Estamos em maio de 2024, a um mês das eleições para o Parlamento Europeu. Façamos, a propósito, uma pequena incursão histórica para perceber melhor qual o estado da arte em matéria de patriotismo europeu. Remontemos ao abortado projeto de tratado constitucional de 2005 para relembrar, mais uma vez, não só a epopeia do facto histórico europeu, mas, também, a utopia comunitária do destino comum, por que importa prosseguir a grande aventura que faz da Europa um espaço privilegiado de esperança humana. E assim começava, de forma grandiloquente, a retórica constitucional da União, que as duas primeiras partes do tratado estabeleciam e consagravam.

Como sabemos, nos dias que correm, a retórica federal e a sua capacidade para suscitar o patriotismo europeu deixam muito a desejar, donde a dificuldade em propor uma iniciativa como o Ato Único Federal (Covas, 2011), um anexo aos tratados ou uma reforma dos tratados numa perspetiva federal. Não é tarefa fácil, para dizer o mínimo, e na Europa dita unionista o federalismo sempre se fez de forma furtiva.

O que nos deixa, talvez, perplexos, em tempo de policrise indisfarçável, é o facto de a União Europeia, através, por exemplo, de um ato modesto de natureza federal, não nos dar um sinal inequívoco de imaginação e ousadia políticas para relançar o projeto europeu em bases mais sólidas e sustentáveis, preferindo, em vez disso, esgrimir os aspetos instrumentais ligados aos défices e dívidas soberanas que são, obviamente, de crucial importância, mas não chegam. Quem se poderá, ainda, surpreender quando os cidadãos não entendem para que servem os seus governantes se, quando precisam deles, estes lhes respondem que não o podem fazer porque estão limitados pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Semestre Europeu e o Tratado Orçamental. Afinal, se os governos que elegem nada podem fazer por eles, qual é o significado efetivo de comparecerem em eleições e o que esperar delas em consequência?

Receio bem, portanto, que o imaginário europeu não esteja disponível para grandes aventuras, seja a retórica constitucional, a retórica federal ou a retórica cidadã da Conferência sobre o Futuro da Europa realizada entre abril de 2021 e maio de 2022 que propôs ao Conselho um relatório final com 49 propostas de reforma e 326 medidas. Nos três casos, não creio que o povo europeu seja capaz de captar a intersubjetividade do empreendimento europeu, não obstante algumas referências importantes e politicamente sensíveis como são aquelas que se fazem ao pilar social europeu, ao pacto ecológico e à qualidade de vida democrática.

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Assim, e numa perspetiva histórica, não temos, por enquanto, uma ideia tão luminosa como aquela que criou o Estado-nação. Voltámos, de certo modo, à ideia neomedieval de equilíbrio territorial ou, como agora se diz, à ideia de rede. Nesse sentido, o Ato Único Federal deveria estar mais próximo de uma constituição-rede do que de uma constituição-ordem. Para o ilustrar, apetece-nos refrescar a memória e regressar aos inspirados princípios federativos de Dusan Sidjanski (1992): uma federação deve recusar a ideia de hegemonia, uma federação deve renunciar ao espírito de sistema, uma federação não conhece problemas de minorias, uma federação deve promover a diversidade, uma federação repousa sobre o princípio da complexidade, uma federação privilegia as pessoas, os grupos e os seus bens comuns.

Dito isto, quem tem medo, afinal, destes princípios, quem tem medo de um Ato Único Federal baseado nestes princípios? Talvez aqueles com visões históricas grandiosas de um patriotismo soberanista para quem um Ato Único Federal inspirado nos princípios federais se configura como uma ameaça iminente. Não surpreende, portanto, que sejam eles a agitar o espantalho do demónio federalista, identificado, neste caso, com um superestado e com o unitarismo unionista. Uma vez criado o estigma federalista do superestado, todo o espaço público fica contaminado e sob suspeita. De resto, a dogmática anti-federal e nacionalista é, reconheçamo-lo, muito mais vigorosa do que aqueles atraentes princípios filosóficos e, no entanto, é óbvio que, com os sucessivos alargamentos, nos aproximámos rapidamente dos limites do institucionalismo burocrático de Bruxelas.

Seja como for, nas atuais circunstâncias, no ano em que tudo pode acontecer, estou convencido de que mesmo o unitarismo unionista e o institucionalismo burocrático de Bruxelas irão prosseguir a política dos pequenos passos e através de acordos políticos fora dos tratados e de fundos financeiros extraorçamentais irão adotar muitas medidas já propostas que apontam na direção do federalismo cooperativo de inspiração alemã. É meu entendimento que a União terá de rever o seu unitarismo atual, assumindo as funções de high politics ao centro e remetendo as funções de low politics à periferia, para os Estados, as regiões e as cidades, que, em conjunto, constituem um imenso potencial federal ainda por explorar. Se esta perequação territorial acontecer o patriotismo europeu regressará.