Os londrinos orgulham-se tremendamente de terem sobrevivido ao Blitz. Até repescaram este argumento para constatar que sobreviverão ao brexit. Os lisboetas não têm uma data tão emblemática para se gabarem de sobrevivência, mas para calamidades políticas há que reconhecer uma brutal resiliência de Lisboa e seus habitantes para viverem sem excessivas consultas de psicoterapia, e mantendo a cidade um local aprazível, perante a gestão camarária de Fernando Medina. De facto, no segundo mandato de Medina destacam-se as decisões com impacto negativo no quotidiano das pessoas que vivem e trabalham em Lisboa. Deixo três exemplos.

O primeiro. As trotinetes. Meu Deus, mas porquê trotinetes? Abundam pelas redes sociais fotografias de trotinetes abandonadas nos passeios, tapando caminhos, entradas, transformadas em armadilhas para os peões. A CML garante agora que vai multar os transgressores. Terá certamente um agente atrás de uma árvore em cada passeio a vigiar quem abandona trotinetes fora de sítio. (Ainda bem que não tem, que isso seria de uma vigilância opressiva totalitária.) Em todo o caso, transparece a ideologia da câmara: em vez de se cuidar da introdução das trotinetes com incentivos que impedissem o abandono e propiciassem a boa utilização (um dispositivo que cobrasse o uso das trotinetes até que fosse colocada num local apropriado, por exemplo), a câmara permite o mau uso para de seguida se entreter a ganhar dinheiro através de multas.

Mas as trotinetes não são uns instrumentos do demo apenas pelo abandono. Vemos por aí gente tonta de trotinete nas ruas em vez de nos passeios, muitas vezes (quando lhes é conveniente) até em contramão. Claro que andam no asfalto – nem as trotinetes gostam de percorrer a calçada portuguesa, outra realidade demoníaca de Lisboa. Sucede que no asfalto andam carros. E é um tremendo perigo um brinquedo elétrico, muito vagaroso, no mesmo local dos carros. Zaguezagueando entre as ruas e os passeios conforme lhes apetece. Além dos constrangimentos de trânsito que são, particularmente nas íngremes subidas de Lisboa, com os ditos brinquedos a ocuparem, em marcha glaciar, parte das faixas de rodagem. (Como de resto são as bicicletas.)

Acidentes vão ocorrer, vidas vão ser espatifadas (dos utilizadores das trotinetes e dos condutores que tiverem o azar de lhes embater). Mas não faz mal. Fernando Medina teve a brilhante ideia das trotinetes e até vai ganhar dinheiro com as multas.

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Segundo. Os constrangimentos do trânsito. As multas continuam a ter prioridade. Os radares na Avenida de Ceuta – estrada com três faixas, sem atravessamento de peões – funcionam sempre para punir quem ousa guiar à velocidade estonteante para uma quase autoestrada de 70km/hora. Os estacionamentos em segunda fila só são fiscalizados fora das horas de ponta (quando não incomodam). Nas horas de ponta, paciência. Polícia Municipal, em motas, monitorizando e resolvendo estas infrações – não é preciso. Desde que a Carris cobre a multa, o trânsito bem pode continuar parado. (Ah, e o que há a dizer de colocar empresas cobrando multas aos cidadãos.)

E como Medina é arrumadinho (diminutivo propositado) e com as suas obras organizou as faixas de rodagem segundo cada direção diferente, geralmente com semáforos desencontrados, é pão nosso de cada dia termos um determinado caminho empancado em hora de ponta, porque tem um carro em segunda fila a impedir passagem, sendo difícil contornar por outra faixa – que, além do trânsito, se destina a outro lado e os tempos de andamento dos semáforos não coincidem.

Não contente com esta má arrumação do trânsito, ocorrem situações ainda mais lindas. Já apanhei por várias vezes, ali antes das nove da manhã, camiões de recolha de resíduos a despejarem os vidrões e afins da Rua Possidónio da Silva. Que, além do trânsito matinal normal, tem a esta hora milhares de alunos a entrarem em três escolas ali mesmo ao lado. Sucede igual noutros lados. Se isto não é vontade de provocar caos, não sei o que será. Aparentemente não ocorre a ninguém que estas atividades devem ser feitas exclusivamente fora das horas dos maiores fluxos de carros.

Terceiro. O Martim Moniz. É difícil não considerar esta praça – porventura a mais feia da Europa ocidental – um atentado urbanístico deliberado pelas várias gestões camarárias. É quase tudo horrendo – tirando a Igreja da Senhora da saúde, os prédios pombalinos da Rua da Mouraria e os edifícios da EPUL que, a seu tempo, Santana Lopes parou até que encontrassem uma estética de acordo com uma zona antiga da cidade (e não, não quero fazer nenhuma propaganda à Aliança, credo). João Soares havia permitido a construção de mais um modernismo ali agressivo. Mas vem de trás. Como foi possível a CML permitir a construção de dois centros comerciais hediondos? A parte nova do Hotel Mundial é, ali, horrível e descabida. Um edifício, dos anos 1970 ou 80, também arrepia.

João Soares nos anos 1990 fez uma intervenção na praça. Era muito bonita no papel e vista de cima do Miradouro da Senhora do Monte. Na própria da praça era desagradável, inóspita, mal pensada e sem nexo. A praça continuou uma ferida na Baixa.

Vinte anos depois, novo projeto. Nos últimos meses tem havido contestação mediática, ontem mesmo houve debate na Assembleia Municipal. Apesar da concessão ter sido atribuída em 2017, prolongada em 2018 e o projeto aprovado no mesmo dia em que a CML o apresentou aos munícipes para receber contributos (ataque de tosse).

Quase parece um manual de ‘como destruir uma praça numa cidade e enlouquecer munícipes’. Todos os lados, CML e privados (que tiveram a ideia de construir, e construíram, aquelas fealdades), fazendo o pior. O destino da placa central é importante, mas já agora reconstruam os prédios em redor da praça para os tornarem suportáveis à vista e a praça aprazível.