As conferências de imprensa anuais de Vladimir Putin, a última das quais durou cerca de 4 horas, transformam-se cada vez mais em momentos carnavalescos, contribuindo para isso o número recorde de jornalistas presentes: 1985, bem como o circo montado para o efeito.

Desta vez, os jornalistas foram proibidos de levar cartazes grandes para chamar a atenção do Presidente russo e talvez por isso tenham recorrido a meios mais coloridos e animados: um jornalista de cabelo cor de laranja e uma de roxo que mais pareciam espectadores de um concerto punk ou adeptas do grupo russo Pussy Riot; outra, do meio da multidão, levantava um pequeno cartaz onde se lia: vamos casar; um terceiro levantava um grande ícone nas mãos; outra ostentava também nas mãos umas tradicionais botas de felpo com bandeiras da Rússia; mais outra erguia bem alto o dístico com a inscrição: Putin é o Presidente do Mundo/Paz (a palavra russa мир pode significar uma coisa e outra).

Algumas das frases podiam ter duplo sentido: “Deem veneno” ou “O povo pode viver sem servos”, pois não ficou claro a quem se devia dar o veneno ou se os servos que se tinha em vista eram os actuais políticos russos.

Nas respostas às perguntas, Putin dedicou particular atenção a dois temas: União Soviética e Ucrânia. Quanto à URSS, ele reafirmou que tem pena de que esse país não exista, embora as explicações para isso tenham sido bastante contraditórias. O dirigente russo afirmou que Vladimir Lenine, fundador da URSS, não era um estadista, mas um revolucionário “que transformou um Estado unitário milenar numa confederação: etnias ligadas ao território tiveram o direito a separar-se do Estado”.

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“Os territórios foram talhados incorrectamente, sem corresponderem aos locais de residência das etnias, o que se faz sentir até agora. Por isso conservam-se 2 000 pontos dolorosos, se os libertarmos, tudo será possível”, frisou.

Neste contexto, é importante assinalar o que, segundo Putin, espera a Ucrânia. Ele recordou que “ela, na era soviética, recebeu uma grande quantidade de território que não lhe pertencia de maneira nenhuma. São terras verdadeiramente russas que foram entregues à República Ucraniana com a estranha fórmula “para o aumento da percentagem do proletariado”. Mas logo que o partido [comunista] começou a desintegrar-se, começou a desfazer-se também o país. Esta herança de Lenine faz-se sentir ainda hoje”.

Mas se Lenine pode descansar em paz no seu Mausoléu na Praça Vermelha, porque, segundo o dirigente russo, “para muitos é um monumento importante”, já a Ucrânia não deverá ter ilusões quanto à política de Moscovo em relação a ela: a Rússia “devolveu” a si própria a Crimeia, ocupou militarmente parte do Leste da Ucrânia, não obstante Putin continuar a negar a presença de tropas russas nessa região, tal como negou a presença de “homenzinhos verdes” na Crimeia, e, caso surja oportunidade, ainda há muitos territórios a “reunificar”.

Vladimir Putin voltou a manifestar indignação face à decisão do Parlamento Europeu de equiparar o comunismo e o nazismo, considerando que “se pode de todas as formas amaldiçoar o estalinismo, e muitas críticas são justas, mas pôr ao mesmo nível a União Soviética e a Alemanha fascista é o cúmulo do cinismo”.

Mas os argumentos apresentados continuam a ser muito gastos, nomeadamente a negação de que Estaline invadiu a Polónia em 1939. Segundo ele, as tropas soviéticas apenas entraram nesse país “depois do governo polaco ter perdido o controlo sobre as suas forças armadas e sobre o que acontecia no território do país”. Reconhecendo que existiu o Pacto Molotov-Ribentrop, justificou-o com o facto de “a URSS ter sido o último Estado da Europa que assinou com o Terceiro Reich um tratado de não agressão”, frisando que, nessa altura, a União Soviética não tinha outra escolha. Além disso, frisou o facto de “Estaline não se manchou com contactos directos com Hitler, mas os dirigentes de França e da Grã-Bretanha encontraram-se com ele e assinaram papelinhos”.

Em 2009, na cerimónia do 70º aniversário do início da Segunda Guerra Mundial, realizada na Polónia, Putin considerou que esse pacto era “imoral”, frisando que “o Parlamento do nosso país condenou o Pacto Molotov-Ribbentrop. Tendo em conta a evolução dos “conhecimentos históricos” do líder russo, o mundo deve esperar “grandes revelações” sobre o tema no artigo que Putin prometeu escrever sobre a Segunda Guerra Mundial, com base em documentos ainda secretos. Mas porque é que a Rússia demora tantos anos para publicar documentos secretos? Que critérios segue quando os revela? Tem medo de quê? A Segunda Guerra Mundial terminou há quase 75 anos!

O dirigente do Kremlin, que, como já vimos, fica indignado quando é colocado um sinal de igualdade entre o nazismo e o comunismo, utilizou o exemplo de um veterano do KGB com quem se cruzou no trabalho para mostrar que ele está contra purgas como as de 1936-1937 no país cujo fim ele lamenta:  “De manhã, um homem que não sabia de nada, chegava ao trabalho e, à noite, entregavam o seu corpo fuzilado à família. Esse velhote, de que todos receavam, era o executor das sentenças”.

Claro que Putin não revelou quantos fuzilamentos fez o velhote, nem os serviços secretos soviéticos, mas as estatísticas mostram que a máquina repressiva comunista não ficou atrás da nazi.

Para o Kremlin, a “vitimização dos russos” continua a ser uma das mais importantes componentes da sua propaganda para o exterior. Para Putin, a russofobia e o anti-semitismo na Europa actual fazem muito lembrar-lhe alguma coisa. Isto não passa de uma manobra para fazer crer que russofobia é sinónimo de discordar com o actual dirigente russo e a sua política autocrática e repressiva. Felizmente, a Rússia é muito, mas mesmo muito mais do que o autocrata demagogo.