De Verlaine conta-se que gostava de se demorar – nos crepúsculos anteriores à bebida e ao deboche, naquelas noites de errâncias sórdidas e brutais – sozinho num banco de pau de uma igreja de Paris. Certa noite, um sacristão mais zeloso com as horas de encerramento, abeirou-se dele. Je n’aime pas qu’on m’emmerde quando je prie – rosnou-lhe o velho Paul. Não se tratava de um súbito converso, fervente nos arrebatamentos de neófito, pelo contrário. E, no entanto, na sua poesia – lacunar, salobra, sórdida – fermentam desde sempre, sem qualquer hipocrisia, os filamentos de uma fé: nada como um bom pecador para reconhecer o poder da graça.

Normalmente, as boas pessoas não dão bons temas – nem de conversa nem de coisa nenhuma. À semelhança das tragédias gregas que os magos venezianos da ópera do século XVI procuraram recriar, o drama musical ocidental tendeu a preocupar-se com os limites mais tenebrosos das emoções humanas: a paixão excessiva e o ciúme selvagem, o ressentimento latente e a raiva implacável. Porque são essas, no fundo, as emoções que desencadeiam os tipos de ações – adultério, traição, vingança, assassinato – que criam um drama emocionante. Por abjectas que sejam no quotidiano, tais ações constituem o fundamento da própria ideia ocidental de teatro, em que a própria noção de enredo está profundamente dependente de impedimentos, obstáculos, desastres. Aristóteles, na sua Poética, descreve um enredo como um nó atado pelo autor a partir dos múltiplos fios que representam as vontades, os desejos ou as ideias concorrentes (ele chama-lhe dêsis, uma “atadura”); um nó ameaçador e vil que, no devido tempo, acabará por se desfazer num momento culminante de afrouxamento da tensão (a lysis).

Ou seja, dificilmente merecerá o nome de teatro um palco onde não existam nós aparentemente insolúveis; sem eles, não haveria nada para as personagens fazerem. E é esse “fazer” que nos providencia a própria palavra pela qual nos referimos àquilo que acontece em palco: “drama” deriva do étimo grego drân, “fazer” ou “agir”. As nossas idas ao teatro são movidas pelo desejo de vermos personagens a fazer coisas –não necessariamente más no sentido ético, mas acções a cujo precipício, novelo ou equívoco elas sejam capazes de responder com grandeza, quanto mais não seja de palavras aladas.

O interesse dramático inerente aos dilemas com que elas têm de lidar ajuda a explicar o fascínio antigo que sobre nós exercem personagens atormentadas e, em contrapartida, o aborrecimento e o enfado que nos causa as medíocres: por Antígona, com a sua lealdade excessiva e inflexível retidão, sentimos um interesse ofegante e, mesmo que nos incomode admiti-lo, cumplicidade. Mas será que alguém quer mesmo ver uma peça sobre Ismene? Seria possível sequer escrever uma tal peça?

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Ultimamente têm surgido especialistas em Aristóteles que pensam genuinamente que sim e que, acompanhados por luminárias classicistas e perscrutadores do alto coturno de trímetros jâmbicos e tremoços (Ascenso nos figurinos, César no ponto, Ferro na contracena, Santos Silva nos cenários e António Costa nos coros), levaram à cena no passado fim de semana um intermezzo panegírico cuja composição merece análise detalhada.

Janeiro de 24 ficará nos anais da história dramática como a primeira vez em que um drama se dedicou à celebração do vazio e em que a uma personagem banal, vulgar, lisa e medíocre (Pedro Nuno Santos) se confiaram as tábuas do proscénio e a clara didascália inicial de, no momento da representação, não fazer absolutamente nada: nasceu no pavilhão da FIL um “drama” sem enredo, sem interesse, sem acção, sem diálogos, sem nó, sem nada – apenas contrapicados de camisolas de gola alta ao som do best of the André Rieu e Richard Clayderman

Sobrava-nos o “texto”, chamemos-lhe assim, enquanto último reduto de grandeza. Mas as falas e réplicas preparadas para o jovem delfim afinal não pretendem outra coisa senão, obstruindo o sentido das coisas, brincar com a opacidade do jargão: estamos a avaliar a questão significa que não se faz a mínima ideia do que se está a falar e iremos estudá-la a fundo que se está desesperadamente a tentar encontrar alguém que no-la explique.

Aproveitando o ensejo, turvam-se as interferências na Justiça, o caos nas Urgências, a greve dos transportes, dos funcionários judiciais e o protesto dos polícias, a perda do poder de compra, a penúria na Defesa, a sangria de jovens diplomados, chorudas indemnizações em empresas intervencionadas e todo aquele governo do qual Pedro Nuno fez parte e que, antes de se estampar, sem grande estrondo ou lamento, no lancil de um parágrafo vexatório ainda conseguiu que Portugal fosse ultrapassado em PIB per Capita pela Polónia, Hungria, Estónia, Lituânia, Letónia.

Sem tempo para Aristóteles, o encontro da FIL talvez para pouco mais tenha servido que para a desova daqueles pequenos girinos cuja prestação no palanque, atarefados como andam com o breve tirocínio em secretarias de estado, rivaliza com o intrigante desenlace de A Vida Secreta da Hemorroida.

Quanto a Pedro Nuno, coitado – trepando a pirâmide trófica da juventude partidária, sem profundidade, sem passado, sem interesse – não consta que saiba orar e, portanto, não teve oportunidade de se precaver em relação à grotesca zombaria a que se sujeita quem se deixa inebriar pela suposta grandeza da sua pessoa. É muito provável que jamais tenha lido o excerto das Histórias em que Heródoto descreve aquela fúria patética e impotente de Xerxes depois de a primeira tentativa dos seus engenheiros para construir uma ponte entre a Ásia e a Europa sobre o Helesponto ter sido arrastada por uma tempestade: depois de ordenar que a massa de água fosse açoitada trezentas vezes e simbolicamente acorrentada (lançou ao mar um par de algemas), Xerxes repreendeu as “águas cruéis” por o terem maltratado e acusou-as de não passarem de “um rio turvo e salgado”.

Artaxerxes, seu filho, que lidou com uma situação semelhante, mandou, de forma mais prática, decapitar o responsável pelo projecto.