As maiorias absolutas têm riscos, mas são uma enorme oportunidade, especialmente numa conjuntura em que, embora com alguns problemas no horizonte, Portugal tem dinheiro para investir, as contas públicas estão relativamente controladas e o ambiente político global é favorável para os partidos mais intervencionistas. António Costa tem uma oportunidade única para fazer aquilo que há muito tempo se tem adiado. E António Costa pode voltar a ser aquele António Costa que já mostrou, no passado, ser capaz de fazer reformas. Será desesperante se perdermos mais esta hipótese de criar condições para Portugal crescer mais e, assim, garantir rendimentos mais elevados de forma duradoura.

A inesperada vitória do PS com maioria absoluta pode ter muitas leituras. Uma parece ser indiscutível, face às transferências de voto da esquerda para o PS: os portugueses não acharam de todo sensato que houvesse eleições no meio de uma pandemia, que lhes tinha e tem custado tanto a suportar, em todas as vertentes das suas vidas. Mas há males que vêm por bem e as eleições acabaram por produzir um resultado que garante estabilidade durante quatro anos.

O PS tem condições para aplicar o seu programa, sem estar activamente condicionado às agendas do PCP e do BE que já não se conseguiam intersectar com as dos socialistas. E tem igualmente toda a margem de manobra para responder ao desafio que o Presidente da República deixou no dia de reflexão. Disse Marcelo Rebelo de Sousa que “recuperar economia e mitigar pobreza e desigualdade sem mudanças de fundo, corre o risco de ser encharcar com milhões as areias de um deserto”.

António Costa pode e deve fazer “mudanças de fundo” e deitar para trás das costas estes seis últimos anos de inacção, em que se foi gerindo a conjuntura e distribuindo o pouco que se tinha, muito condicionado pela necessidade de disciplina financeira, de acordo com as exigências do PS e do BE. Por muito que a expressão “reformas” esteja esgotada, por nada se ter feito e muito se ter falado, intervir estruturalmente será de facto o único caminho que nos garantirá que vamos aproveitar esta oportunidade em vez de, como disse o Presidente, nada fazer e atirar o dinheiro para a areia.

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Os recursos do Plano de Recuperação e Resiliência – que pode ser aplicado rapidamente – e o facto de termos as contas públicas relativamente controladas dão a António Costa, agora com a sua maioria absoluta, todas as condições para mudar o País para melhor.

Simplificar a relação dos cidadãos com o Estado devia ser a referência de todas as mudanças. Esta reforma pode gerar aumentos de produtividade nas pequenas e médias empresas suscetíveis de fazerem mexer o ponteiro dos grandes números. A justiça administrativa e fiscal devia ser outra das prioridades e aqui o PS poderia ir buscar inspiração a propostas do PSD que se propunha criar um plano de emergência para resolver os atrasos. Na Saúde é preciso reorganizar o Serviço Nacional de Saúde para que seja, mais do que uma declaração de princípios, aquilo que tem de ser, a garantia de serviços de saúde a tempo e horas aos portugueses. Na Educação precisamos urgentemente de ser mais exigentes e voltar a focar-nos nas línguas e na matemática. Finalmente a administração pública: não vale a pena fazer grandes reformas, mas sim mudanças como a qualificação e acabar com o populismo de pagar mal aos mais qualificados.

Não vale a pena querer fazer tudo e transformar tudo numa prioridade. O fundamental é identificar aquilo que, de facto, fará a diferença ao mesmo tempo que se abandona o populismo, que nos tem saído caro. Não podemos olhar para nós daqui a quatro anos e ver que há países que eram mais pobres do que nós e que conseguiram ultrapassar-nos. António Costa terá de ter coragem, até porque os desafios, apesar ou por causa da maioria absoluta, não são pequenos.

O desafio mais preocupante é aquele que se coloca a todas as maiorias absolutas: o de não cair em tentações absolutistas e de captura do aparelho do Estado. Durante os últimos seis anos assistimos à captura do aparelho do Estado pelos socialistas. Com o BE e o PCP a apoiar o Governo, quase não se ouviam críticas e os socialistas fizeram nomeações que seriam impensáveis no passado.

A única expectativa que podemos ter, no sentido de moderar essa fúria de tudo controlar, não é a promessa de António Costa de não abusar e de dialogar, é antes o regresso do PCP e do BE àquilo que eram antes da Geringonça. Comunistas e bloquistas terão de fazer uma fiscalização parlamentar muito eficaz, atentos e críticos a todos os abusos de poder. E, nesse sentido, poderão ter igualmente a ajuda quer da Iniciativa Liberal, quer do Chega. O PSD levará algum tempo a recompor-se numa derrota que não esperava.

António Costa terá igualmente de contar com mais contestação social, embora neste domínio seja importante ainda aperceber se se mantém intacto o poder de mobilização e sindical do PCP, depois das cumplicidades de seis anos com o PS.

Finalmente os desafios externos. O fim do dinheiro à borla aproxima-se assim como vamos viver tempos de inflação alta. No curto prazo, o efeito será muito limitado nas contas públicas mas o mesmo não se pode dizer nas contas das famílias. Neste momento já sente a subida dos preços e o seu rendimento vai ainda encurtar mais, quando as taxas de juro começarem a subir e, com elas, a prestação da casa. O que acontecerá entre finais deste ano e o início do próximo, se não mais cedo. Este é o cenário base do enquadramento externo, mas há outros que podem ser mais pessimistas, como uma recuperação mais lenta ou, o pior de todos, um conflito entre a Ucrânia e a Rússia envolvendo os países ocidentais e com um impacto aterrador ao nível da energia.

Estamos perante uma oportunidade para Portugal sair do destino de crescimentos medíocres e da falta de coragem de mudar aquilo que todos sabem que é preciso mudar. António Costa tem a maioria absoluta, dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência para investir, as contas públicas relativamente controladas e uma conjuntura global que pode ser desafiante mas que ainda é favorável. António Costa não tem desculpa se não fizer as reformas que Portugal precisa, não tem de desculpa se esta maioria acabar por ficar na história pelas tentações do PS em controlar tudo e todos fazendo com que voltemos a detestar maiorias absolutas.