As laranjas a quem as apanha. A Avenida 25 de Abril serve de porta de entrada à aldeia de Alcôrrego, no concelho de Avis, Alentejo. De um lado e do outro dos passeios, alinham-se frente às moradias dezenas de laranjeiras que, nesta altura do ano, já estão carregadas de fruta. Uma mulher para o carro, saco de plástico na mão, e começa a apanhar laranjas. Ali ninguém estranha. A fruta é de todos. “Vivo no monte e venho aqui às laranjas. A maioria ainda está verde, mas olhe esta aqui, já tem boa cor e já deve ser doce”, conta a senhora de óculos de sol Rayban, cabelo loiro apanhado num rabo de cavalo, sotaque da capital. Mal acaba de encher o saco, volta a entrar no carro e segue viagem.
Rosa Maria, 80 anos, assiste a tudo da varanda da sua casa, enquanto come uma ameixa. Torce o nariz quando ouve falar de eleições. Mas, afinal, chegámos aqui no encalço do grupo de eleitores que deu à CDU a maior percentagem de votos nas legislativas de 4 de outubro. Foi na freguesia de Alcôrrego e Maranhão que tal aconteceu: 64, 52 por cento dos votantes escolheu a coligação PCP-PEV.
Mesmo sem saber ler, Rosa Maria vai sempre votar. “Chego lá e voto. Sei muito bem qual é o partido e uma cruz toda a gente sabe fazer”, responde, sempre com cara de poucos amigos. Não quer dizer em quem votou, mas lá se descai um pouco. “Voto nos que não me tirarem a pensão.” Tira o caroço da ameixa da boca e guarda-o no bolso da bata. “E agora tenho de ir à farmácia”.
Rua abaixo, encontramos uma pequena mercearia. A “atrapalhar” a passagem no corredor, que já de si é estreito, há um parque de bebé e uma espreguiçadeira com uma fralda em cima. Ao lado de umas taças de pirex, está um intercomunicador com vídeo. Ligado.
Elvira veio ali às compras e não esconde que vota CDU. Muito menos esconde que gostava de ver um governo de esquerda à frente do país. “Vamos ver se se entendem. Se não experimentarmos nunca se vai saber se funciona”, afirma, peremptória, enquanto encomenda batatas e um pão de quilo.
Na mercearia de Artemisa Tomás fala-se muitas vezes de política, mas a verdade é que, de há seis meses para cá, há outro assunto bem mais importante, um assunto que leva muita gente ao pequeno estabelecimento. Chama-se Sofia, tem seis meses, e é a alegria de uma terra com cada vez menos crianças e cada vez mais gente velha. É ela que se vê no ecrã do intercomunicador pousado ao lado das taças de pirex. Mas a esperança que Sofia traz nos seus seis meses contrasta com a desilusão dos mais velhos. Por isso, perante a dúvida sobre quem será o próximo primeiro-ministro de Portugal, Artemisa encolhe os ombros e vaticina: “Isto está tão no fundo que quem quer que seja que vá para lá não pode fazer grande coisa”.
Elvira está aviada, e depois de escolher o bordado que vai treinar em casa — anda com Artemisa num curso de lavores — apronta-se para sair da mercearia. Não sem antes rematar: “Só metade das pessoas é que vota. Mas as pessoas que votam dizem o que querem. Disseram o que queriam. E isso é que é importante”. Deixa para trás o novelo de linha 35 e sai.
Cruza-se com um homem mais velho, boina na cabeça, barba por fazer e sorriso aberto. O homem espreita pela cortina de fitas para dentro da mercearia e percebe que a conversa é sobre a possível coligação entre PS, CDU e Bloco de Esquerda. Mostra ainda mais os poucos dentes que lhe sobram na boca e atira de uma vez: “Não se entendem. Era bom para os portugueses mas não vai dar”. E assim como surgiu, desapareceu no instante seguinte.
Alcôrrego é uma terra pacata. Ainda tem escola — há 22 crianças —, uma piscina e um campo de jogos. As ruas estão impecavelmente limpas e da campanha eleitoral persiste um único pendão da CDU, a torrar ao sol do Largo 1º de Maio, onde desemboca a Avenida 25 de Abril.
No café, cinco homens falam da dificuldade de ligarem a internet num iPad enquanto bebem uma cerveja. Caras desconfiadas, mal se puxa o assunto eleições três saem. Fica o dono, que não disse uma palavra, e José Varela, que está sentado numa mesa a fazer palavras cruzadas. Tem 64 anos, os óculos no fundo do nariz e bigodes brancos. Por cada duas frases que diz, uma é um provérbio. “São como cães e lobos, fazem carne e comem todos“, vaticina, com sotaque alentejano apimentado por uma gargalhada.
José não acredita que António Costa consiga entender-se com o PCP. “Acho difícil. Ele foi ministro da Justiça e tudo, do outro governo…” Mas tem andado a ter reuniões com os outros dois partidos à esquerda… “Pois, sabe? Quem tem vagar faz colheres de pau”. E dá umas gargalhadas, encolhendo os ombros a compasso.
– Portanto esperança num governo de esquerda por aqui não há muita, é isso? – perguntamos.
De repente, o homem por detrás do balcão levanta os olhos e troca um sorriso malicioso com José Varela.
– Eu até lhe contava uma história, mas não sei se posso.
O outro ri-se e desvia o olhar para o iPad, que ainda não largou da mão.
– Conte lá.
– Então é assim. Havia um homem em Avis que era casado com uma mulher chamada Esperança. Um dia, ela abalou e ele ficou sozinho, nunca mais soube dela. Uma vez, estava ele à pesca debaixo da ponte, sem ter ainda apanhado peixe e um homem que passava, parou e perguntou-lhe: “Então? Ainda há esperança?”. E ele olhou para cima e respondeu: “Esperança? Oh, ao tempo que ela se foi”…
As casas da cooperativa
Apesar de ser apenas uma freguesia, a aldeia de Maranhão fica ainda a dez quilómetros de distância de Alcôrrego. Vinte casas, três ruas num alto de um monte e uma escola primária com um parque infantil habitado por galinhas e galos, que se encavalitam à sombra do escorrega e dos baloiços. As cinco crianças que ali andavam estão agora na escola de Alcôrrego e são elas que fazem o número suficiente para que não tenham todos de ir para Avis, a sede de concelho.
O neto de Manuel José ainda não anda na escola. Rafa tem dois anos, cabelo da cor do sol que brilha nas paredes caiadas de branco e olhos tão azuis quanto o céu que hoje se estende sobre o Maranhão. Parece sueco… O avô replica: “É soviético”.
Manuel está a almoçar no clube de caça e pesca, o único sítio para beber café, jogar dardos, e comprar guloseimas para os miúdos. Rafa, sentado ao seu lado, vai comendo uns bocados de chouriço que o avô corta com uma faca. Na outra mesa, José Rocha, jornal desportivo na mão, entra na conversa. Votaram ambos na CDU, estiveram ambos na ocupação do latifúndio que deu origem à Cooperativa 1º de Maio. Percebe-se bem por que razão tem o PCP tanta força aqui.
“Isto sempre foi uma região de luta, lutámos pelas oito horas de trabalho, pelos dois dias de descanso. Porque eu ainda apanhei os tempos em que se trabalhava do nascer ao pôr do sol. Fazia onze quilómetros a pé com a comida às costas, trabalhava e ia a casa lavar a cara, ver a mulher e beijar os filhos, se bem que nessa altura pouco se beijava os filhos…” José não voltava a fazer tudo tal e qual se fez no PREC — “não fazia aquelas provocações, tinha de ser diferente agora, porque aquilo acabou por ser uma anarquia” — mas muita coisa deixava na mesma.
“Foram os vinte anos de trabalho mais à vontade que passei [as terras voltaram aos donos só nos anos 90]. Chegava ao fim do mês e sabia sempre onde ia trabalhar no mês seguinte. Foram momentos felizes, deixámos de ter patrão e toda a gente sabe que é diferente chegar ao pé de um patrão, do que chegar ao pé de um indivíduo que é igual à gente”.
De repente cala-se e os dois ficam a olhar para a televisão. As notícias sobre as negociações com vista à formação de um governo prendem-lhes a atenção.
– Isto vai-se complicar – diz Manuel.
– Escuta, a coligação PàF (risos) ganhou as eleições, mas os outros gajos têm maioria, portanto eles não se podem mexer – explica José.
– Pois, por isso é que eles agora andam a falar baixinho – conclui Manuel.
Mas passemos à prática. Acham mesmo que o PCP pode ir para o governo? Manuel acredita que consigam “lá meter dois ou três, pouco mais” e José vai mais longe e decide mesmo escolher já um ministério para entregar aos comunistas: “Eu preferia vê-los no Ministério do Mota Soares. Porque o PC e o Bloco não têm culpa do desemprego e da crise. O PS, o PSD e o CDS são os únicos culpados.”
E lá vem a desconfiança, aquela que, afinal, tem tantos anos quanto a ocupação das terras do Maranhão. “Eu estive a ouvi-los, mas é difícil acreditar em alguém. O Passos vinha muito choroso, mas o Costa estava a rir-se muito. Não sei. Quando a gente derruba os filhos, aos pais ainda fazemos pior, sabe? E o que ele fez ao Seguro não se faz”, argumenta José Rocha. Manuel acena com a cabeça, em sinal de concordância.
Quanto às cedências que o PCP teria de fazer para entrar num governo com os socialistas à cabeça, nada de preocupante. Para José e Manuel, não é a NATO que os preocupa. É o desemprego — Manuel tem quatro filhos, só um trabalha com contrato e ordenado que se veja — e o abandono em que veem as terras onde outrora trabalharam 600 pessoas e agora “trabalham quatro”; onde “antes havia 17 máquinas ceifeiras e agora há duas”, onde se “viam arrozais a perder de vista e agora nem uma espiga”. Por isso, tanto Manuel como José se contentavam “que isto mudasse um bocadinho, melhorar o desemprego já era bom”.
A conversa já vai longa e os dois têm de ir para casa. Vivem cada um numa das vinte moradias que existem no Maranhão. “Temos sorte porque não pagamos renda, sabe? Mas as casas não são nossas, ninguém sabe de quem são, tirando nove que a câmara construiu. Quando foi a ocupação, estas casas pertenciam à herdade, mas depois fez-se a junta e os terrenos ficaram da autarquia. E as pessoas vivem aqui”, explica José.
– Mas como é que isso funciona?
– Olhe, funcionando!
O mel de Catarina na terra das abelhas
Não se sabe ao certo porque se chamou àquela terra Enxames. Pode ter sido por causa das abelhas que por lá existiam em grande quantidade, pode ter sido também pelo repovoamento intenso que foi feito naquela região do país no século XIII. Ter gente suficiente junto à fronteira com a então inimiga Espanha era, naquela altura, um desígnio nacional.
Se o repovoamento já se esgotou há muito por aqui — há cada vez menos gente no concelho — as colmeias também já não são a ocupação principal das pessoas da terra, embora ainda haja quem produza mel.
Muitas dúvidas pairam sobre esta freguesia que fica “entalada” entre as serras da Gardunha e da Canaveira. A mais recente delas é esta: por que razão foi aqui que o Bloco de Esquerda teve a maior percentagem de votos em todo o país, com 21, 54%, conseguindo ser o segundo partido mais votado, logo a seguir ao PS? “Foi surpreendente”, afirma o presidente da Junta de Freguesia, o independente Guilhermino Nogueira. Aliás, esta é a primeira das duas frases que disse ao Observador, por telefone — a Junta só abre às quintas à tarde e às sextas. “Foi o primeiro ano em que houve tantos votos no Bloco de Esquerda, a seguir ao PS era sempre o PSD”. E mais não disse, porque não queria falar nem mais um minuto sobre o assunto. Desligou o telefone com um “passe bem”.
Pouca sorte. Dois homens a trabalhar no cemitério, um café praticamente vazio, ruas sem se ver vivalma. Não há cartazes, nem um sinal da campanha eleitoral. Apenas uma carrinha azul elétrico parada com dois cartazes colados na janela. Mas pelo que se percebe, nem Miguel Agostinho, nem Rui Alves, cada um com o seu acordeão, andaram em lides políticas.
O sino da igreja toca as cinco horas, o galo no cimo do coreto não gira porque não há vento, só as crianças fazem barulho no recreio da escola. Está difícil perceber o que aconteceu em Enxames nestas eleições.
A primeira abelha a sair da colmeia é Helder Maceiras. Tem 22 anos e traz uma mochila às costas, a que levou para o trabalho. Votou no Bloco de Esquerda. Votou ele e mais dez amigos. “Ninguém queria votar nos mesmos, por isso decidimos todos votar no Bloco. Era eu e mais dez. Ou nos abstínhamos, ou votávamos no Bloco. Escolhemos a segunda hipótese, mas muitos nem sabiam o que eles defendiam”, conta. Hugo arranja ainda outra explicação “plausível”: “Se calhar as pessoas mais velhas também votaram porque estava mais acima no boletim”. E ri-se.
E agora? Haverá governo com o PS? “Preferia que eles fizessem governo sozinhos. Se calhar nas próximas eleições vão ter ainda mais votos. Agora, com o PS não acredito.”
Hugo fez o 12º ano e não vai estudar mais. Trabalha em electricidade. Diz que ainda pensou ir para a faculdade, mas depois mudou de ideias. “Tenho amigos com mestrados que estão a trabalhar nas caixas do Continente, para isso não vou”. E segue rua acima.
De volta ao café, a dona não fala de eleições. Não vota ali, vota no Fundão. E a senhora Emília, que não diz a idade, mas é velhinha velhinha, também não gosta de politiquices: “Falam, falam, mas depois são todos amigos”.
Há esperança. Odete Paulino, 46 anos, entra no café que também é mercearia, senta-se e começa a olhar para a televisão. Na CMTV fala-se de uma mulher de 84 anos que morreu depois de ter caído dentro de um poço, numa freguesia ali próxima.
– Bom, nós estávamos aqui a falar das eleições. Foi aqui em Enxames que o Bloco de Esquerda teve a maior percentagem em todo o país…
Odete tira os olhos da televisão num rompante, quase dá um salto na cadeira e diz:
– Foi aqui!? Não sabia! Eu votei no Bloco!
Ora, contando com Helder, mais os dez amigos, mais Odete, mais a filha de Odete (caso tenha seguido o conselho que deu à mãe), já vão 13 dos 56 eleitores de Enxames que terão escolhido pôr a cruz no Bloco. Há sondagens com amostras piores.
“A minha filha que está na universidade em Coimbra disse-me: ‘Mãe, o voto útil é na Catarina Martins”. Odete não cedeu assim logo à primeira, mas ficou atenta. “A Catarina sabe falar e de cada vez que ela ia aos debates na televisão eu parava para a ver”. Dali ao voto, foi um bater de asas de uma abelha.
Ao ver os resultados da noite eleitoral, a filha de Odete, que veio votar também, deu logo o veredicto, conta a mãe: “Isto vai dar problema”. Odete Paulino é uma mulher enérgica e optimista. Além de feliz com o resultado eleitoral do partido que escolheu, acredita mesmo que vai ser possível haver um governo de esquerda com PS e Bloco juntos. Só fica a pensar quando perguntamos que ministério daria a Catarina.
E enquanto Odete pensa, Armindo, que já tem um fino à frente e ouve a conversa, dá a sua opinião: “Acho que eles se entendem. Porque o que o PCP e o Bloco têm de ceder, também o PS tem de ceder se for com a coligação. E fica muito mal ao PS ceder à coligação”.
Todos estranham que esteja tão pouca gente no único café da terra, ainda por cima num dia de sol e temperaturas amenas. São seis da tarde e a esta hora é habitual a esplanada estar cheia. Mas já se sabe. Em Enxames, há muitas coisas que não se conseguem explicar.