Com a última Conferência Constituinte, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian e presidida por António Barreto, concluímos esta semana o nosso ciclo de debates sobre a Constituição da República Portuguesa. Foi uma iniciativa que desenvolvemos com o maior cuidado e a maior abrangência. A fim de estimular e focar a discussão, partimos de uma proposta de revisão constitucional elaborada por cinco jovens investigadores em 2011. Uma equipa composta por Gonçalo Almeida Ribeiro, Tiago Fidalgo de Freitas e Jorge Fernandes, acompanhou todos trabalhos e zelou pela sua qualidade técnica. Estivemos nas faculdades de direito da Universidade de Lisboa, da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica do Porto. Contámos com alguns dos melhores especialistas das escolas jurídicas nacionais, que se juntaram a outras vozes credenciadas da academia e da sociedade civil. Os debates foram abertos, vivos, profundos e rigorosos. No site do Observador, criámos uma secção especial dedicada à Nova Constituição, onde é possível encontrar textos de muitos dos participantes do debate, “explicadores” elaborados pela equipa técnica, além das mais curiosas histórias da Assembleia Constituinte de 1975 superiormente investigadas e contadas por Miguel Pinheiro. Estamos gratos a todos os que participaram, incluindo o público que frequentou as sessões ou que as seguiu on-line. Valeu a pena.
O que resultou dos debates? Na última Conferência Constituinte, no passado dia 2 de Junho, fizemos questão de homenagear os deputados constituintes, no aniversário da inauguração da Assembleia Constituinte em 1975. Nesse dia de Junho de há quarenta anos, o país encontrava-se prisioneiro de facções militares, alinhadas com o PCP e a extrema-esquerda, e determinadas a impor algum tipo de socialismo autoritário. A maioria da Assembleia conseguiu afirmar a opção por um Estado de direito democrático, embora num complexo exercício de sincretismo constitucional. Nos anos seguintes, o consenso das maiores forças políticas levou à integração europeia e à liberalização da sociedade portuguesa. A Constituição foi devidamente emendada, quer por via de revisões votadas no parlamento, quer por meio da sua reinterpretação pelos tribunais, no âmbito da fiscalização constitucional da legislação corrente.
Para alguns, a Constituição de 1976 deixou assim de existir. O problema é que, 40 anos depois, não é claro qual a verdadeira natureza da Constituição que temos. Mais do que uma Constituição, a República Portuguesa tem hoje uma espécie de confusão constitucional. Esta confusão tem dado muitas oportunidades aos nossos juristas para exibirem o seu virtuosismo hermenêutico, mas é também uma causa de perplexidade para a maioria dos cidadãos. Há quem acredite que a Constituição, mesmo depois de todas as revisões, continua a vincular os governos a políticas públicas de tipo socialista, e a fomentar expectativas e mentalidades nesse sentido. Mas também há quem defenda que a Constituição não é um obstáculo para o que quer que seja, e que nada teria deixado alguma vez de ser feito por causa da Constituição. Seja como for, temos pelo menos uma situação de incerteza constitucional. Numa época em que a sociedade portuguesa precisa de ajustar-se a um mundo em mudança, não é uma situação saudável. Constitui um factor de dramatização mórbida da nossa vida democrática, ao permitir que certas opções de governo sejam encaradas como rupturas de regime.
Para ultrapassar estes impasses constitucionais, não faltam soluções em termos jurídicos, e todas com advogados persuasivos. Mas para além das emendas, há uma questão política. Com alguma habilidade, talvez seja possível proceder a pequenas alterações parciais, mais ou menos cirúrgicas, sempre do agrado da prudência e do pragmatismo. Mas é nossa opinião que só um novo “momento constituinte” poderá proporcionar o esclarecimento de que os cidadãos precisam, e ao mesmo tempo dar à elite política a ocasião de confirmar os compromissos de regime. E talvez seja essa refundação do consenso democrático a condição necessária para avançar com aquelas reformas do regime de que muito se fala, sempre sem resultados, como as que dizem respeito à lei eleitoral ou ao sistema judicial. Mas estará a elite política, depois das divergências e dos confrontos dos últimos tempos, disposta a pactuar? Foi essa a grande pergunta que estas Conferências deixaram. Teremos a resposta ainda este ano?
Com estes 50 dias de debate público, o Observador orgulha-se de ter demonstrado que é possível pôr em diálogo pessoas com opiniões diferentes, discutindo sem preconceitos os caminhos que podemos ter em comum.
No início, houve quem não nos desse o direito de tomar esta iniciativa. Um jornal a promover um debate sobre a Constituição? Não podia ser. Felizmente para todos nós, a gente que pensa assim não está à frente de nenhuma comissão de censura. Vão ter, portanto, de ter paciência enquanto usamos o nosso direito e cumprimos o nosso dever de informar, e suscitar e aprofundar o debate público com todas as partes interessadas. Como disse António Barreto, aos poderes estabelecidos nunca dá jeito que os cidadãos falem. Mas o Observador não veio para estar calado, e não vai estar calado. O Observador não veio para servir os poderes estabelecidos, e não os vai servir. Esperem outras iniciativas. Esperem mais incómodos. Esperem o que devem esperar de um jornal novo, independente e livre.