Se a documentação revelada nos Luanda Leaks for genuína e a interpretação que dela está a ser feita for correcta, então teremos confirmadas as suspeitas e conjecturas sobre o modo como a elite política angolana, desde a independência, terá usado as riquezas do país para enriquecimento pessoal. Em Portugal, tudo isto alimenta dúvidas recorrentes sobre a chamada “descolonização”, e com razão: Angola é um caso, entre muitos, de um território que se tornou independente sem que houvesse uma verdadeira descolonização.
O equívoco vem do hábito de identificar “descolonização” e fim da administração europeia. Como se, logo que nenhuma potência europeia administrasse directamente um território, este se encontrasse “descolonizado”. Não é assim. A colonização, no caso de África, não consistiu apenas na tutela e na presença de europeus. Assentou na menorização das populações nativas, através de constrangimentos de todo o tipo, dos quais a escravatura foi o pior, mas que incluíram também o trabalho forçado, as culturas obrigatórias e os estatutos especiais, como o do “indigenato”, que de facto excluía os nativos de uma comunidade legal e cívica reservada aos europeus e aos “assimilados”. Se a colonização significou a menorização das populações, então a “descolonização” devia significar o fim dessa menorização. Ora, a independência dos novos Estados não coincidiu necessariamente com o fim dessa menorização.
A descolonização, no sentido acima indicado, começou antes das independências, mas nem sempre prosseguiu depois delas. Já antes de renunciarem à sua soberania, as potências europeias iniciaram o desmantelamento das instituições coloniais em África. Foi o caso de Portugal, a partir de 1961, quando Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, aboliu nas então “províncias ultramarinas” o trabalho forçado, as culturas obrigatórias e o estatuto do indígena. Anos depois, Marcello Caetano promoveu instituições representativas provinciais, em que as populações nativas tiveram lugar, no contexto do projecto de construção de “sociedades multi-raciais”. Como é óbvio, restavam ainda, como obstáculos a uma maioridade cívica da população, quer a soberania portuguesa, que se repercutia numa posição de supremacia de facto dos europeus, quer a natureza ditatorial do regime português, que comprometia qualquer verdadeira auto-determinação. Mas o fim da ditadura e da soberania de Portugal em África, em 1974, em vez de contribuir para a continuação da descolonização, como que a fez recuar.
Para começar, porque as novas autoridades revolucionarias em Portugal depressa renunciaram a generalizar a todos os territórios sob administração portuguesa o processo democrático que iniciaram em Portugal. Com excepção de Cabo Verde, e mesmo assim em condições de liberdade duvidosa, não houve eleições no “Ultramar”. Os governos de Lisboa simplesmente trespassaram o poder — quando não o abandonou, como em Angola –, aos partidos armados apoiados pela União Soviética e pela China comunista. Para os revolucionários portugueses, tal como para vários organismos internacionais, a “luta armada” tinha dado a esses partidos um direito a governar sem qualquer consulta popular prévia. Os governos portugueses em 1974 e em 1975 procederam assim por cumplicidade ideológica, mas também por necessidade prática: os partidos armados recusavam eleições, e a alternativa a entregar-lhes o poder teria sido continuar a resistir-lhes militarmente. Depois de 1974, com o fim da ditadura e a contestação ao esforço militar em África (“nem mais um soldado para as colónias”), não teria sido fácil. Foi a isto que muita gente, sem rir, chamou “descolonização”.
Mas isto significou que populações até aí submetidas à administração europeia se viram subitamente avassaladas por uma administração que não lhes era menos estranha do que a europeia. É que as elites dos chamados “movimentos de libertação”, oriundas dos grupos mais europeizados das colónias, continuaram a colonização, sujeitando a população às engenharias sociais e culturais inspiradas por ideologias europeias, como o marxismo-leninismo, frequentemente muito mais brutais do que o antigo colonialismo europeu. A resistência nativa contra estes novos poderes, em Angola ou em Moçambique, depressa resultou em conflitos muito mais violentos e generalizados do que nos tempos da administração portuguesa. Em 1974, em Angola, a guerra estava confinada à fronteira do leste. Em 1994, combatia-se em todo o território, incluindo nas maiores cidades.
Em Angola, a nova elite foi defendida, durante décadas, por um exército de ocupação cubano, contra a revolta da maioria da população. O aspecto do poder do MPLA como um poder colonial não podia ser mais claro. Por vezes, culpava-se disto tudo a Guerra Fria ou a África do Sul. Mas o fim do apartheid e da União Soviética não mudou o carácter autocrático do regime angolano. Ajudou apenas a esclarecer os objectivos dos novos donos de Angola: em vez da construção de sociedades marxistas-leninistas, o enriquecimento pessoal, com a colocação das fortunas a resguardo no Ocidente. Há quem, para explicar estas tragédias, argumente que as populações das antigas colónias não estavam ainda em condições de formar nações. Já era esse o argumento dos defensores europeus da colonização. Mas de uma coisa podemos estar certos: estas cleptocracias não estão certamente a preparar ninguém para a maioridade cívica. É esta a história por detrás dos Luanda Leaks: a de uma descolonização por fazer.
P.S.: Para perceber o que se passa em Angola, recomendo o excelente livro de Ricardo Soares de Oliveira, Magnífica e Miserável: Angola depois da Guerra Civil (2015).