A decisão da ministra das Finanças adoptada há dias pelo actual governo no sentido de renunciar à última fatia do empréstimo contraído junto da União Europeia e do FMI na sequência da bancarrota assumida por Sócrates e o governo do PS deixou os diferentes comentadores algo perplexos. Fomos de facto surpreendidos com o carácter inédito da decisão. Esta deixava, assim, por concluir oficialmente o resgate financeiro, mas ao mesmo tempo libertava o governo português perante a troika, da qual toda a gente antes se queixava em nome da pretensa soberania nacional.
Independentemente dessa surpresa, que não afectou aliás o Sr. Schäuble, o qual continua a ser uma das vozes mais autorizadas em matéria de ajustamento às políticas do euro, a verdade é que a decisão da ministra foi uma bofetada de luva branca ao Tribunal Constitucional (TC) e, por tabela, a toda a oposição. Ao mesmo tempo, restituiu ao eleitorado uma certa confiança na capacidade das autoridades portugueses para tomarem as medidas que entendam sem perguntar à troika.
Assim, trocou a ministra as voltas ao TC, que pretendia pôr o governo de joelhos, e ganhou tempo para ponderar todas as opções possíveis perante as decisões tardias e politizadas da maioria dos juízes em questão, assim como para ver se estes se dignam responder entretanto ao pedido de “aclaração” que lhes foi dirigido a fim de explicarem em língua que se perceba as suas contraditórias proibições e autorizações. Entretanto, o governo havia já avançado com parte da solução para os chamados “cortes” ao funcionalismo público. Mostrou uma vez mais aquilo que já todos sabíamos mas perante cuja imperiosa realidade o TC continua a manter os ouvidos surdos, a saber, que o dinheiro para pagar aquelas despesas pura e simplesmente não existe nem vai, infelizmente, existir tão cedo. Terá de ser produzido pela economia real e não pela máquina de imprimir notas de banco.
Reduzir as despesas do Estado é cortar os custos dos ministérios que são constituídos, sobretudo, pelos ordenados. Estes poderiam ser facturados numa coluna mas teriam de ser riscados noutra qualquer. Ora, aumentar a receita através dos impostos, como pretende menos de uma dúzia de juízes sem competência na matéria, é uma coisa muito diferente e com consequências muito mais nefastas para o crescimento económico, como tinham obrigação de saber. A demonstração serve ao Tribunal e serve também à oposição, seja aquela que pura e simplesmente quer sair do euro e andar não se sabe quantas décadas para trás, seja a que sonha em aumentar o crescimento económico à custa da dívida a pagar mais tarde ou mais cedo, quando a verdade é que o país praticamente já não crescia desde o final do século passado, a ponto de deixar de conseguir servir a dívida, quanto mais pagá-la.
Mais importante, as autoridades governamentais demonstraram confiança suficiente na capacidade das nossas finanças para dispensar os milhares de milhões de euros de dívida a que ainda tinham direito e guardar-se para ir aos mercados levantar as verbas de que necessitarem quando isso fôr oportuno, sem alegadas pressões constitucionais, a custos mais ou menos idênticos aos do empréstimo da troika. Oxalá assim seja! O governo mostrou também ser capaz de pensar pela própria cabeça e fechar de vez as negociações com a troika, mantendo-se politicamente indiferente à algazarra que divide as candidaturas à liderança do PS. Outras tantas bofetadas de luva branca a quem enfiar a carapuça.
Assim, os ónus das injustiças “constitucionais” praticadas contra os empregados do sector privado e contra os desempregados pelos juízes do TC ficam com estes últimos e com os partidos da oposição, que não souberam fazer outra coisa senão embandeirar em arco com as dificuldades da governação. Em compensação, com a coligação governamental fica a obrigação de manter o ajustamento financeiro imposto pelas políticas do euro assim como pelo Tratado Orçamental, cujo desenho básico é conhecido das autoridades portuguesas desde o dia – de 1999! – em que Guterres repetia o slogan patético: “Estamos no pelotão da frente”!
Por último, esta medida simples mas inovadora e radical da ministra das Finanças ainda pode vir a revelar-se mais importante do que todas as campanhas partidárias para levar o eleitorado a compenetrar-se de que a única mensagem política com alguma credibilidade na presente conjuntura é a do realismo temperado com alguma confiança na resiliência que a maioria das pessoas tem demonstrado. Seja como for, não são críveis as acusações da oposição contra o “doutrinarismo” do governo. Seria como se algum governo tivesse como estratégia eleitoral fazer “cortes” na função pública a cerca de um ano das legislativas. Em contrapartida, é possível o inverso. Ou seja, pode ser que, como as europeias já mostraram certa tendência para isso, o justicialismo, o populismo e a demagogia todos juntos não cheguem para aliciar a maioria do eleitorado numa situação de emergência como aquela em que vivemos desde 2008, pelo menos, por obra e graça do governo PS.