A natureza desta crise é muito diferente da crise financeira e até da crise pandémica. Em primeiro lugar porque afeta a própria natureza da União Europeia, fundada na ideia de que a interdependência económica traria prosperidade e paz. Este princípio foi aplicado ao logo de décadas, não só dentro das fronteiras da União Europeia e nos sucessivos alargamentos, como também na política comercial com o exterior. A UE deu um contributo relevante nas sucessivas rondas de negociações da Organização do Comércio internacional e empenhou-se em desenvolver acordos de investimento e de comércio com inúmeras regiões. Com esta guerra, as relações comerciais com países como a China e a Índia poderão arrefecer muito rapidamente, aumentando os custos e reduzindo a disponibilidade de todos os tipos de bens, desde as matérias-primas, aos metais raros e bens tecnológicos.
Em segundo lugar, a crise energética afeta com especial intensidade a Alemanha, que é a maior economia europeia e o destino mais importante para as exportações da maioria dos países europeus. O modelo alemão de importação de energia e materiais baratos para produzir bens com tecnologia avançada e elevado valor acrescentado, está em risco. Em 2018, a Rússia era o 15º maior destino das exportações alemãs e nas importações encontrava-se em 12º lugar. As sanções têm um efeito muito penalizador para a economia alemã. A relação comercial entre a Alemanha e a China é ainda mais complicada já que a China representa o terceiro maior destino das exportações alemãs e está em primeiro lugar nas importações. A perspetiva de um mundo bipolar obriga a uma reconfiguração do comércio internacional alemão que poderá ser difícil de concretizar.
Em terceiro lugar, se a condenação da guerra e imposição de sanções uniu até agora todos os Estados-membros e implicou uma reconfiguração da política de defesa, à medida que o impacto nos bolsos dos cidadãos se começa a fazer sentir, os partidos e regimes mais populistas, até aqueles com ligações à Rússia que no início da guerra eram muito criticados, parecem estar a sair fortalecidos. É o caso da reeleição de Órban na Hungria e a subida nas intenções de voto do partido da Marine Le Pen nas sondagens para as eleições Presidenciais em França, cuja primeira volta ocorre hoje.
Ainda num cenário de enorme incerteza sobre a duração e o resultado da guerra, o que já parece claro é que as transformações geoeconómicas e políticas dentro e fora da União Europeia exigirão uma reflexão profunda sobre a própria natureza da Europa, e a forma como se relaciona com o exterior. Será que guerra poderá fazer esquecer o sucesso do modelo de incentivo económico à democratização nos países do Sul e do Leste da Europa? Se a paz e a democracia não foram possíveis na Rússia apesar da sua integração no comércio mundial, serão elas mais bem defendidas num mundo separado entre o bloco das democracias liberais e o bloco dos países autocráticos e menos democráticos? Como pode a Europa navegar os próximos meses e anos na defesa inabalável dos seus valores preservando a sua identidade liberal e aberta ao mundo?