Quando recentemente me pediram informações sobre o número de inquéritos atualmente pendentes nos tribunais e relativos a crimes de abuso sexual de jovens e adolescentes, resolvi fazer uma busca na internet. Procedi a tal busca através das palavras “inquéritos” e “abusos sexuais”. Sem exagerar, devo dizer que, talvez, em cada dez notícias ou outro tipo de informações a que tive acesso, nove seriam sobre o número de inquéritos relativos à prática desse crime por sacerdotes ou no âmbito da Igreja Católica. Com alguma dificuldade, lá conseguiu obter o número global que pretendia, relativo ao ano corrente, que era mais de cem vezes superior aos desses outros inquéritos sobre abusos na Igreja Católica, sendo estes relativos a vários anos.

Não quero com isto diminuir ou atenuar a gravidade da prática desses crimes no âmbito da Igreja Católica, desde logo porque eles representam uma afronta à ética sexual cristã e personalista contrária à “coisificação” da pessoa e à mensagem evangélica que, contra a corrente da cultura antiga, apela ao amor preferencial pelos mais pequenos e inocentes (sobre estes aspetos ético, com reflexos noutros campos da sexualidade, também pouco se tem dito). São, assim, um grave contra-testemunho, para além de representarem uma quebra de confiança depositada nos ministros de Deus e da Igreja pelas vítimas e seus progenitores.

O que quero dizer é que desses casos não pode deduzir-se que se trata de um fenómeno sistémico ou característico da Igreja Católica, capaz de lançar sobre os sacerdotes uma suspeição generalizada (como já se verificou noutros países e parece começar a verificar-se também entre nós). Nem pretendo que esses casos sejam ocultados, como foram durante muito tempo. Deve, porém acautelar-se o respeito pelo princípio da presunção de inocência (que vale para os sacerdotes como para qualquer outra pessoa) e o risco de condenar inocentes através da comunicação social, com consequências irremediáveis.

Mas também me parece legítimo e justo, apenas por uma questão de fidelidade à verdade, dar um destaque minimente equiparável (já nem digo igual) ao que é dado a esses crimes e pecados também ao bem que fazem membros da Igreja Católica em todo o mundo em prol da infância e da juventude.

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Ocorrem-me imediatamente as notícias que me têm chegado da presença de missionários católicos em Moçambique, que não abandonam as populações vítimas do terrorismo e de outras violações dos direitos humanos. Desde logo, as da missão de Chipene, onde foi assassinada a Irmã Maria di Coppi, religiosa comboniana italiana. Uma mulher que poderia gozar a sua reforma em lugares mais tranquilos, que dedicou a sua vida àquele povo sem nada esperar em troca, que procurou salvar todos os jovens que com ela viviam e que antecipadamente perdoou (e pediu aos familiares que perdoassem) os seus algozes. Nessa missão, apesar de toda a destruição provocada pelos ataques terroristas e do medo que em todos permanece, os trabalhos da escola e do hospital estão agora a ser retomados, porque não se pensa em abandonar esse povo e esses jovens.

Mas parece-me de destacar nesta altura, sobretudo, uma ação, de que nunca vi ecos na comunicação social portuguesa, que tanto se tem interessado pela temática dos abusos sexuais de crianças e adolescentes. Uma ação dedicada, precisamente, à defesa das vítimas da pedofilia e da pornografia infantil: a do sacerdote italiano Fortunato di Noto e da associação Meter (www.associazionemeter.org), por ele fundada, ação retratada no livro de Roberto Mistreta Don Fortunato do Noto – La mia battaglia in difesa dei bambini (Paoline, 2021). Não conheço, mesmo, no âmbito do combate à pornografia infantil uma ação de tão vasto alcance como esta.

A associação Meter dedica-se à denúncia de redes de pornografia infantil e de tráfico de crianças para exploração sexual através de buscas na internet com as mais sofisticadas técnicas de navegação (as quais permitem o acesso à chamada deep web, onde se situa a maior parte das provas desses crimes). São aos milhares as denúncias enviadas anualmente a polícias de todo o mundo, algumas que levam à libertação de muitas das vítimas, outras que se deparam com dificuldades de vária ordem (como as relativas à cooperação internacional entre polícias e autoridades judiciárias) e acabam por não ter seguimento. São na ordem dos milhões as fotos e vídeos que todos os anos são detetados. Questionado sobre a coerência evangélica desta ação de denúncia de crimes junto de entidades policiais por parte de um sacerdote, o Pe. di Noto não tem dúvidas de que desse modo está a contribuir para a libertação de milhares de vítimas vulneráveis, indefesas e inocentes (e assim tem sido, efetivamente).

O conteúdo dessas fotos e vídeos é algo de indescritível e que atinge os limites da maior perversão (tenho tido ocasião de o confirmar em processos de que tenho tido conhecimento na minha profissão de juiz). As vítimas podem ser da mais tenra idade, até recém-nascidas. À exploração sexual muitas vezes se associa o sadismo e a tortura. Através da internet são trocadas, além das imagens, informações sobre formas de “compra” de crianças por catálogo. São astronómicos os montantes monetários envolvidos.

Também desse modo se difunde a pseudocultura pedófila, a tentativa de normalização e a apologia das relações pedófilas (a ponto de serem celebradas jornadas de “orgulho pedófilo”) e o negacionismo dos seus efeitos nocivos. Mensagens desse teor dirigidas às potencias vítimas (às próprias crianças) também se encontram nesses sítios da internet.

Ao contrário do que por vezes se afirma para justificar o livre acesso à pornografia, o consumo de imagens de pornografia infantil não é um sucedâneo da efetiva prática de abusos, mas estimula essa prática e com ela está muitas vezes associado.

Para além dessa ação de denúncia, a associação Meter dedica-se ao apoio às vítimas de abusos sexuais de crianças e adolescentes, e suas famílias, tal como a ações de formação nesse âmbito. A respeito da necessidade desse apoio, é significativo o que tem afirmado o Pe. di Noto sobre a persistência no tempo dos traumas desses abusos: uma criança abusada vive presa num corpo de adulto e está aí, a gritar, na escuridão e com medo, à espera de ser libertada. São duríssimas as palavras que ele tem usado quando se refere a sacerdotes responsáveis por esses abusos.

Calcula-se que sejam cerca de dezoito milhões, só na Europa, as crianças vítimas de abusos sexuais. Há indícios de que esse número vai crescendo. Com razão, fala a este respeito o Pe. Fortunato di Noto em holocausto silenciado e que muitos ignoram. Falo deste exemplo como contributo para uma visão mais correta e completa do fenómeno dos abusos sexuais de crianças e adolescentes, e também da ação da Igreja neste âmbito.