Segundo as Nações Unidas, a saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Em consequência, implica a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos, bem como a capacidade de procriar e a liberdade de decidir se, quando e com que espaçamento se deseja ter filhas e filhos. Nesta se inclui o direito à informação e o direito de acesso a métodos contracetivos da escolha de mulheres e de homens”.

Plataforma Portuguesa Para os Direitos das Mulheres

O Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) condenou Miguel de Vasconcelos — ex-juiz e antigo presidente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela — por violência doméstica contra a companheira Vera Vidal, com quem viveu 11 anos. Os desembargadores de Guimarães deram razão a um recurso da ex-mulher de Vasconcelos e consideraram particularmente grave o facto de Miguel de Vasconcelos, atualmente com 51 anos, se ter recusado a manter relações sexuais com a mulher com que viveu durante mais de uma década — uma privação que constituí um caso de “maus-tratos psíquicos”, e é um “fator atentatório da dignidade e da saúde mental e social” da mulher que manifestava, “pelo menos”, “um desejo de procriar”, lê-se no acórdão do TRG a que o Observador teve acesso e que foi noticiado em primeira mão pela Agência Lusa.

A argumentação do tribunal, muito centrada no direito da mulher a ter uma vida sexual completa, assume particular relevância por Vera Vidal se ter mantido virgem até ao fim da relação. Actualmente com 42 anos, a ex-companheira do ex-juiz conheceu-o quando tinha 25 anos.

A Relação de Guimarães recusou igualmente um recurso de Miguel Vasconcelos que pretendia a anulação da condenação decretada pelo Tribunal Judicial de Bragança pelos crimes de falsidade informática e abuso de poder. Estava em causa a subversão do sistema informático do tribunal onde trabalhava de forma a que os seus processos (ainda pendentes, sem sentença) aparecessem como concluídos, aumentando, assim, a sua produtividade nas estatísticas.

A pena de prisão aplicada pelos desembargadores foi 4 anos mas ficou suspensa. Vera Vidal irá receber uma indemnização de mil euros por cada ano de convivência com Miguel de Vasconcelos, devido aos maus-tratos e privação sexual a que foi sujeita. A Relação de Guimarães, contudo, parece não ter dúvidas que os danos psicológicos provocados pelo tempo em que se sujeitou às agressões e ao escárnio, por vezes em público, por parte do homem com quem viveu, terão para sempre uma influência na sua saúde mental, já débil quando o relacionamento se iniciou.

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O início

Miguel de Vasconcelos e Vera Vidal conheceram-se em 1999. Em 2001, segundo se lê no acórdão, começaram a viver juntos, dividindo o tempo entre o Porto, Lisboa e Mirandela, conforme Miguel de Vasconcelos ia sendo colocado em diferentes tribunais. Se os problemas terão começado logo no início do relacionamento não fica explícito no documento mas está descrito que, durante o tempo que durou o namoro, Miguel de Vasconcelos “não manteve relações sexuais de cópula completa” com Vera Vidal, que teria sempre manifestado o desejo de constituir família com o companheiro.

A lista de agressões descuradas pela primeira instância é extensa. “No interior da habitação que partilhavam, o arguido dirigiu-se por várias vezes por semana a Vera Vidal dizendo-lhe «és uma ignorante, não sabes nada», «és burra», «não és ninguém na vida, nem és mulher», «as outras são mais bonitas que tu»'”, lê-se no acórdão onde também aparecem especificadas as ofensas verbais, particularmente aviltantes para uma mulher.

Testemunhas contra o juiz? Todas “contraditórias” e “incoerentes”

Ficou igualmente provado que Miguel de Vasconcelos trocou a fechadura da casa do casal em Mirandela, impedindo Vera Vidal de se ausentar quando bem entendesse, tendo também proibido a sua companheira de “se relacionar de forma livre com familiares e amigos”. A lista de agressões psicológicas continua ao longo de duas páginas. Aos amigos do casal, lê-se no acórdão, Miguel de Vasconcelos referia-se à companheira como alguém que “lhe dava jeito para fazer o trabalho doméstico e até dava pouca despesa porque comia pouquinho” e que “não queria casar com ela para proteger o património”.

Uma das testemunhas que garantiu nos autos que o ex-juiz referia-se nestes termos à sua mulher foi Clara Sottomayor, juíza conselheira do Tribunal Constitucional e amiga de Miguel de Vasconcelos. O ex-magistrado tentou convencer a justiça a desvalorizar o testemunho da conselheira, classificando-a como uma “fanática defensora dos direitos da mulher”. Conseguiu na primeira instância mas não teve qualquer sucesso na Relação de Guimarães.

Particularmente cruel é a utilização do adjetivo “pouquinho” uma vez que Miguel de Vasconcelos estava consciente, e disse-o em público, segundo uma testemunha primeiro afastada como pouco credível pela Primeira Instância e depois validada pelo TRG, de que Vera Vidal tinha estado severamente doente com anorexia anos antes de o conhecer. Mas essa testemunha ainda irá ter mais a dizer.

Os maus-tratos físicos a que Vera Vidal foi sujeita são descritos ao pormenor no acórdão. Bofetadas, socos, empurrões contra a parede e contra o chão. Em alguns casos, Vera Vidal teve de ser vista por médicos. Em 2008, que é o ano identificado pela própria queixosa e pelas testemunhas de acusação como o ano em que a relação entre os dois entrou na fase mais violenta, Miguel de Vasconcelos terá mesmo arrastado Vera Vidal pelos cabelos à volta da casa onde residiam.

Nada disto foi tido em conta pelo Tribunal de Bragança — o que o Tribunal da Relação de Guimarães não deixa passar sem disferir fortes críticas à atuação dos juízes da primeira instância.

Nas conclusões do acórdão, o juiz do TRG escreve que o Tribunal de Bragança “errou na valoração da prova, desprezando completamente a prova direta” tendo-se limitado a, “simplisticamente”, “descredibilizar a prova testemunhal, apontando incoerências e contradições entre as declarações da ofendida e do arguido, que negou todos os factos que lhe eram imputados e desvalorizando os depoimentos das testemunhas Maria de Fátima Castro (…), Aurora Alves, Clara Sottomayor, Isabel Proust, Henrique Reis, Sandra Vidal, sua irmã, e José Arantes e Sousa, psicólogo que acompanhou Vera Vidal depois do fim do relacionamento com o ex-juiz.

Arandes e Sousa assina um relatório da clínica forense de psicologia em cujas conclusões refere que “o tipo de discurso e narrativa, relativos às situações de violência doméstica relatadas pela examinada são consonantes com os dados da avaliação psicológica”. Tal como nos outros casos, a primeira instância argumentou que “os argumentos prestados são contraditórios e incoerentes entre si” — uma linha argumentativa que serviu para descartar quase todas as testemunhas de acusação.

“Fica barata, come pouquinho, e ainda faz a lida da casa”

Maria Fátima de Castro, por exemplo, afirmou que Miguel de Vasconcelos a tinha interpelado para “ter cuidado com o que diria em tribunal”, e que tinha ouvido várias vezes Vera Vidal dizer que gostava de ter filhos com Miguel de Vasconcelos e que gostava dele. Aurora Alves afirmou ter visto a ofendida “muitas vezes a chorar” e que o ex-juiz lhe tinha confessado ter “puxado as orelhas” à companheira. Quanto à juíza Clara Sottomayor, amiga de Miguel de Vasconcellos desde 1983, o seu depoimento foi afastado pela primeira instância apenas porque colidia com o do arguido, apresentando factos que Miguel de Vasconcelos contrapôs, sendo que o testemunho da conselheira é particularmente danoso para o acusado. Foi ela que testemunhou, no dia em que conheceu Vera Vidal num jantar, a forma como Miguel de Vasconcelos tratava a sua própria namorada, em público.

Segundo o depoimento por escrito da atual juíza do Tribunal Constitucional, o ex-juiz escolheu como tópico de conversa para um jantar em 2001, pouco depois de ter começado a viver com Vera Vidal, a vida fragmentada e a personalidade débil da sua companheira. Clara Sottomayor conta que Miguel de Vasconcelos falou não só do problema da anorexia como também das fracas habilitações escolares da namorada, vangloriando-se por lhe ter arranjado todos os empregos. Nesse mesmo jantar, o ex-juiz disse: “A Vera fica barata, come pouquinho e ainda faz a lida da casa. Até pouco com o salário da empregada”.

Mais tarde, em 2002, Miguel de Vasconcelos diz a Clara Sottomayor que não quer ter filhos por “não estar preparado” e que não se sente atraído por Vera por esta “não ser a mulher deslumbrante com a qual sonhara”.

Em 2013 Vera Vidal encontrou finalmente coragem para confessar pessoalmente a Clara Sottomayor o que se passava em casa. A juíza aconselhou-a então a ir a um psicólogo. Foi o que Vera fez. Contactou José Arandes, que muitas vezes a teve que ir buscar a casa porque Vera Vidal tinha medo de sair. Aos poucos a personalidade de Miguel de Vasconcelos começa a aflorar a superfície. Em vários momentos foi agressivo com Clara Sottomayor, que até ali considerava amiga. A juíza escreve no seu testemunho que chegou a sentir-se ameaçada, depois do ex-juiz lhe ter feito ataques pessoais pelo telefone quando soube que tinha sido chamada a depor neste caso.

Isabel Proust, por seu lado, referiu em tribunal ter tirado algumas fotografias aos ferimentos de Vera Vidal, sem que o seu testemunho tenha sido tido em conta por “alegadas contradições no seu discurso” que o acórdão do TRG acabou por considerar “inexistentes”.

E se desconsiderou algumas das testemunhas contra Miguel de Vasconcelos, o Tribunal de Bragança, por outro lado, “sobrevalorizou”, no entender da Relação de Guimarães, os testemunhos de Maria Madalena Alves e de Maria de Lurdes Carbas que, sendo vizinhas do casal, apenas disseram “nunca terem ouvido gritos” vindos da casa do casal. Vera Vidal contestou esta “sobrevalorização”, das declarações de Maria de Lurdes Carbas, não obstante esta testemunha ter mantido um discurso tão incoerente que levou o tribunal a pedir a certidão das suas declarações para consequentemente a acusar por alegadamente ter fornecido informações falsas sob juramento.

Depor em frente ao agressor

A primeira razão que Vera Vidal apresentou no seu recurso para defender junto da Relação de Guimarães a condenação do seu ex-companheiro pelo crime de violência doméstica foi ter-lhe sido negado pelo Tribunal de Bragança o estatuto de vítima. Assim, foi obrigada a depor, “por mais de seis horas”, “durante as quais foi sujeita a interrupções e perguntas repetidas e preconceituosas”, “na presença do arguido apesar de ter requerido que tal não acontecesse por sentir-se intimidada, prestando declarações sem as necessárias condições de liberdade e segurança, e sentindo hostilidade e a formulação de juízos de valor”. Tal, lê-se no acórdão, “afetou a prestação das suas declarações, que, nos crimes de violência doméstica, é considerada a rainha das provas”. O TRG justifica assim as incongruências e contradições contidas nas várias declarações de Vera Vidal.

A Lei de Prevenção da Violência Doméstica, Proteção e Assistência às suas vítimas , no artigo 32º refere que as declarações da vítima que impliquem a presença do arguido deverão ser prestadas por vídeo ou teleconferência podendo também o arguido ser afastado na sala de audiências. Nada disto aconteceu.

Mesmo assim, considera o TRG, as contradições nas declarações de Vera Vidal prendem-se essencialmente com as datas em que ela e Miguel de Vasconcelos terão começado o relacionamento — ou a altura de tempo em que esteve com o ex-juiz enquanto ele corrigia exames dos alunos da Universidade do Minho, onde era professor. Ora, para o TRG estas não são razões para descurar o depoimento da queixosa — que estava a relatar factos passados há mais de uma década. Mas ao então arguido foi dada “toda a credibilidade”, o que não deveria ser o caso quando as suas declarações são a única “prova” contraditória do depoimento de Vera.

Até porque, como refere o acórdão remetendo-se à condenação de Miguel de Vasconcelos por crime de falsidade informática e abuso de poder, o ex-juiz “revela uma personalidade alheia às concretas realidades e apenas auto-centrada em si mesmo”.

As fotografias que Vera Vidal apresentou dos seus ferimentos também não foram tidas em conta pela primeira instância. Segundo o Tribunal de Bragança, seria impossível comprovar que essas fotografias não tinham sido sofrido alterações digitais ou mesmo sido fabricadas por Vera Vidal. Isto apesar de uma das suas vizinhas, Isabel Proust, ter dito ter sido ela a tirá-las.

“Tal documento [as fotografias] não é falso, estando apenas sujeito ao princípio de livre apreciação da prova, não bastando isto para afastar o seu valor probatório dizer que todos os exames clínicos existentes nos autos as infirmam, apenas por neles não se verificar nunca a existência de lesões físicas na pessoa da ofendida”, dizem os desembargadores de Guimarães.

Juízes apelam à “desmistificação dos papéis tradicionais de homem e mulher”

Depois de alterar “a matéria de facto”, o TRG dá como provadas as agressões físicas, a privação de relações sexuais e os comentários humilhantes, proferidos em privado em público. Concretamente em relação à negação de manter uma relação sexual com a sua companheira, o coletivo de juízes concluiu que “o facto de ao longo de 11 anos não ter mantido com a ofendida relações sexuais de cópula completa (…) integra um grave e muito intenso mau trato psíquico (…), não obstante saber, como ele próprio admite, que a companheira/ofendida sempre quis casar e ter filhos da relação que os unia”.

O TRG escreve ainda:

Numa altura em que se pretende desmistificar os papéis tradicionais de homem e mulher, reconhecendo-se que a atividade e satisfação sexuais não são um ‘feudo do homem’, e em que se considera a sexualidade, e designadamente, as relações sexuais de cópula completa (…) como bem-estar mental e social, tal conduta do recorrido é atentatória da dignidade e saúde da recorrente, sendo claramente exemplificativo de que tal ausência de relações sexuais é uma verdadeira ofensa e dor para a ofendida (…)”

Num mundo — e num país — onde muitas associações de apoio às vítimas de violência doméstica ainda se queixam de que estes estes casos são muitas vezes tratados de forma benevolente pelas tribunais, este acórdão da Relação de Guimarães aponta um caminho diferente.