Uma família em isolamento, dia 5

“Desculpa, filha. Eu não devia ter dito isto. Não ligues. O pai está cansado, estamos todos. Isto custa a toda a gente, aos crescidos também. Desculpa.”

Não sei se foi exatamente assim. Nem sei quando foi. Mas já foi. Mais do que uma vez. Em mais do que um dia. E se calhar hoje poderá acontecer novamente. E amanhã também. Assim ou de outra forma. Também já houve gritos, choro, birras. Já houve momentos em que me apeteceu a mim fazer uma birra. Já houve momentos em que, em vez de dizer bom dia aos vizinhos e aplaudir à janela, o que me apeteceu foi gritar à janela. E também já houve alguns tiros ao lado com a minha mulher (eufemismo para “já fui um grande parvalhão”). Uma palavra fora do sítio ou uma resposta torta que poderia ter ficado por dizer.

Já houve momentos maus. Já todos os devemos ter tido, desde que – por causa do coronavírus e do isolamento social recomendado – começámos a viver de forma tão intensa com as pessoas com quem habitamos. Poderá haver quem tem apenas histórias felizes e esteja a conseguir gerir tudo de forma equilibrada, com doses certas de yoga, unicórnios, brincadeira com os filhos, mindfulness, trabalhos de casa, sementes de chia e sol a entrar pelas janelas escancaradas. E haverá também, claro, histórias terríveis de terror psicológico e pressão, de agressores a conviver 24 horas por dia com vítimas de violência doméstica, de pais negligentes, descompensados ou maltratantes a exercer todos os dias as suas incompetências parentais.

Haverá de tudo. Nomeadamente histórias comuns como a minha e das minhas duas filhas, com 6 e 7 anos (a mãe é enfermeira e tem estado a trabalhar), que levamos mais de uma semana de isolamento voluntário (cinco dias com escolas fechadas). Tal como muitos milhares de pessoas, já tivemos os nossos momentos. E tal como muitos milhares de pessoas, já tive alturas em que hiperventilei e fiz contas à vida, preocupado com o que possa estar por vir.

E o que está por vir é mau. A todos os níveis. As próximas três semanas, pelo menos, poderão ser dramáticas e serão ainda mais quando, entre os infetados ou as vítimas, começarem a aparecer nomes de pessoas que conhecemos. Quando isto deixar de ser, para muita gente, uma coisa terrível que está a acontecer aos outros e passar a ser uma coisa terrível que nos está a acontecer a todos – com repercussões nas nossas famílias, amigos, colegas ou conhecidos. Quando for o vizinho do lado, o colega da secretária em frente ou alguém da nossa família a receber um diagnóstico, vai ficar pior. Vai doer mais.

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Um dia, mais tarde, isto vai passar. Acreditamos, com toda a força e otimismo que #vaificartudobem e que isto ainda vai fazer de nós pessoas melhores. Sobretudo se respeitarmos os que vivem connosco, se mantivermos os níveis de cordialidade e empatia (aumentá-los, até), se conseguirmos dar afeto e proteção aos que amamos e se conseguirmos estar disponíveis para receber esse afeto e essa proteção.

Daqui a uns meses ou anos olharemos para estes tempos e talvez consigamos pensar no que fizemos bem ou mal na gestão de emoções durante as semanas ou meses fechados em casa. Agora pouco importa. Quando chegar esse futuro, logo pensamos nisso. Agora, com os números a aumentar e o monstro a instalar-se, não conseguimos refletir sobre o assunto. Agora só conseguimos relativizar.

Hoje não, que os miúdos têm trabalhos para fazer e já são horas de jantar.

Hoje não, que os filhos estão quase a matar-se em discussões por estarem fechados e já se acabou o álcool e agora como é que desinfeto tudo?

Hoje não, que os filhos não me podem ver assim porque tenho que lhes dar segurança e conforto.

Hoje não, porque se eu lhes falto, o que será deles?

Hoje não, porque me queixo de barriga cheia, quem vive na rua e não tem um teto nem uma refeição quente é que tem razão para estar mal.

Hoje não, porque eu tenho trabalho e o dinheiro entra no fim do mês, quem ficou agora desempregado é que está mal.

Hoje não, porque não estamos num país em guerra e temos uma casa, quem teve uma bomba a entrar-lhe pelo telhado adentro é que está mal.

Cada pessoa tem a sua bagagem e lida com isto como pode. Mas hoje não, amanhã logo pensa nisso. Um dia de cada vez. Na próximas semanas ou meses, o tempo que teremos de passar dentro de portas, sozinhos ou com as nossas famílias, é o mesmo que temos de passar com os nossos fantasmas e as nossas dúvidas e as nossas lutas e as nossas angústias. E isso vai trazer as desordens mentais, os transtornos, as depressões, a falta de paciência, o cansaço extremo. Uma carga de trabalhos para os psicólogos nos anos vindouros – haja alguém com trabalho depois disto tudo. Não há nada de mal em sentir tudo isto. Temos é de falar sobre isso. Um dia. Hoje não.

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