A última reunião do Conselho de Estado requer uma narrativa prévia, como agora se diz. Em 2009, a seguir às eleições legislativas de Setembro em que Sócrates perdeu a maioria absoluta devido à crise em curso desde 2007 e cujas nuvens negras se adensavam cada vez mais, houve quem instasse o Presidente da República a intervir junto do novo parlamento no sentido de os partidos chegarem a um mínimo de entendimento para governar o país através da tempestade. Porém, o PR não quis saber. Continuou a apoiar Sócrates, agora minoritário, e a fazer força junto dos seus confidentes no PSD para que este fosse apoiando os sucessivos pacotes de austeridade que começavam a chegar da União Europeia.

Em 2010, as mesmas sugestões chegaram a Cavaco Silva mas ele continuou a acreditar no sacrifício do PSD no altar de uma pretensa estabilidade e este cumpria a sua função, submetendo-se ao PEC 1 em Março de 2010, ao PEC 2 dois meses depois e ao PEC 3 em Setembro do mesmo ano, todos eles já com significativos cortes orçamentais e aumentos de impostos. Finalmente, em Março de 2011, o PSD liderado por Passos Coelho e o CDS chumbaram o PEC 4, enquanto a “oposição de esquerda” continuou a desresponsabilizar-se da crise. Sócrates demitia-se, chamava a futura “troika” e o PS perdia as eleições. Só nessa altura o PR abandonou Sócrates mas deixou perceber que Passos Coelho não era a aposta dele, o que obviamente só enfraqueceu a capacidade de decisão do novo primeiro-ministro, nomeadamente junto do seu parceiro de coligação, como se veria aquando da irrevogável demissão de Paulo Portas.

Desde então que Cavaco Silva não cessa de “exortar as forças políticas” ao diálogo e ao compromisso. Cada vez com menos resultados práticos. É caso para perguntar se não será tarde de mais? A escassa vantagem do PS nas eleições europeias, abrindo espaço à candidatura de António Costa à liderança, lançou o partido numa crise interna que poderá prejudicá-lo mais do que beneficiá-lo. Já antes disso, a seguir à demissão de Vítor Gaspar e à falsa saída de Portas, António José Seguro fora obrigado a recusar a proposta de “compromisso” de Cavaco Silva para não perder o controlo do PS. Ora, nada está mais longe de dialogar e de fazer compromissos do que um líder acossado e um partido fracturado como é hoje o PS. Se Seguro não o fez quando tinha na mão a hipótese de ser primeiro-ministro, como é que qualquer dos candidatos à liderança do PS o faria antes de novas eleições?

A insistência da Cavaco torna-se algo patética quando todos os actores relevantes, incluindo o PCP e o BE, sabem que não há qualquer “diálogo construtivo” à vista. Há quem considere que o PR apenas pretende salvaguardar a sua imagem. Eu penso que ele crê realmente na necessidade de um compromisso entre os três partidos do arco constitucional ou pelo menos entre o PSD e o PS. Mais: acredito que ele está, efectivamente, a defender aquilo que é a opinião maioritária do eleitorado. E não deixa de ser insensato que as tentativas da Presidência para promover esse compromisso fiquem sem resposta dos partidos. A enésima reunião do Conselho de Estado no passado dia 3 mostra isso mesmo. Por isso é que o tom unanimista da reunião é inquietante, pois todos pressentimos que os votos pios dos conselheiros, dos quais ninguém pode discordar, ficarão sem eco.

Ou seja, o problema não está nem nos discursos nem sequer nas intenções ou nas reservas mentais. Está nos partidos e na sua natureza; na vontade de poder e na desconfiança mútua que se esconde sob os mantras ideológicos. E está sobretudo na constituição do próprio regime político, essa constituição que o Tribunal Constitucional usa para se negar a reconhecer as necessidades do país. Era por aí que devia começar a tal “reforma do Estado”, mas falaremos disso em breve. A partir daqui, voltarão as mútuas apóstrofes partidárias de indisponibilidade para o diálogo sem que nenhum dos dois principais partidos esteja minimamente assegurado de uma maioria absoluta. Vamos ficar de respiração suspensa entregues ao descrédito do pugilismo partidário. O que deveria ter sido feito em 2009, quando o eleitorado falou claramente ao retirar a maioria absoluta ao PS, é capaz de já não ser possível agora.

Percebem-se assim as hesitações de Paulo Portas a fim de ficar disponível para uma das três maiorias possíveis em 2015: por ordem da provável preferência dele, com o PS, com ambos ou outra vez com o PSD. Daí que Passos Coelho pretenda ligar o destino do CDS ao seu, coisa que o CDS deveria resolver o mais rapidamente possível, pois isso seria importante para determinar a táctica do PS. Entretanto, temos de viver até ao ano que vem e para além disso. A relativa indiferença com que a esmagadora maioria do eleitorado observa estas manobras perigosas deve-se, muito possivelmente, ao facto de estar convencida de que, seja qual for o governo, as políticas concretas serão sempre as da União Europeia à qual não queremos deixar de pertencer. Resta saber se os eleitores têm razão.

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