Segunda-feira começou como um dia normal. Depois da apresentação na semana anterior, era o primeiro dia de aulas de Ana Preto com os alunos do primeiro ano de Bioquímica, na Universidade do Minho. Nas duas horas que passou com os alunos, entre as 11 e as 13 horas, seguiu o esquema que tem adotado nos últimos anos: falar de modelos celulares, usar o exemplo das leveduras e da autofagia e falar do trabalho que desenvolve nesta área.
À hora de almoço nem queria acreditar na quantidade de chamadas não atendidas que tinha no telemóvel, mas só quando se encontrou com uma colega de trabalho para almoçar percebeu porquê. O Prémio Nobel da Medicina tinha sido entregue a Yoshinori Ohsumi pela descoberta dos mecanismos de autofagia nas leveduras. Nem de propósito.
Quando voltou para a segunda parte da aula, às 14 horas, não pode esconder o contentamento, que prontamente partilhou com os alunos: o tema da autofagia, aquele que tinha escolhido como área de investigação, tinha sido distinguido com o Nobel da Medicina. “Os alunos ficaram tão interessados que me pediram para contar mais sobre o assunto”, diz ao Observador Ana Preto, investigadora no Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) da Universidade do Minho. “No dia seguinte alguns alunos até me vieram perguntar o que podiam fazer para trabalhar comigo.”
Ana Preto foi contratada para dar aulas de Biologia Celular na Universidade do Minho, em 2007. E, quando um ano depois decidiu dar continuidade ao seu trabalho como cientista, estava longe de imaginar que chegaria o dia em que um Prémio Nobel fosse atribuído na sua área. E isto apenas um ano depois da própria ter publicado os resultados mais importantes do seu trabalho.
Quando veio para o CBMA, Ana Preto trazia na ideia a autofagia e a sua possível ligação ao cancro colorretal. O tema está muito pouco explorado, mas a investigadora confessa que gosta de “causas menos competitivas”. Não era, no entanto, um mergulho de olhos fechados, a cientista tinha algum suporte científico que lhe indicava que podia tentar seguir esse caminho, mas não o tinha conseguido percorrer no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), onde trabalhou durante 10 anos anteriores.
Para o pós-doutoramento, Ana Preto tinha escolhido o carcinoma colorretal como modelo de estudo. “É o cancro com maior incidência no mundo inteiro”, explica. E no meio dos resultados desse trabalho suspeitou que quando o gene KRAS aparece mutado nestas células cancerígenas pode influenciar a autofagia – o processo celular que dá origem à degradação de componentes da própria célula.
Teve a sorte de encontrar, no CBMA, Maria João Sousa, que trabalhava com leveduras, e desafiou-a para este trabalho. Ana Preto avisou prontamente a colega de que, apesar de o gene KRAS estar muito bem estudado, não havia trabalhos que o ligassem à autofagia em que se pudessem basear. Isso não as demoveu. Nem isso, nem as dificuldades em estabelecer um modelo de investigação – que levou vários anos -, nem mesmo a dificuldade em encontrar financiamento numa área tão pouco explorada. “Eu nunca desisto”, afirma convicta.
Dois pontos importantes para perceber estes resultados:
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- a mutação do gene KRAS é uma das causas do cancro colo-retal;
- o aumento da autofagia é importante para o crescimento das células cancerígenas porque lhes permite sobreviver e crescer mesmo em períodos de privação de alimento.
“Começámos com o modelo da levedura, porque é mais simples e fácil de trabalhar”, conta Ana Preto. “Depois clonámos várias mutações do KRAS.” Em termos práticos, as investigadoras desligaram os genes KRAS das leveduras e introduziram KRAS humano nas leveduras – as experiências foram feitas com três formas mutadas e uma normal. Os primeiros resultados mostraram que, quando introduzidos na levedura, os genes humanos mutados induziam a autofagia.
Depois, a equipa de Ana Preto passou para as células humanas. Primeiro com células “normais” – células não-cancerígenas do cólon de doentes que têm cancro colorretal, mas noutra zona – e, depois, com as próprias células cancerígenas com mutações do gene KRAS. Com as células “normais” repetiram o processo que tinham feito com as leveduras, demonstrando, tal como Yoshinori Ohsumi no início dos anos 1990, que o processo de autofagia se tinha mantido muito semelhante durante a evolução das espécies, sendo possível usar leveduras (células muito simples) como modelo de células humanas (mais complexas).
O primeiro grande resultado foi mostrar que o gene KRAS regulava a autofagia, conta Ana Preto com uma alegria na voz que mostra que nunca perde o entusiasmo no trabalho que desenvolve. Quando usaram as células cancerígenas obtiveram o segundo resultado importante: inibiram o KRAS mutado destas células e verificaram que a autofagia diminuía. Este resultado comprovava o papel do KRAS mutado na autofagia.
Os resultados foram publicados na revista científica Oncotarget, em setembro de 2015. Já em fevereiro deste ano, uma outra equipa de investigação mostrava que o gene BRAF, outro gene cuja mutação pode ser responsável pelo cancro colorretal, também regulava a autofagia. Juntos, os genes BRAF e KRAS, representam mais de 60% das mutações que causam o cancro colorretal, conta Ana Preto. O que, para a investigadora, justifica só por si uma maior aposta nesta área de investigação.
Mas o estudo da autofagia no cancro ainda é muito debatido dentro da comunidade científica, porque o papel que a mesma desempenha em cada tipo de cancro ainda não é bem conhecido. Em relação ao cancro colorretal parecem restar poucas dúvidas de que a autofagia desempenha um papel importante, mas Ana Preto admite que o trabalho sofre de uma grande limitação: até agora só conseguiram trabalhar com linhas celulares, ou seja, em duas dimensões. Estudar o comportamento das células em três dimensões, como existem nos organismos vivos, ou mesmo estudar o comportamento das células dentro de um animal, como um rato de laboratório, trará informação relevante e mais comparável com o que pode acontecer no corpo humano.
A equipa de investigação verificou que o aumento da autofagia impede a apoptose (morte celular programada), assim como a inibição do KRAS, e da autofagia, aumenta a morte celular. Conseguir levar a investigação para uma fase pré-clínica, em que se utilizam ratos, seria a próxima etapa para Ana Preto, mas estas experiências são muito caras e os financiamentos escasseiam.
Não existem ainda inibidores eficazes para o KRAS mutado, por isso o caminho da terapêutica poderá passar pelos inibidores da autofagia. Se usado como terapêutica alternativa ou combinada com as terapêuticas atuais, isso só as experiências o poderiam dizer. Por agora, o que a equipa de Ana Preto precisa é convencer a indústria farmacêutica a tornar-se um parceiro nos próximos passos deste processo de investigação.