A chantagem sobre os cereais é um dos poucos caminhos que ainda restam à Rússia para obter concessões do Ocidente. E representa um risco importante.

Na próxima semana, o Ministro Lavrov irá reunir-se com António Guterres para prolongar o acordo sobre as exportações de cereais que foi negociado no início da guerra, mas as negociações serão provavelmente difíceis.

Contrariamente à vitória rápida que antecipara, a Rússia enfrenta agora um conflito sem fim à vista. Acresce a isto que a influência que a Rússia esperava exercer através da dependência energética da Europa acabou por falhar, devido à combinação de uma política europeia de substituição de importações de gás e produtos petrolíferos, de aceleração da incorporação de renováveis no mix energético e na redução do consumo energético das famílias e das empresas (-18% nos oito meses até março de 2023, face ao mesmo período do ano anterior).

Com o aumento da pressão sobre as exportações de cereais, a Rússia espera obter algumas concessões, especialmente na manutenção dos territórios que conseguiu conquistar na Ucrânia. E já conseguiu semear alguma discórdia na Europa. Na semana passada, alguns dos países do leste Europeu, incluindo a Polónia, que foi um dos maiores defensores da Ucrânia desde o início da guerra, tentaram bloquear as importações de bens agrícolas vindos da Ucrânia. Com efeito, a União Europeia negociou no ano passado a entrada de alguns bens ucranianos sem tarifas para reforçar os rendimentos ucranianos e evitar problemas de abastecimento alimentar na Europa. Mas como uma parte substancial desses bens acabam por ficar nesses países, isso acabou por afetar os rendimentos dos agricultores locais. Foi possível ultrapassar esse bloqueio em poucos dias, mas isto demonstra o interesse que a Rússia tem em impedir as exportações do Mar Negro, aumentando os preços dos cereais, ao mesmo tempo que causa maior discórdia no centro da Europa onde está a ser escoada uma parte grande da produção.

Por enquanto os preços nos mercados internacionais não aumentaram, o que sugere que clientes e investidores em matérias primas alimentares antecipam que será possível prolongar o acordo sobre as exportações do Mar Negro. Mas existe um risco relevante de as exportações diminuírem substancialmente, mesmo que não sejam inteiramente bloqueadas.

Isto coloca dois problemas: em primeiro lugar pode reacender a inflação que estava a começar a diminuir. O efeito sobre o rendimento real das famílias pode afetar a boa vontade da opinião pública face às políticas ocidentais de apoio à Ucrânia. Em segundo lugar, um novo aumento do preço dos cereais poderá ter um efeito dramático nos países em desenvolvimento, que têm em alguns casos problemas acentuados de segurança alimentar devido às mudanças climáticas, e que se sentem muito longe deste conflito e não estão necessariamente alinhados com a posição da Europa e dos Estados Unidos.

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