Enquanto Alexis Tsipras e Antonis Samaras discursavam em palcos iluminados, uma centena de anarquistas reunia-se na penumbra da sala de um centro social – Nosotros -, perto da praça de Exarchia, no coração da capital grega. É o 11º Encontro Anti-Autoridade, dedicado ao planeamento da acção anarquista após as eleições do próximo domingo.
Ao contrário do que se passa noutros países, na Grécia não é irrelevante o que os anarquistas planeiam. Entre os oradores e a assistência estão aqueles que, desde 2008, transformaram a Praça Syntagma (Parlamento) num campo de batalha, enfraquecendo a posição do Governo. Provavelmente, informara-me um jornalista grego, alguns dos presentes fazem parte dos black block, o mais violento dos grupos anti-capitalistas.
A desconfiança empurra as caras desconhecidas para um canto. Ninguém parece interessado em falar. O Nosotros costuma receber visitas de polícia à paisana – máquinas fotográficas e blocos de notas são objectos non gratae. Em redor das mesas, fumando cigarros atrás de cigarros e despejando copos de ouzo, homens e mulheres, adolescentes e avôzinhos, discutem como confrontar um sistema que, pela primeira vez na história da Grécia, pode vir a ser governado por um partido de esquerda-esquerda.
“Não acredito nas promessas do Syriza”, diz Nikos, membro do Movimento Anti-Autoritário e redator do jornal anarquista Babylonia. “Qualquer partido que prometa uma transformação revolucionária tem que ter na retaguarda um forte movimento social. E o Syriza carece desse movimento”.
A ‘repressão’ policial é a discussão principal. Na praça, do lado dos manifestantes, o Syriza sempre criticou a atuação das forças especiais da polícia: houve mortos, feridos e muitas detenções. No seu programa, Tsipras prevê o desmantelamento das unidades anti-motim MAT-YMET, a abolição do uso de químicos e a fusão das unidades DIA, ZITA e DELTA, a última das quais considerada por ele particularmente brutal. A Coligação de Esquerda Radical chegou mesmo a reunir esta semana com os sindicatos de polícia para este propósito. Os anarquistas torcem o nariz. Só acreditam quando virem. “E se não cumprirem, terão em resposta uma reação muito mais forte que a Nova Democracia teve”.
Lá fora, a Praça de Exarchia está envolta por uma névoa de fumo de marijuana. Centenas de jovens armam charros ao mesmo tempo que brincam com os cães. Há uma fogueira no meio, ao lado da estátua dos apaixonados, imigrantes paquistaneses a aquecerem-se e, nos baloiços, três raparigas numa risada estridente e incessante. Traficantes e heroinómanos sentados nos passeios misturam-se com estudantes universitários nas esplanadas de bares alternativos. As paredes já não são paredes: são galerias de arte urbana e de ódio ao sistema. São alusões a batalhas que consideram épicas “contra os fascistas” e contra a polícia. Guernicas do século XXI.
Na praça, não há um único polícia. E os que patrulham Exarchia, fazem-no a partir do seu perímetro. Uma carrinha com mais de uma dezena de polícias permanece estacionada 24h por dia diante da sede do PASOK (Partido Socialista). Estão armados até aos dentes, com pistolas, granadas de gás e escudos. A farda é militar. Uma imagem estranha numa capital europeia que, contudo, é justificada. “Basta sairmos daqui para os anarquistas atacarem o edifício”, diz um dos agentes. A entrada no bairro está reservada a operações especiais e às forças de elite. Quando acontece, algo arde. Normalmente são prédios.
“Quando ouvimos o barulho das motas já sabemos que eles vão tentar invadir a praça. Vêm sempre em grupos de seis”, diz Vil, de 20 anos, anarquista, estudante de desenho e aspirante a cartoonista. “Entram pelas várias ruas e usam gás lacrimogéneo e outros químicos. Nós resistimos com paus, garrafas e cocktails-molotov. Algumas pessoas, inclusive velhotas, atiram mobília das varandas para nos ajudar”.
“Quando a polícia chega, atirem-lhes ramos de rosas. Mas com espinhos”, é um dos motes do bairro.
Quando se mudou de Agrinio, no oeste do país, para Atenas, Vil não procurou casa noutro bairro. Veio diretamente para Exarchia. Queria encontrar o espírito de resistência e liberdade: “Todos os estudantes de qualquer aldeia da Grécia já ouviram falar de Exarchia. Os mais politizados, como eu, mudam-se para cá assim que completam 18 anos”. O bairro não deixa ninguém aborrecido: há quatro universidades, vários pólos culturais, associações solidárias e casas ocupadas. Também há muita droga, muita máfia. É só escolher o caminho a tomar.
Os “feriados” de Exarchia
A identidade de Exarchia começou a ser construída no início do século XX. Por já nessa altura ser uma zona rodeada de universidades, albergava uma população mais jovem e politicamente ativa, que sempre se opôs aos regimes mais autoritários e às ocupações estrangeiras na Grécia. Em 1973, os tanques da ditadura militar romperam pela porta do Instituto Politécnico para desmobilizar um protesto pacífico e mataram 24 civis. “Esse acontecimento, de 17 de novembro, foi o ponto de partida para o fim da ditadura e marcou como nenhum outro o carácter de sublevação deste bairro”, diz Christos Kiriakos, de 52 anos, funcionário do curso de Economia do Politécnico, também ele anarquista.
Desde então, a 17 de novembro, Exarchia transforma-se num ringue. Os anarquistas reúnem-se em grande número na praça para confrontar as autoridades. Mas, a partir de 2008, os níveis de violência da efeméride foram ultrapassados por outro acontecimento histórico: o assassinato de Alexandros Grigoropoulos, de 15 anos, pelo agente da força especial Epaminondas Korkoneas, na noite de 6 de dezembro.
Com o pretexto de ter visto Alexandros e o seu grupo de amigos atirar uma pedra, Korkoneas aproximou-se de moto e atirou à queima-roupa: a bala acertou numa placa de ferro mesmo ao lado do rapaz, fez ricochete e alojou-se no coração. Morte imediata. O grupo de rapazes estava desarmado. Nos dias seguintes, os estudantes protestaram nas escolas e os gregos saíram às ruas. Incendiaram-se lojas, bancos e até a árvore de Natal na praça principal da cidade. O movimento fez com que os anarquistas sentissem que podiam medir forças com a polícia. A 6 de dezembro, Exarchia vira o inferno na terra. “Os moradores encharcam as ruas de óleo para os bófias escorregarem. Os anarquistas tomam os telhados e chegam a atirar-lhes frigoríficos. Já vi de tudo”, diz Vil.
“Alexandros nem era anarquista mas para nós é um símbolo da repressão do Estado”, diz Christos (nome fictício), um anarquista do VOX, um centro social instalado num cinema ocupado em Exarchia há oito anos. “A morte dele fez com que o ódio aumentasse e, mais tarde, nos protestos contra a crise de 2012, também era nele que pensávamos”.
Christos é um “anarquista-comunista, inspirado pelas milícias de esquerda da guerra civil espanhola”. Tem 20 anos mas a estatura do Colosso de Rodes; 1,95m e muitos centímetros de ombros. Diz que no VOX coexistem várias correntes do anarquismo – desde o niilista, que promove a destruição de tudo o que faz parte do sistema capitalista, ao social, mais aberto à comunidade. Na cave, onde os membros se encontram para as assembleias, há bandeiras, bastões e alguns recipientes com gasolina. O arsenal anarquista. Contudo, mais que o belicismo, a principal missão do coletivo é angariar fundos – através do bar e da organização de eventos – para apoiar os “prisioneiros políticos”. “São camaradas presos por participação em manifestações e por atividade contra o sistema”. Entre eles, Christodoulos Xiros, condenado por terrorismo no seio da Organização 17 de novembro.
https://www.youtube.com/watch?v=oQEsG_tq8Us&feature=youtu.be
E Nikos Romanos
Romanos era o melhor amigo de Alexandros Grigoropoulos e estava com ele na noite do crime. Não era anarquista, mas tornou-se num. Em fevereiro de 2013, participou num roubo à mão armada a um banco na cidade de Valvento, juntamente com um grupo anti-sistema chamado Organização Revolucionária da Conspiração do Fogo.
Foi condenado a 15 anos de prisão, mas quis entrar na universidade. Inicialmente, essa possibilidade foi-lhe negada. Após quatro semanas de greve de fome, as autoridades gregas cederam. Foi o primeiro grego a receber uma pulseira electrónica, a fim de poder ir às aulas. “Alguns anarquistas acham que ter uma pulseira eletrónica é uma afronta à liberdade”, comenta Christos. “Mas eu acho que conquistámos uma vitória muito importante”.
O anarquista do VOX dá um trago no seu café e aponta para uma das paredes. Está repleta de símbolos antifascistas. “Isto é o que me preocupa mais…viver num país infestado de nazis”, diz. O Aurora Dourada, partido de extrema-direita, atingiu há dois anos 14% dos votos, mas a sua popularidade decresceu após seis dos seus líderes terem sido detidos, por suspeitas de envolvimento no assassinato de imigrantes e ativistas de esquerda. Assim é a Grécia, um país ainda a contas com as sequelas da ocupação nazi. “O que se passa nas ruas de Atenas é uma autêntica guerra: se eles virem um de nós, matam-no, se nós virmos um deles, matamo-lo. Não há meias medidas”.
Bem perto dali, no Centro de Imigrantes, mantido por elementos do Syriza, o Aurora Dourada perpetrou um ataque com granada artesanal quando 60 expatriados estavam a ter aulas de grego. O explosivo rebentou apenas duas camadas da vidraça tripla. Em resposta, somaram-se ataques de anarquistas às representações do Aurora Dourada em Atenas.
Marcas da História
Não só de violência respira Exarchia. Os quarteirões estão apinhados de bares e cafés, galerias de arte, centros sociais e culturais. Há criatividade: alguns moradores até tentaram adotar uma moeda própria – a lira de Exarchia – mas durou pouco tempo. Agora, os que vivem realmente à margem do capitalismo trocam trabalho comunitário por víveres. E há ainda um clube de futebol, o Asteras Exarchion (Estrela de Exarchia), apoiado por uma claque de anarcas que a cada golo, sofrido ou marcado, cantam: “Polícias, porcos, assassinos”.
No meio das paredes pictóricas, há um jardim ocupado – Navarino. Há sete anos, o Governo quis lá construir um novo prédio, mas os anarquistas plantaram-se no espaço e resistiram por vários dias e noites. Um Gezi (Istambul) em ponto pequeno, portanto. É lá que Adonis, de 49 anos, libertário desde os anos 80, passa as tardes com outros discípulos da anarquia. Pelo meio deles, passam mães com carrinhos de bebé e estudantes abrem a marmita para o almoço.
“Exarchia está a perder um pouco do seu caráter”, diz, enquanto fabrica uma ganza. “Agora vêm-se muitos BMW e Mercedes a descer dos bairros vizinhos para deixar raparigas de saltos altos nos bares. Também há uma máfia. Putos que se dizem anarquistas mas estão aqui apenas para vender drogas e aterrorizas o bairro. Não têm bases políticas. Mas não deixa de ser ainda um local único”.
Adonis perdeu o emprego como estafeta durante a crise e vive atualmente de uns biscates para a irmã, advogada. O seu rabo-de-cavalo grisalho contrasta com as vestes inteiramente negras e tem um sorriso honesto, ainda que muito consumido por uma vida de excessos. No domingo, vai votar pela primeira vez: “Syriza! Sinto esse dever. Depois do que sofremos, temos de tentar algo novo”. Quanto à permanência na União Europeia, é contra. Sente-se primeiro grego, depois balcânico, um pouquinho mediterrânico. “Mas de europeu não tenho nada”.
Cresceu numa família de refugiados albaneses e é o único em três gerações que não fala no dialeto de Tirana. “Cresci no período da ditadura e era proibido falar outro idioma que não o grego”, recorda. Lembra-se de os avós contarem que os nazis deportavam os albaneses para campos de trabalho forçado em Creta, obrigando-os a construir estradas para nenhures e a trocar um quilo de insetos por um de farinha. “Como é que posso gostar dos alemães?”, interroga.
Por isso, luta sempre em protestos contra o euro. Enveredou pela anarquia no primeiro dia que pisou Exarchia. E nunca mais saiu. Acompanhou os black block nas manifestações dos últimos anos anos e sente que tem um papel na chegada da esquerda ao poder. “Foram dias inesquecíveis”, lembra, nostálgico. “Mas nem sempre fomos cruéis com a polícia. Uma vez, um deles ficou sem três dedos quando estava a lançar uma granada. Os manifestantes pararam o ataque, recolheram os dedos e conservaram-nos num copo com gelo até a ambulância chegar. Depois, voltámos a bater-lhes”.
Adonis olha em seu redor. Pergunta se Atenas é uma capital estranha. Para ele, é. Desafia a uma ida à rua Alexandras, para ver como um único prédio pode simbolizar as escoriações que a História deixou na cidade. Afinal, não é só um prédio, mas um bloco de dez edifícios entrincheirados entre o tribunal e a esquadra central. Foram construídos para refugiar os gregos que Ataturk expulsou de Istambul, nos anos 20, foram um escudo comunista na II Guerra Mundial e na guerra civil dos anos 60 e 70 e, hoje, intocáveis por serem considerados monumentos nacionais, estão ocupados por famílias gregas atiradas pela crise para as ruas e por imigrantes que, frequentemente, são atacados por grupos de extrema-direita. Roubam a eletricidade da própria esquadra, através de puxadas.
“Vês como se passou um século e os desfavorecidos continuam a ser atacados no mesmo sítio?”.