Volto ao tema da governação multiníveis no âmbito da União Europeia (OBS, 09.01.2021), agora que temos três programas de fundos europeus – PT 2020 (até 2023), PRR (até 2026) e PT 2030 (até 2030) – para aplicar durante esta década. É certo, pensar a década é pensar para a eternidade, porém, depois do pacto ecológico europeu, do plano de ação digital, do pacto das migrações, da revolução nos mercados de trabalho, da estratégia europeia de segurança e defesa, nada será como dantes. As grandes transições desta década não seguirão, provavelmente, um guião bem estabelecido e este facto relevante mina a segurança da política das administrações e a estabilidade institucional dos incumbentes respetivos. Tudo parece estar em causa e nunca, como agora, as reformas da governação multiníveis e do Estado-administração foram tão necessárias.

As mudanças funcionais e institucionais desta década acontecerão em quatro níveis de governo e administração: o nível supranacional da União Europeia, o nível nacional dos Estados-membros, o nível infranacional e transnacional das regiões, enfim, o nível cidadão das comunidades inteligentes e das plataformas colaborativas. Vejamos alguns aspetos deste policy-problem.

O contexto geral das reformas político-administrativas

As reformas em perspetiva nos vários níveis de governo e administração poderão ser observadas em cinco planos principais:

  • A reforma jurídico-institucional da União Europeia: mais federal, comunitária ou intergovernamental, após a conferência sobre o futuro da Europa;
  • A reforma jurídico-institucional dos Estados membros: alterações no funcionamento e relação entre os diferentes níveis de administração pública;
  • A reforma político-administrativa nos níveis subnacionais de administração: regionalização administrativa e descentralização administrativa para as autarquias;
  • As reformas técnico-administrativas: alterações administrativas introduzidas pelo processo de transformação e inovação digitais;
  • As reformas na democracia participativa e colaborativa: a inovação coletiva introduzida pelas plataformas digitais colaborativas.

No que diz respeito à estratégia de inovação prosseguida, ela pode seguir vários caminhos e velocidades: uma política prudente de pequenos passos, uma política de rutura com as rotinas convencionais, uma mudança corporativa impulsionada por certos grupos ou setores, enfim, uma política de inovação mais distribuída com base em plataformas colaborativas de grupos de cidadãos. Não há, porém, reformas em estado puro, por isso, o mais provável, é um hibridismo reformista como este:

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  • União Europeia: um complexo de áreas ou atribuições triangulares, mais federais, mais comunitárias e/ou mais intergovernamentais;
  • Estados-membros: subsidiariedade e governação multiníveis com uma redistribuição variável de atribuições e competências pelos níveis subnacionais de governo e administração de acordo com cada idiossincrasia política nacional;
  • Democracia colaborativa: muitos formatos e soluções a partir de iniciativas de coprodução e cogestão com os cidadãos por via de plataformas digitais;
  • Sociedade algorítmica: o hibridismo das reformas passará, em boa medida, pela transformação digital e inteligência artificial, isto é, pela governação algorítmica no quadro da chamada sociedade algorítmica europeia.

Estas são as hipóteses em aberto. Ora, na aldeia global e na União Europeia, com as consequências profundas da transformação digital e da sociedade algorítmica, todas estas questões deixam de ser questões de estrutura para passarem a ser, antes de mais, questões de processo e procedimento, questões de governabilidade mais do que questões de estrutura ou sistema. Por isso, muito mais do que o governo e a governação, confinados pela lógica convencional da fronteira do Estado-administração, temos, hoje, em agenda, o tema da governabilidade em território aberto onde a transformação digital, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas desempenham um papel cada vez mais fundamental. Em síntese, multilevel governance e networking state, de um lado, a mutação do poder em responsabilidade nas relações entre a administração e o cidadão, do outro. Vejamos, então, os diversos níveis em presença.

União Europeia, subsidiariedade e administração

Ao nível da União Europeia, e agora que se prepara uma conferência sobre o futuro da Europa, as mudanças poderão ocorrer em cinco planos principais:

  • No plano do mercado único europeu: assistiremos a uma revolução digital com consequências nos mercados de trabalho, nos fluxos migratórios e no desenho das cadeias de valor; a reindustrialização do mercado único europeu será conduzida no quadro do pacto ecológico e do plano de ação digital europeus pelo que seremos os atores principais da 4ª revolução industrial, a revolução da inteligência artificial e da economia circular;
  • No plano da moeda única europeia: assistiremos, provavelmente, à fase seguinte da união política federal, por via de um mix, singularmente europeu, de política monetária e política orçamental, de natureza mais claramente neokeynesiana; de facto, não se trata apenas de manter a coesão interna da União Europeia, mas, também, de reforçar os programas de cooperação e ajuda internacionais sob pena de assistirmos ao desmoronamento de uma parte substancial da comunidade internacional;
  • No plano das alterações climáticas e da saúde pública: assistiremos, provavelmente, a um reforço dos bens comuns globais não apenas no quadro europeu, mas, também, no quadro da comunidade internacional; de resto, os efeitos globais da pandemia, das alterações climáticas e o colapso de algumas economias domésticas marcarão profundamente toda a década, com muitos acidentes imprevistos e outros tantos choques assimétricos;
  • No plano das migrações: assistiremos, provavelmente, a um reforço dos fluxos erráticos de população, de asilados políticos de estados autocráticos e de estados falhados, refugiados ambientais, refugiados da fome e da doença, refugiados por motivos étnicos e religiosos e de género, onde tudo se confunde com tudo, com consequências inelutáveis sobre a natureza e qualidade dos movimentos sociais e da política doméstica dos estados europeus recetores;
  • No plano da segurança e da defesa: assistiremos, provavelmente, a uma revisão das relações de vizinhança com a Federação Russa, o Grande Médio Oriente e o Norte de África, razão pela qual daremos os passos necessários em direção a uma organização especificamente europeia de defesa e segurança e a um Conselho de Segurança Europeu.

Os Estados em rede

Ao nível dos Estados-membros, a transformação digital, impulsionada pelo plano de ação da União Europeia, irá traduzir-se numa dinâmica mais inovadora do princípio de subsidiariedade, ascendente e descendente.  Neste duplo movimento é muito provável que o Estado-administração reinvente as suas missões em redor de três funções nucleares e seu equilíbrio respetivo: o Estado-Providência do século XXI, o Estado-Regulador da economia do bem-estar e o Estado-Procurador da justiça social e ambiental. Para além, evidentemente, de alguns ajustamentos nas clássicas funções de soberania.

Por outro lado, com a revolução digital e a sociedade em rede, um estado-administração omnipresente que está sempre a exigir conformidade já não faz muito sentido, pelo que, progressivamente, a decisão administrativa unilateral, em algumas áreas, será substituída por uma deliberação participativa e colaborativa entre administração pública e comunidades inteligentes representativas. De resto, os princípios desta nova cultura administrativa já são conhecidos: de uma cultura de poder para uma cultura de responsabilidade, do interesse geral abstrato para o patrocínio do interesse público, da autoridade vertical para a governação em rede, do ato administrativo para a participação dos interessados, da segurança da administração para a administração aberta e o respeito pelos direitos de cidadania.

Aqui chegados, e face às consequências sociais da pandemia, está em causa o Estado-Providência para o século XXI. Agora que se discute o pilar social da União é a altura de atribuir maior destaque à cooperação regional descentralizada, às redes de cidades e às plataformas colaborativas de cidadãos.

Cooperação regional descentralizada e coesão territorial

A este nível de governo e administração, e depois da emergência pós-pandemia, esperemos que alguns assuntos ditos menores não sejam sacrificados e que um desses assuntos seja, justamente, a coesão territorial no interior da União Europeia, por maioria de razão quando a teoria da estabilidade e da condicionalidade prevalecer novamente sobre a teoria da coesão e da solidariedade. Essa é, também, a razão pela qual nós dizemos que falta uma doutrina regionalista à União Europeia e que é um crime de lesa-Europa não aproveitar o potencial de crescimento distribuído que reside na Europa das Regiões, nas redes de cidades e nos agrupamentos europeus de cooperação territorial.

Em conjuntura de recuperação e resiliência, este é também o momento para elaborar um pouco mais fora da caixa no que diz respeito à política de coesão mais convencional que, em minha opinião, continua a girar muito em redor do Estado vertical, suas clientelas e destinatários habituais. Uma política de cooperação territorial descentralizada poderia surgir como um espaço de concertação de iniciativas e projetos, associada a fórmulas organizativas mais inovadoras e libertas da tutela administrativa mais tradicional. No resto, a cooperação regional descentralizada poderia funcionar como instrumento estabilizador de eventuais conflitos político-sociais, onde se contam, também, alguns regionalismos emergentes nas suas formas mais radicais.

De facto, no contexto de uma multiterritorialidade mais claramente unionista ou federal, a coesão territorial e a política regional deveriam ser variáveis exógenas poupadas à austeridade de uma macroeconomia disciplinar de curto prazo. Uma abordagem possível desta Europa das Regiões corresponderia a organizar o território europeu através de uma rede de macrorregiões europeias (a península ibérica, por exemplo), de regiões transfronteiriças e transnacionais e de redes de cidades agrupadas segundo várias temáticas. Esta Europa das Regiões teria o mérito de ser muito mais cultural, humanística e simbólica, mas, sobretudo, muito mais colaborativa e solidária por comparação com a Europa atual das mercadorias e dos capitais.

Estamos em maio de 2021, ainda em plena pandemia e com uma grave crise económica e social pela frente. As consequências no plano da coesão territorial são muito assimétricas. Os problemas estruturais das regiões menos desenvolvidas irão agravar-se mais uma vez, depois dos ajustamentos da crise de 2008. Em consequência, a eficácia e a equidade da política estrutural europeia estarão sob observação permanente. Por isso, nós dizemos que a vitalidade das culturas locais e regionais e a sua cooperação territorial descentralizada são imprescindíveis para trazer um suplemento de alma à construção do pilar social do projeto europeu. De resto, em virtude das assimetrias criadas, estará em causa a legitimidade política própria de cada região, razão pela qual, estaremos, digamos, obrigados a cuidar da imagem da representação territorial no quadro, justamente, de uma multiterritorialidade europeia mais policêntrica e descentralizada.

A cidadania responsável e a sociedade colaborativa

Finalmente, no quarto nível, todos nós aguardamos que as grandes transições desta década nos tragam uma reorganização da sociedade civil em linha com a arte brilhante da associação de interesses (Alexis de Toqueville), sobretudo, dos interesses difusos dos cidadãos. Para este desiderato contribuirá em muito a nova cultura administrativa que é praticada por redes descentralizadas e distribuídas em modo de coprodução e cogestão, enquanto as redes sociais, as comunidades inteligentes e as plataformas colaborativas alargam a base representativa do que pode ser considerado o interesse público.

Assim, na sociedade em rede, as novas associações de interesses irão reclamar, naturalmente, uma administração mais aberta, ágil e de geometria variável no quadro de uma renovada territorialidade europeia.  Esta territorialidade europeia poderia assumir a forma de um New Deal regionalista e colaborativo de inspiração federal e ligando macrorregiões europeias, euro-regiões, redes de cidades, de universidades, de associações empresariais, de centros de investigação, de instituições sociais e culturais de todo o tipo, tendo em vista criar capital social e capital simbólico especificamente europeus e, assim, dando corpo, substância e significado ao conceito de bens comuns europeus e sociedade colaborativa europeia.

Os exemplos deste New Deal, ao mesmo tempo regionalista e cosmopolita, já existem e poderiam abranger:

  • O reforço dos programas de mobilidade de estudantes e investigadores;
  • A responsabilidade social de todas as iniciativas e projetos financiados com fundos comunitários (inclusão de refugiados);
  • A solidariedade europeia para com os grandes riscos e os bens comuns globais;
  • Um direito específico europeu para lidar com os projetos transfronteiriços e transnacionais (integração de refugiados);
  • Um direito próprio e um quadro de cooperação apropriados para as autarquias locais e regionais;
  • Um programa europeu de saúde para a mobilidade dos “grandes doentes e deficientes”;
  • Uma abordagem comum europeia aos serviços de interesse económico geral;
  • O reforço dos programas europeu de combate à desertificação e uma atenção especial às estratégias de conservação e biodiversidade;
  • Um programa europeu de iniciativas locais de emprego visando a integração dos desempregados de longa duração.

Notas Finais

No final, e seja qual for a repartição de competências entre a União Europeia e os Estados-membros, haverá, muito provavelmente, por via dos governos nacionais, uma cumplicidade entre estes dois níveis de governo e administração e, como efeito colateral, uma relação assimétrica face às administrações subnacionais, bem como aos direitos, interesses e aspirações dos cidadãos.

Perante tanta indeterminação, o mais provável é um período de transição, mais ou menos longo, caracterizado por uma sobreposição de modos de administração. Neste percurso, o Estado-administração fará, muito provavelmente, o caminho que o levará do Estado-Providência ao Estado-Procurador com passagem obrigatória pelo Estado-Regulador, isto é, um Estado composto, em doses crescentes, de providência, regulação e procuração, mas, também, um Estado promotor e patrocinador do associativismo de interesses, seja do lado da oferta ou do lado da procura, podendo, ele próprio, propor-se formas supletivas de associativismo da procura em coprodução e cogestão com os cidadãos da sociedade colaborativa.

Por outro lado, não me surpreenderia que, perante uma politização acrescida da União Europeia ao longo da década, colocando o Conselho Europeu e o Conselho de Ministros em rota de colisão com as instituições mais supranacionais da União, as administrações públicas corram o risco de ser instrumentos de ação política mais do que instrumentos de cooperação técnica e administrativa. Nesse contexto, e se assim for, é provável que a próxima turbulência orçamental e monetária na União se repercuta desconfortavelmente sobre as administrações nacionais. Acresce uma questão recorrente da maior importância, a saber, a polarização do problema regional e a sua irrupção sobre a forma de regionalismo político exacerbado. A questão pertinente, desde já, é a seguinte: na iminência de uma questão regional séria, por que não antecipar, no quadro da próxima conferência sobre a Europa, uma reforma político-institucional da União Europeia que traga algum conforto às regiões mais problemáticas, na linha de uma genuína Europa das Regiões? Se nada acontecer nessa direção, o resultado poderá ser uma nova fonte de politização da administração pública no seu conjunto, arrastada pelo radicalismo populista e independentista, como, de resto, mostra bem a experiência britânica.