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"A depressão mata tanto como o cancro"

Quem o afirma é Andrew Solomon, autor de "O Demónio da Depressão", um ensaio ambicioso sobre esta doença que é "epidémica" nas sociedades ocidentais, mata silenciosamente mas tem sintomas concretos.

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A doença que tratam como uma “constipação mental”

Não, quando falamos de depressão não estamos a falar de tristeza, de dificuldade em lidar com as frustrações da vida, não estamos sequer a falar de processos de luto por alguém querido. Quando falamos de depressão estamos a falar de uma doença mental, profunda, que se metastiza, que é incapacitante e que tem elevadas taxas de mortalidade, quer por suicídio, quer por doenças associadas (alcoolismo, toxicodependência, anorexia, bulimia, AVC).

Em Lisboa para lançar o ensaio O Demónio da Depressão: um atlas da doença, Andrew Solomon sublinha ao Observador a necessidade de não usarmos a palavra ‘depressão’ de forma leviana e de os sistemas de saúde e os governos perceberem que estamos perante um caso grave de saúde pública. “Hoje a depressão mata tanto como o cancro”, afirma o norte-americano.

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Andrew Solomon, 52 anos, é ensaísta e formado em psiquiatra e psicologia. Vive entre Londres e Nova Iorque. Foto: HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Formatados pelas imagens de Hollywood, aprendemos a ter compaixão pelos deficientes, pelos doentes terminais, até pelos alcoólicos. Aceitamos que têm uma doença porque essa doença se vê. Há um órgão que os raios-X, as TAC ou as ressonâncias magnéticas mostram , dizendo: é aqui. E como aprendemos que ver é igual a ser verdadeiro, acreditamos. Não ousamos sequer duvidar. Não questionamos a justiça das baixas médicas, da incapacidade física, do desespero, da angústia. Está tudo certo.

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Nas doenças mentais não há um órgão doente para onde apontar o dedo. Não aparecem alterações no corpo. Sabe-se hoje que a depressão está ligada à química do cérebro, mas diz-se também vagamente que é uma coisa do espírito. Uma doença da alma. Diz-se mesmo: a depressão cura-se com uns medicamentos, uns ansiolíticos, uns antidepressivos e a coisa resolve-se. Qualquer médico de Clínica Geral se acha apto a tratar esta espécie de “constipação mental” e é suposto que o doente também se saiba comportar à altura. Ou seja, que numa semana esteja pronto para voltar à vida normal.

Nas doenças mentais não há um órgão doente para onde apontar o dedo. Não aparecem alterações no corpo. Sabe-se hoje que a depressão está ligada à química do cérebro, mas diz-se também vagamente que é uma coisa do espírito. Uma doença da alma.

Ele próprio vítima de uma depressão profunda e reincidente há mais de 20 anos, Andrew Solomon fez uma arqueologia da doença, das suas possíveis causas e tratamentos, conversou com centenas de doentes e médicos em todo o mundo e chegou a várias conclusões que partilha com os leitores no livro agora publicado pela Quetzal e que venceu o National Book Award em 2001, tendo também sido finalista do Pulitzer em 2002. São 812 páginas sem final feliz, mas livres dos demónios da depressão.

O livro tem a chancela da Quetzal e custa 24.40 euros

O livro tem a chancela da Quetzal e custa 24,40 euros

Possíveis causas: modelos de vida errados e solidão

É frequente vermos nos jornais portugueses notícias de estudos que dão conta da elevada quantidade de medicamentos psicotrópicos tomados pelos portugueses, seguidos por “especialistas” que alertam para o excesso destas prescrições médicas e os “inevitáveis” custos que isto traz ao erário público. O discurso subjacente nas nossas sociedades organizadas em função do trabalho, do sucesso e do consumo, diz-nos que não estamos a ser “fortes”, “resilientes”, “disciplinados”, “organizados”. Simultaneamente diz-nos que “somos obrigados a ser felizes”, “que temos que dar graças a Deus”, “que podemos ‘comprar’ essa felicidade se trabalharmos o suficiente para ter um carro, uma casa própria, um grande amor, sexo espetacular (de preferência em câmara lenta, como no cinema), roupas da moda, boas notas e um iPhone.

“Muitas depressões começam quando, precisamente, se consegue ter tudo aquilo que se desejava e se descobre que, ainda assim, o tempo está a passar, continuamos mortais, continuamos a ter que lidar com a morte ou o afastamento dos que amamos, continuamos a ter um corpo que adoece, que envelhece. Percebemos que a vida real não é coincidente com os filmes que aprendemos a fazer para enquadramos a nossa própria vida”, explica cruamente Solomon. “A maioria das depressões começa com uma perda, mas muitas também começam com um ganho. Veja-se o exemplo dos atores, dos músicos, de gente totalmente destruída por aquilo a que chamam ‘sucesso’.”

 Kim Kardashian West , é uma das celebridades do momento, materialização de uma vida que nada tem que ver com o real

Kim Kardashian West, uma das celebridades do momento, é a materialização dos modelos de vida que a nossa sociedade vende como “pessoas felizes” porque “ricas e famosas”.

Como é explicado no livro, e como vários psiquiatras já alertaram, as taxas de depressões incapacitantes, esquizofrenias e psicoses estão a crescer a um ritmo alucinante e há alguns fatores decisivos para estes números:

tabela_causas_depressao

Diz Solomon que se estima que, nos próximos anos, 50 por cento da população americana deverá passar por uma depressão ou ter episódios depressivos. Mas menos de metade terá um tratamento adequado, cerca de 15 por cento cometerá suicídio e apenas 6% terá um tratamento adequado e conseguirá a remissão total da doença. “Estes números são assustadores se tivermos em conta que, se for tratada de início e com a medicação certa, a doença pode ser curada de forma barata. Porém, os tabus sociais e individuais que a envolvem tornam-na um caso grave de saúde pública”, afirma o ensaísta.

Se no século XIX a histeria era a doença psiquiátrica por excelência, no século XXI são as depressões e esquizofrenias. Embora existam registos de Aristóteles e Hipócrates que refletem sobre a doença há cerca de 2.500 anos, ela só se tornou epidémica agora. Todos os anos a depressão torna milhares de pessoas incapazes de trabalhar, de cuidar da família ou de desempenhar tarefas tão simples como comer ou tomar banho. “A medicação errada, as recaídas, o abandono da medicação sem controlo médico, a pressão social para a perfeição e o autocontrole, fazem com que a doença ganhe metástases como um cancro”, explica o investigador. “O cérebro e o corpo ficam cada vez mais incapazes de lutar contra a doença, deixam de responder à medicação, ficam totalmente incapacitados para ter uma vida normal” ou “acabam por desenvolver patologias mais graves como bipolaridade ou psicoses.”

As doenças mentais estão a crescer descontroladamente nas sociedades ocidentais, onde se promete a felicidade na Terra, afirma o ensaísta.

Podemos dividir o mundo entre os fortes e os deprimidos?

Porque é que há pessoas que sobrevivem a experiências terríveis com resiliência e outras definham apenas na vida de todos os dias? O que é que está errado? A nossa incapacidade psicológica ou as sociedades que construímos? E o que é que é errado? A nossa incapacidade de chegar à meta ou a distância a que a puseram?

Andrew Solomon convive há mais de 20 anos com a doença e conhece os seus vários estádios, as suas máscaras e os seus verdadeiros sintomas. Hoje vive com o marido e os filhos em Londres, toma cerca de 12 comprimidos por dia para se manter funcional e “bem”, mas sabe que a qualquer momento pode ter uma recaída. O grande segredo, diz, é que aprendeu a (con)viver com a doença.

Solomon teria tudo para ser feliz segundo os nossos padrões: nasceu numa família rica de Nova Iorque, estudou em Londres, viajou pelo mundo, escreveu um romance de sucesso e trabalhava para a prestigiada revista New Yorker. Foi neste cenário de filme que teve a sua primeira depressão violenta. Desenvolveu crises de angustia terríveis que o faziam perder o controlo intestinal, que lhe foram tomando gradualmente todas as energias físicas e psíquicas, deixou de conseguir comer e, por fim, deixou de se conseguir levantar da cama. Tinha ideários suicidas e sentia-se demasiado fraco até para se matar, conta. Procurou deliberadamente apanhar HIV para morrer. Deixou de trabalhar por longos períodos.

"Muitas depressões começam quando se consegue ter tudo aquilo que se desejava e se descobre que, ainda assim, o tempo está a passar, continuamos mortais, continuamos a ter que lidar com a morte ou o afastamento dos que amamos, continuamos a ter um corpo que adoece, que envelhece." 
Andrew Solomon

Ao longo do livro, Solomon conta também as experiências de prisioneiros de guerra, pessoas torturadas, violadas, levadas ao máximo da dor e do trauma. Tenta perceber como é que a doença é vivida e tratada em diferentes países e diferentes sociedades e chega a conclusões inquietantes e difíceis de aceitar por uma sociedade que acredita que tudo pode ser cientificamente explicado:

  • Por mais que escave na sua vida, no seu passado, pode nunca encontrar a origem da depressão;
  • O importante não é procurar uma hipotética origem mas sim tratar a doença;
  • Quanto mais vezes sem tem uma depressão, maior a probabilidade de ter tecido neuronal destruído para sempre, devido às alterações químicas do cérebro;
  • Os fatores genéticos parecem ter influência no desenvolvimento da depressão;
  • A depressão tende a ser contagiosa, nomeadamente dentro das famílias;
  • Os amigos e os colegas tendem a não conseguir lidar com os deprimidos;
  • A doença mexe com estigmas sociais tanto como a sida, o cancro e todas as doenças incuráveis (a ensaísta americana Susan Sontag escreveu dois brilhantes ensaios sobre este tema: A Doença como Metáfora e Sida e as suas Metáforas);
  • A depressão tende a isolar e o isolamento agrava a doença. É uma “espiral descendente”;
  • É difícil encontrar a medicação adequada a cada paciente. Pode demorar anos até os médicos conseguirem encontrar uma terapia eficaz;
  • É difícil encontrar bons psiquiatras e bons psicólogos;
  • Os sistemas nacionais de saúde não estão minimamente preparados para fazer face à epidemia;
  • Os tratamentos adequados (medicação psiquiátrica e psicoterapia) são demasiado caros e tende-se a acreditar que a doença se cura sozinha.

Prozac, Xanax, Zoloft, Dexedrine, Anafranil: um dicionário para o séc. XXI

Uma das ideias que Solomon reitera no livro e na entrevista com o Observador é a necessidade “de não ter vergonha de tomar medicação psicotrópica. Tomá-la durante os meses, anos ou décadas que forem precisos.” Porque quanto mais cedo a depressão for driblada, maior a possibilidade de cura ou maiores os períodos livres da doença. Por isso, é necessário ficar alerta para os sintomas:

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Perguntámos a Solomon como é que se resolve este problema num país como Portugal, onde uma consulta de psiquiatria custa cerca de 80 euros — uma de psicologia outro tanto — e onde o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não têm médicos para responder à procura. Estamos condenados à depressão?

Seria preciso uma espécie de revolução das mentalidades, diz o ensaísta, mas as pessoas mais pobres acabam por ser as mais negligenciadas porque: 1) não podem ser tratadas fora do SNS; 2) porque são pobres, têm problemas concretos e atribuem a depressão a esses problemas, logo não pedem ajuda; 3) se pedem ajuda são tidas como fracas porque, além de não conseguirem resolver os seus problemas concretos, ainda ficam doentes.

"A medicação errada, as recaídas, o abandono da medicação sem controlo médico, a pressão social para a perfeição e o autocontrole, fazem com que a doença ganhe metástases como um cancro.”
Andrew Solomon

Por outro lado também é difícil encontrar bons terapeutas. “Eu cheguei a consultar 11 terapeutas em seis semanas. A minha primeira terapeuta recusou-se a dar-me medicação e isso foi terrível e levou-me a um estado ao qual não precisaria de ter chegado”, diz Solomon. Infelizmente ainda há muitos terapeutas totalmente contra os medicamentos e que preferem continuar a brandir as suas teorias do que perceber os avanços da ciência. Outros já perceberam que só com a conjugação de medicação e psicoterapia se pode tratar uma depressão.”

Ainda assim, o ensaísta recomenda: “Seja exigente nos médicos que escolhe. Se acha que é mais inteligente do que o seu terapeuta, é provável que tenha razão.” Acima de tudo, rejeite terapeutas que:

  • o fazem sentir humilhado;
  • agem como se soubessem mais sobre a sua vida do que você mesmo. A função de um terapeuta não é dar lições de moral;
  • querem obrigá-lo a ser “normal” e vendem-lhe um modelo de vida do género “você tem é que casar e ter filhos”;
  • não lhe provocam empatia;
  • rejeitam tratamentos conjugados com medicamentos e/ou eletrochoques (este tipo de terapia está a ser reabilitada e não é como se vê nos filmes, sendo particularmente indicada nas depressões com tentativas de suicídio);
  • não o ajudam a reequilibrar os seus mecanismos psicossociais e/ou não lhe dão medicação adequada;
  • não o acompanham na retirada progressiva dos medicamentos.

“Creio que se tivesse tomado medicamentos antes da minha primeira depressão me ter lançado no abismo, ter-me-ia sido possível dominá-la antes de entrar em descontrolo e poderia ter evitado por completo as verdadeiras crises”, conclui Solomon. “Se não tivesse deixado de tomar os medicamentos que me ajudaram a sair da primeira crise, talvez nunca tivesse tido a segunda. Quando estava a caminho da terceira, estava determinado a não cometer um erro tão estúpido.”

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