Ana Mendes Godinho, a deputada do PS, escreveu recentemente, no jornal Público, um texto a que deu o título de “Imigrantes. Quando a ideologia empurra trabalhadores para o beco da escravatura.” Trata-se de um artigo curto, que se lê em dois minutos e que revela que a deputada poderá saber imenso de trabalho, solidariedade e segurança social — áreas de que foi ministra —, mas quanto a escravatura pura e simplesmente não faz a mais pálida ideia do que está a dizer.
Até ao século XIX, inclusive, a palavra escravatura significava geralmente tráfico de escravos, isto é, compra, transporte e venda de pessoas escravizadas. Para nós, actualmente, a palavra significa escravidão, mas é um erro pensar a escravidão apenas em termos de trabalho. O que melhor distinguia o homem livre do escravo é que este último não era dono da sua vontade nem do seu corpo — que podia ser usado, incluindo sexualmente, pelo senhor —, e também o não era da sua prole, pois os filhos que viesse a ter poderiam ser-lhe retirados e vendidos.
Ora, em Portugal, aquilo a que actualmente estão sujeitos os imigrantes ilegais — que, com o fim do mecanismo da manifestação de interesse, Ana Mendes Godinho classifica como pessoas “sem direitos” —, nada tem que ver com escravatura, quer a entendamos como tráfico de pessoas possuídas por outrem ou como escravidão. É claro que poderá alegar-se que Ana Mendes Godinho terá usado a palavra escravatura em sentido figurado e que não há que levar-lhe a mal por isso. Todos nós o fazemos de uma forma ou de outra quando dizemos que somos escravos do trabalho, dos horários, da palavra dada, etc. Ou seja, a falta de rigor conceptual da deputada do PS é, no fundo, comum e secundária. O mais importante é perceber que ela corresponde, também, à mais recente manifestação de uma tendência de intervenção política por parte do PS que tem sido nos últimos meses muito marcada, e que essa, sim, é importante e merecedora de forte crítica.
De facto, desde que está na oposição, o Partido Socialista recorre sistematicamente à analogia extremada. Nos últimos meses o PS tem-se preocupado em exagerar negativamente os acontecimentos do quotidiano. Quase tudo o que o governo faz, ou permite que se faça, é motivo de escândalo e rasgar de vestes, um procedimento altamente deformador e, por vezes, invertido. Como Helena Garrido escreveu num artigo no Observador, a propósito do clamor da esquerda em torno do recente episódio da rusga policial no Martim Moniz, “não foi o governo que usou a polícia, é alguma classe política que está a usar as forças de segurança para fazer oposição.”
E, acrescento eu, está a fazê-la de uma forma histriónica — ou histérica, como era comum dizer-se antigamente —, dramatizando tudo o que vem à rede. A histeria tornou-se para alguns dos membros do PS, uma metodologia de combate político. Isso vem-se notando desde o passado mês de Abril, num acumular de casos ou pseudo-casos, mas talvez não seja preciso recuar tanto no tempo para o ilustrar. Basta atentar no que se passou — e continuará a passar, porque há uma manifestação marcada para dia 11 de Janeiro — com o episódio da rusga da PSP na Rua do Benformoso, ao Martim Moniz. As águas do PS cresceram em autêntico maremoto com esse episódio. Isabel Moreira foi uma das pessoas que apresentou queixa na Provedoria da República por considerar que essa acção policial fora “uma operação de má memória histórica (sic), de revista de dezenas de cidadãos encostados à parede, perfilados, mãos levantadas, sem qualquer indicação de suspeitas de práticas de crime”. Perguntada sobre o que pensava da referida rusga, Ana Gomes declarou o seguinte: “Martim Moniz? Estes casos à Rambo nunca se viram neste país” (sic). Alexandra Leitão sugeriu que se tinha tratado de uma intervenção racista pois não havia um único “branco encostado à parede” e isso não poderia “ser por acaso” (sic). Rui Pena Pires foi ainda mais claro e passou da sugestão à acusação, classificando o que se passou como “um acto de intimidação inaceitável das populações imigrantes originárias do Indostão” e “uma escolha dos suspeitos com critérios étnico-raciais”. Pedro Nuno Santos, declarou-se “revoltado” e acusou o governo de ser o “mais extremista das últimas décadas” (sic). Como forma de criticar a rusga realizada pela PSP, Miguel Prata Roque publicou no Facebook uma fotografia de homens, mulheres e crianças judaicas encostadas a um muro no tempo do Gueto de Varsóvia, com o seguinte comentário: “Não, não deixaremos que nos encostem à parede outra vez”, ou seja, propôs uma analogia ou equivalência entre a rusga policial no Martim Moniz — onde as pessoas, depois de identificadas, foram às suas vidas — e o Holocausto. E podia prosseguir com mais exemplos, mas suponho que estes bastarão.
Não, caros dirigentes, deputados e outras figuras do PS, o regime de trabalho e a precariedade de direitos a que os imigrantes ilegais estão hoje em dia sujeitos nada têm a ver com a escravatura, tal como as rusgas da PSP no Martim Moniz ou noutros locais nada têm a ver com o Gueto de Varsóvia ou com a Alemanha de Hitler. Carlos Moedas disse, em entrevista recente, que o PS, dantes moderado, está agora “a deixar-se ir para o radicalismo da extrema-esquerda”. Tem toda a razão. Salvo melhor opinião as estruturas dirigentes do PS estão cheias de radicais, gente que gasta o seu latim a invectivar as supostas inclinações pró-Chega do governo da AD, sem se dar conta de que ela própria está colada como irmã siamesa ao Livre e ao Bloco. É que o Partido Socialista pode ter saído da Geringonça, mas a Geringonça ainda não saiu dele e por este andar já não sairá.