A saúde pública tem um problema: o êxito desvaloriza-a. Quando há uma epidemia como a do Ébola ou misteriosos surtos como o da Legionella, é fácil reconhecer-lhe a utilidade e, até, o fascínio. A caça ao “doente zero” nas florestas da África Ocidental ou a pesquisa detectivesca dos técnicos que, em Vila Franca de Xira, localizaram a bactéria assassina nas torres de refrigeração das fábricas, apelam à imaginação mediática e popular. Mas, quando corre tudo bem e a prevenção é eficaz, nada acontece: ninguém adoece, não há sangue nem feridos nas salas de emergência dos hospitais, não há gritos. É fácil esquecer o que se ganhou: as mortes que não houve, as sequelas que não ficaram e as dores que não aconteceram. Depois do pânico inicial, nem mesmo Hugh Laurie conseguiria emprestar dramatismo às máscaras de papel e aos frascos de desinfectante que nos acompanharam durante a epidemia de gripe A.
Não é um problema novo. A vacina de Jenner apareceu em 1797. Em 1857, num documento enviado ao parlamento, o General Board of Health do governo britânico assinalava que, tendo a varíola deixado praticamente de ser uma doença mortal “entre as classes civilizadas”, as “classes civilizadas” não queriam saber da vacina. Talvez, sugeria-se, porque “the very success of vaccination may have blinded people to its importance.“
Os movimentos de objecção aos programas de vacinação começaram com os próprios programas e não só não enfraqueceram com o passar do tempo como são cada vez mais organizados e militantes (ver, por exemplo, aqui).
Há objectores para todos os gostos, dos filosóficos e religiosos aos “alternativos”, como os vegans éticos, que recusam vacinas cuja produção envolva animais (recusam, por exemplo, a vacina da gripe porque o seu desenvolvimento exige ovos de galinha). Uma defesa da vacinação elaborada em 2007 pelos institutos Robert Koch e Paul Erlich, além de sóbria e esclarecedora é também um belo catálogo das objecções mais em voga, e que vão da dúvida razoável (“as vacinas não conferem protecção a longo prazo e têm que ser repetidas”, ou “podemos adoecer apesar da vacinação”) à teoria da conspiração (“a indústria farmacêutica só quer ganhar dinheiro com a imunização”) e à pura iliteracia científica (“a eficácia das vacinas nunca foi provada” ou “nenhum dos supostos agentes causadores de infecção foi até hoje visto ou isolado”). Sendo a melhor de todas (ou a mais idiota) que “muitas das doenças contra as quais somos vacinados já não existem na Europa”. Aparentemente, não ocorre a quem diz isto que essas doenças não existem por causa das vacinas.
Esta atitude, feita de negligência e esquecimento, não pode ser vista como uma excentricidade inconsequente: a epidemiologia diz-nos que é necessária uma cobertura superior a 80-90% da população para conter eficazmente a propagação de um agente infeccioso e abundam os exemplos, antigos e modernos, dos resultados dramáticos de não cumprir esse objectivo.
Em 1872, em Estocolmo, a maioria da população recusou a vacinação contra a varíola e a taxa de cobertura caiu para 40% (contra 90% no resto da Suécia): uma epidemia varreu a cidade em 1874 (o que fez as pessoas mudarem de ideias). Em 1998, um estudo publicado em Inglaterra propunha uma associação entre a vacina tríplice e o autismo. A taxa de cobertura caiu em consequência, para valores abaixo dos 80%, e os casos de sarampo diagnosticados, que em 1998 tinham sido 56, passaram dez anos depois para 1348. Nos EUA, várias epidemias de sarampo têm ocorrido ao longo dos anos em comunidades religiosas que recusam a vacinação.
Olhados desta maneira, os objectores da vacinação parecem um bando de fanáticos, ignorantes e irresponsáveis. Mas há outra maneira de olhar para esta história: a compulsão legislada pelo Estado, ainda que assente na evidência científica, atinge directamente as liberdades civis, tão caras às nossas sociedades demo-liberais.
De facto, os grandes movimentos de contestação às vacinas no Reino Unido não apareceram com a vacina da varíola, nem mesmo com o Vaccination Act de 1840 que, essencialmente, garantia a vacinação gratuita aos pobres. A contestação surgiu com a revisão da lei de 1853, que tornou a vacinação das crianças obrigatória e sujeitava os pais negligentes ou refractários a multa ou mesmo prisão. É então que se sucedem revoltas em diversas cidades e é fundada (em 1867) a Anti-Compulsory Vaccionation League, cuja declaração inicial afirmava: “It is the bounden duty of parliament to protect all the rights of man … By the vaccination acts … parliament has reversed its function.”
A revolta contra a vacinação é uma revolta política.
Nas décadas seguintes sucederam-se os livros, os jornais e as manifestações. Em 1885, uma manifestação em Leicester juntou na rua 100 mil pessoas. Em 1892, uma comissão real recomendou uma revisão do Vaccination Act que incluía o fim da criminalização e uma cláusula de consciência que permitia aos pais alegarem descrença na eficácia da vacina para a recusarem aos filhos. A revisão foi aprovada e, de facto, introduziu na lei inglesa o conceito de “objector de consciência”.
Chegados aqui, e reposto (espero) algum equilíbrio na forma como olhamos para esta questão, importa distinguir entre direitos civis enquanto garantia de liberdade (individual ou de uma minoria) e o que são deveres de cidadania (de participação na cidade). Não se pode confundir o direito de não participação (por exemplo na tomada de decisões) com um pretenso direito a beneficiar da cidade sem nada pagar por isso (através dos impostos, sim, mas também pelo cumprimento da lei e a partilha de esforços, sejam eles a defesa nacional ou a observação do plano nacional de vacinação).
A vacinação é uma “medicina” com características muito particulares: é a inoculação de qualquer coisa estranha no corpo de pessoas que não estão doentes. É natural que desperte objecções e desconfiança. Contrariar essa tendência passa por explicar às pessoas o que são as vacinas e como funcionam, de forma persistente, rigorosa e clara.
É preciso construir uma “cidadania da vacina”.