guerra da sucessão. No século XX, os costumes e a língua foram espezinhados pela sangrenta Guerra Civil e pela especial aspereza com que Franco tentou dissolver a cultura catalã. A memória coletiva destes eventos passou de geração em geração, como reclamam os testemunhos vindos de Barcelona e publicados em vários jornais internacionais desde domingo passado. Sentimento parcialmente aplacado, ironicamente, pela Constituição de 1978, que consagrou autonomias regionais no contexto da “indissociável unidade da nação espanhola”. Mas, ainda que a Catalunha tenha aceite o texto fundador da democracia, a relação com Madrid caracterizou-se por uma certa ambiguidade. A Generalitat sempre procurou avançar rumo a uma maior autonomia e Madrid sempre tentou reter os seus poderes. Mas o governo regional foi presidido por moderados. Primeiro por uma coligação das direitas, CiU (1978-2003) e depois pelo seu equivalente na esquerda, uma coligação liderada pelo PSC, uma espécie de PSOE da Catalunha (2002-2010). Os separatistas duros passaram a estar nas margens, nomeadamente na tradição republicana do ERC, que tentou um golpe independentista pouco antes da guerra civil, e na tradição das diversas fações anarcossindicalistas.
Mas como se sabe, as ideias minoritárias adormecem, mas não morrem. E o separatismo catalão acabou por acordar com a ajuda de três elementos: (1) a crise económica de 2008, que criou um sentimento de injustiça entre a população a ver os lucros de Barcelona (cerca de 20 por cento do PIB) a serem redistribuídos pelas províncias mais pobres; (2) o processo judicial movido pelo Partido Papular de Mariano Rajoy, de 2006 a 2010, que resultou na retirada pelo Tribunal Constitucional à Catalunha do estatuto de “nação” (ambíguo) aprovado em referendo regional legal. O TC alegou razões de inconstitucionalidade e o PP questões de equilíbrio entre unitaristas e regionalistas; e (3) a mudança política na composição do governo regional, que passou a ser constituído pela coligação minoritária “Juntos pelo Sim” (à independência) que mistura, desde 2015, o CDC de Carles Puigdemont, um partido de direita liberal que se tornou independentista em resultado das políticas centrais – apesar de algumas dissidências; a ERC o partido republicano independentista dos anos 1930; e a CUP um movimento de esquerda separatista composto por pequenas correntes tendencialmente radicais. Juntos têm a maioria absoluta na Generalitat, ainda que a única ideia comum seja a independência do território autónomo.
Esta mudança passou despercebida (quem é que segue a política interna da Catalunha?) mas é em muito semelhante ao crescimento dos diversos populismos na Europa (velhos nacionalismos, novos tempos). Só que este tem uma característica diferente dos outros. O separatismo nacionalista é sempre um assunto sensível, emotivo e mobilizador de paixões. O que, regra geral, é um cocktail Molotov em política.
Os acontecimentos que se têm vindo a desenrolar desde domingo são o culminar de todas estas tendências: uma memória coletiva dolorosa, trazida à superfície por acontecimentos recentes, guiada por uma coligação que chegou ao parlamento regional pelo voto de protesto às políticas de Madrid conjugada com uma gestão mais que danosa do dossier catalão por parte do governo central (incluindo da Coroa). Barcelona aproveitou a fraqueza do chefe de Governo, Mariano Rajoy, que precisou de duas eleições gerais e quase um ano para formar um governo minoritário, e montou-lhe uma armadinha.
É neste contexto que se anunciou o referendo. Madrid tinha a lei do seu lado. Proibiu a sua realização em sede de justiça, por razões de inconstitucionalidade, mas a Generalitat foi mais arguta: desobedeceu, e arrastou para essa desobediência mais de dois milhões de cidadãos. Nada na consulta pública foi legal: caixas de plástico a fazer de urnas, locais de voto aleatórios, cadernos eleitorais cibernéticos, de cariz, no mínimo, duvidoso, uma afluência às urnas de apenas 44 por cento dos eleitores inscritos, e a forte suspeita de que quem se absteve, fê-lo por desejar a Espanha unida, tal como está. Parece-me que estes argumentos teriam sido suficientes para que Rajoy, apoiado pelo Filipe VI, declarasse a ilegalidade e ilegitimidade dos acontecimentos de 1 de outubro e seguisse em frente. Como aliás já aconteceu no passado.
Mas Madrid perdeu a cabeça, e quando se perde a cabeça, já se sabe, perde-se a razão. Enviou 12.000 guardas civis que investiram contra a população. Nesta guerra de contrainformação sabemos que houve excessos da polícia nacional contra a população, choro de mossos d’esquadra e, ao que consta, quase 900 feridos (dos quais não sabemos a gravidade). O que fica do dia 1 de outubro é a imagem do povo catalão a suportar estoicamente a intervenção policial em nome da independência. As câmaras de televisão de todo o mundo captaram imagens suficientes de violência desproporcional para deixar a imagem internacional de Madrid pelas ruas da amargura e para revoltar milhares de catalães que até aí estavam longe de querer separar-se da Espanha. Rajoy, diz-se, “é o maior fazedor de independentistas”. E é. Fez mais pela independência da Catalunha em 24 horas do que todos os separatistas juntos. Em democracia, quando se tem a lei do nosso lado e pelo menos parte da legitimidade, o uso da força contra a população (que possivelmente acredita verdadeiramente na bondade da ideia da separação) tem duas consequências: perde-se a razão imposta pela moralidade do estado de direito e perde-se o apoio da população visada. Os independentistas ganharam uma dupla batalha: abriram uma brecha em Espanha (e na Europa) muito difícil de fechar e ganharam o apoio da uma parte importante da “opinião pública internacional”. Se o conceito popularizado por Jürgen Habermas a propósito da guerra do Iraque não quer dizer nada muito concreto, o efeito prático é bem conhecido.
E agora? Há três cenários possíveis. Uma crescente tensão entre as partes com um desfecho que é difícil de prever. Em política há poucas coisas tão perigosas como o nacionalismo separatista pelas razões descritas acima, mas que nunca é demais lembrar: violência interna, instabilidade regional, efeito dominó. E a Europa está cheia de separatistas que podem ver no braço de ferro catalão uma inspiração para avançar com as suas próprias causas.
O segundo cenário é os dois lados da contenda espanhola ultrapassarem os últimos dias e se sentem a negociar. As probabilidades de diálogo no curto prazo são escassas. Mas nunca, pela gravidade da situação, podem ser postas de lado. A bem da Catalunha, da Espanha e da Europa.
O que nos leva ao terceiro cenário, o de um árbitro externo. As crises sucessivas da União quase nos fazem esquecer qual foi o objetivo principal da sua criação, mesmo quando era só para o carvão e o aço: a de evitar que a guerra voltasse ao continente. E por mais deméritos que a UE possa ter (depende do ponto de vista de cada um), este objetivo tem sido comprido, salvo nos Balcãs, que eram Europa, mas não União Europeia. Eu diria que chegámos a um momento crítico em que Bruxelas volta a ter uma missão pacificadora. Assobiar para o lado e dizer que é um assunto interno espanhol é um tipo de comportamento que foi experimentado vezes que cheguem para se saber que não resulta. Esperemos, pois, que a União encontre forma de mediar o conflito, não pela sua internacionalização (não é a fazer o jogo da Catalunha que se chega lá) mas porque a paz no continente tem de ser um dos principais valores comuns aos estados-membros. Porque se na Catalunha dá para o torto, abre-se uma Caixa de Pandora que pode levar décadas a fechar, e com possíveis danos consideráveis.