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“The sun is up, the sky is blue
It’s beautiful and so are you
Dear Prudence won’t you come out to play”
O singelo convite não foi suficiente para convencer Prudence, irmã da atriz Mia Farrow, a dar um descanso à meditação reclusa, no quarto isolado em Rishikesh, Índia, no sopé dos Himalaias. “Querida Prudence, abre os teus olhos”, continua a sedução cantada de John Lennon, do outro lado da porta cerrada, rodeado de paz interior e incomodado com a persistência meditativa da jovem californiana.
O sol acordado e Prudence decide finalmente acompanhar o astro, fora do quarto para o centro do sistema solar, que estava estranhamente alinhado ao Norte da Índia, desde que as quatro estrelas incandescentes de Liverpool conseguiram rodar a atenção do planeta para o Oriente, em fevereiro de 1968. “Mesmo quando o John estava a ir embora do curso de meditação, o George disse-me que ele tinha acabado de escrever uma música para mim”, conta ao Observador a musa de “Dear Prudence”, 50 anos depois de estar fechada no quarto a meditar, enquanto lá fora John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr procuravam algum sentido nesta coisa de estar vivo.
[uma versão alternativa de “Dear Prudence”:]
https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=OKUgZ7foKuw
“Ela estava a tentar encontrar Deus mais depressa que os outros”, contou John na célebre entrevista póstuma para a Playboy. “Essa era a competição no campo do Maharishi, quem vai ser cósmico primeiro”. Em 1955, um indiano nascido em Jabalpur, formado em física, decide mudar o nome para Maharishi Mahesh Yogi e viajar pelo mundo a pregar a boa nova da meditação transcendental, uma prática destinada sobretudo para a sociedade ocidental.
“Conheci o Maharishi em 1966 e aprendi logo a MT (Meditação Transcendental)”, lembra Prudence, sobre o período que o guru começa a requisitar a presença de celebridades nas aulas, com um pé na São Francisco de flores na cabeça e outro na Swinging London. “O TM reduz o stress de uma forma que os outros tipos de meditação não conseguem, cura as dores que nós carregamos, é muito eficaz”, explica a hoje professora desta prática popular de fechar os olhos e recitar mantras, parte da vida de gente tão diversa como David Lynch e Katy Perry ou o Presidente Marcelo. “É um método antigo de meditação que foi simplificado pelo Maharishi, para encaixar na nossa realidade quotidiana, de quem tem muito pouco tempo”.
“A irmã da Mia Farrow hibernava e meditava”, conta divertido Ringo Starr no documentário de Scorsese, “George Harrison: Living in the Material World”. “Toda gente batia à porta e perguntava se ainda estava viva”.
[o trailer do documentário sobre George Harrison:]
“Ele não está a exagerar”, confirma-nos Prudence: “O Maharishi é que nos encorajava a tirar o máximo possível da experiência”. Não foi apenas a Prudence que uma peregrinação para os confins da Índia mudou radicalmente a perspectiva de vida, também a Jenny Boyd, cunhada de George Harrison, que desiste de uma carreira promissora de modelo após descobrir a meditação, e Paul Saltzman, anónimo canadiano que encontrou redenção entre as quatro pessoas mais famosas do planeta. E também com eles conseguimos trocar algumas memórias.
Primeiro mudar de vida, depois conhecer os Beatles
“Deus estava morto”, anunciava a revista Time, e os quatro fantásticos, mais populares que Jesus como garantia Lennon, enfrentavam de cabeça erguida o imenso nada espiritual, alimentados a cheques chorudos e na ressaca de uma revolução do ácido que nunca chegou. “De repente tínhamos dinheiro mas não era assim tão bom”, explica Lennon no documentário “The Beatles Anthology”. “Parámos de fazer tours, estávamos no meio dos anos 60, sempre em festa e meio que perdemos a nossa direcção espiritual, não que alguma vez tivéssemos uma direcção espiritual, mas perdemos na mesma e estávamos a experimentar tudo”, reflete McCartney. “Descobrimos que o dinheiro não era a resposta”, concorda George: “Aprendemos que essas coisas não são importantes, que ainda faltava alguma coisa, e esse alguma coisa é o que a religião oferece às pessoas”.
“Eu estava com a Pattie e o George na casa deles em Surrey, tinha acabado de voltar de São Francisco”, lembra Jenny ao Observador, a irmã de Patty Boyd que foi casada com Harrison e depois com Eric Clapton: “E eles decidiram ver o Maharishi no País de Gales, fui com os dois e acabei por ser iniciada na prática”.
George Harrison já distinguia o seu caril do massala, era um entendido da cultura indiana e discípulo de Ravi Shankar, o músico virtuoso que, tal como no canto gregoriano, aclamava a música como uma conversa íntima com Deus. Quando o Maharishi convida os Beatles a visitar o seu Ashram, local de meditação e erudição, George e a mulher são os primeiros a atirarem-se de cabeça, seguidos dos restantes Beatles, confirmando a velha piada que gostavam de contar: “Quantos Beatles são precisos para mudar uma lâmpada? Quatro!”
[reportagem da altura, sobre os Beatles na Índia:]
“Quando o George e a Pattie entenderam que eu estava na mesma busca espiritual e tinha adorado meditar”, recorda Jenny, “perguntaram se queria ir com eles para o Ashram em Rishikesh. Para mim foi um sonho tornado realidade”.
No outro lado do Atlântico, Mia Farrow começava a perceber que um casamento de última hora em Las Vegas com Frank Sinatra talvez não tivesse sido a atitude mais prudente. “Decidi ir estudar meditação durante quatro meses para Rishikesh”, conta Prudence Farrow, “enquanto a minha irmã não estava interessada em estudar durante esse tempo todo, ela queria aprender apenas um pouco de meditação, descansar e recuperar de um divórcio muito complicado”.
Na mesma altura, a temperaturas bem mais geladas que as de Hollywood, um produtor de televisão e cinema em Montreal, Paul Saltzman, debatia-se com uma inesperada crise existencial. “Eu era um jovem muito bem sucedido, a estrela do meu próprio programa de televisão e um dia acordei em choque, havia partes de mim de que não gostava”, revela o canadiano. “A minha alma falou comigo pela primeira vez — eu nem sabia que tinha alma — e disse-me que tinha de sair dali, ir para a Índia, e foi mesmo assim que aconteceu”.
Sem perder tempo, Paul consegue desenrascar um trabalho como engenheiro de som em Nova Deli, despede-se da namorada em lágrimas e obedece cegamente ao inesperada chamamento da alma. “Mal cheguei a Nova Deli recebi uma carta da minha namorada, a primeira linha era, ‘querido Paul, saí de casa e estou a morar com o Henry’”. Conta-nos isto ainda com sotaque de coração, ao telefone, a partir de uma sala de espera num aeroporto. “Nesse dia, alguém que tinha acabado de conhecer disse que eu devia tentar a meditação para desgostos amorosos e que na universidade de Nova Deli ia agora um tipo falar sobre isso, chamado Maharishi”.
Encantado pelos ensinamentos do mestre, o produtor segue caminho para o Parque Nacional de Rajaji, no sopé dos Himalaias, onde corre o sagrado Ganges, e se esconde o Ashram do Maharishi. “Nas portas do Ashram descobri que estavam lá os Beatles, que foi a pior notícia possível, pois não me deixaram entrar. Perguntei se podia esperar e esperei durante oito dias na porta, não sabia mais o que fazer, estava mesmo desesperado. Quando consegui entrar, ensinaram-me a meditar em cinco minutos, meditei durante meia hora e foi um milagre imenso, a faca que estava espetada saiu do meu coração. Depois conheci os Beatles.”
Boa companhia, má comida
O Ashram, que atualmente está nos últimos retoques de uma grande reforma, na expectativa de receber turistas durante o mês que assinala os 50 anos dos Beatles na Índia, tem primeira data de celebração dia 15, quando chegou metade da banda, sendo que os restantes aterraram dia 19, acompanhados pelas mulheres e amigos ilustres como Mike Love dos Beach Boys e o músico folk Donovan. “O cenário era inspirador, com os Himalaias cobertos de neve”, diz-nos Jenny. “O céu azul e o cascalho a serpentear pelo rio Ganges abaixo…”
“A minha maior surpresa no meio daquilo tudo foi perceber como os Beatles não estavam corrompidos pela fama, não tinham aquele ar superior que as pessoas famosas têm, estavam mesmo à vontade”, garante Prudence. “Ficávamos sentados perto do rio a cantar, enquanto o George e o John tocavam alguma coisa, o George sempre com a cítara e eu, a Pattie, e a Cynthia [que era então mulher de Lennon] sentados no tecto do nosso bungalow enquanto eles criavam canções”. É assim que Jenny descreve o dia-a-dia de uma banda que passou de uma sequência imperturbável de concertos, álbuns e cortes de cabelo, para trajes brancos e barba por fazer, a contemplar o passar do tempo de missangas.
“Eles estavam a conversar e eu não queria interromper”, lembra Paul Saltzman, sobre a primeira vez que viu os músicos e companhia. “O John Lennon olhou para mim e disse para eu me sentar, quando me sentei pensei ‘meu deus, são os Beatles!’. Depois, o John perguntou daquela maneira sarcástica se eu era americano — o que não era um elogio. Disse que não, e respondeu para os outros ‘é de outra colónia’. Perguntou ainda se eu prestava devoção à rainha, disse que nunca, e o Ringo afirmou que mesmo assim tinha de usar dinheiro com a cara dela. Respondi: ‘Mas vocês é que têm de a aturar!’ Todos se riram e assim passei uma semana com eles, como se fossem pessoas normais”.
Saltzman, que é um produtor reconhecido no cinema canadiano e vencedor de um Emmy, só voltou a estes momentos efémeros em que partilhou refeições e piadas no Olimpo entre as maiores divindades da pop quando a filha encontrou um baú no sótão repleto de fotografias dos Beatles na Índia, que o pai esquecera por completo. Sem pedir autorização, fotografou a torto e direito os fab four no Ashram, material exclusivo que até hoje recusa a vender. No The Beatles Story, museu em Liverpool, expõe no dia 16 de fevereiro algumas destas fotografias, na companhia de Jenny Boyd e da irmã, que prometeram conversar com todos os beatlemaníacos presentes.
“A comida era horrível, sou alérgico a imensas coisas”, reclama Ringo na colecção “Anthology”. “Levei duas malas, uma com roupa e outra com feijões Heinz”. O pau para toda a obra, mítico assistente Mal Evans, fazia o preparo para o baterista, sensível à dieta vegetariana e à imposta sobriedade, exigências do dono da casa. “Sentámos-nos nas montanhas a comer aquela comida vegetariana horrível e a compor músicas”, conta John. “Escrevemos toneladas de músicas na Índia.” Em modo frenético, alguns dizem que escreveram mesmo 48 canções, John e Paul prosseguiram a incessante competição criativa que alimentava a banda, sempre com o ouvido atento a qualquer little help vinda dos amigos.
Donovan, sem consciência disso, ensina os dois a dominar a guitarra através de novas fórmulas, o que possibilitou temas como “Dear Prudence”, “I Will” e tantas outras que fazem parte de White Album, que gravaram pouco tempo depois desta excursão indiana. Mike Love, beach boy e um dos letristas mais engenhosos dos anos 60, sugere que transformem “Back in The USSR” numa homenagem às mulheres comunistas. E o pequeno velhinho sorridente que quer salvar o mundo, como Paul Saltzman chamava ao guru, vê alguns dos seus ensinamentos esvoaçarem para dentro de versos, como em “Everybody’s Got Something to Hide Except Me and My Monkey”:
“The deeper you go, the higher you fly
The higher you fly, the deeper you go
So come on come on
Come on it’s such a joy”
Nesta correria nascem “Julia”, “I’m So Tired”, “Across the Universe”, ”Blackbird”, “Mother Nature’s Son” e tantas outras, num misto de fé arrebatadora na paz e total cepticismo em relação ao novo ano, canções proféticas que advinhavam todas as convulsões contraditórias de 68:
“You say you want a revolution
Well, you know
We all want to change the world”
“Eu assisti o nascimento de ‘Ob-La-Di, Ob-La-Da’”, garante Paul Saltzman, que tem tudo fotografado. E se está a desdenhar quando ouve este testemunho, é garantido que é melhor assistir ao nascimento de uma canção dos Beatles que não assistir a nenhuma. “Devo ter ouvido outras, mas não reconheci, na ‘Ob-La-Di, Ob-La-Da’ eles inventaram primeiro o refrão, que tocavam insistentemente ao longo da tarde, iam experimentando, até que o Paul olhou para mim e disse: ‘Até agora só temos isto’. E foi descansar”.
“Foi um período muito importante na história de todos aqueles músicos”, garante Jenny Boyd. “E apesar de termos saído dali de forma abrupta, todos conseguiram material muito bom para gravar”. Para Donovan, que lançaria nesse ano o álbum The Hurdy Gurdy Man, a inspiração estava mesmo na beleza de Jenny, cabelo dourado com lilases e olhar sonhador. “Eu era uma menina muito tímida de 19 anos e não tinha a mínima ideia que o Donovan se sentia assim por mim”, diz sobre o adorável single “Jennifer Juniper”. “As palavras da canção são de amor, senti-me honrada por ter uma música sobre mim, e hoje, sempre que a ouço novamente, lembra-me de um tempo distante, onde éramos todos jovens e inocentes”.
[“Jennifer Juniper”, de Donovan:]
Apesar de Jenny continuar deslumbrada por ter um single em seu nome, ainda está a anos de luz da conquista da irmã Pattie, musa inspiradora com repertório inigualável, com exemplos em “I Need You”, “Something”, “Wonderful Tonight” e “Layla”, a canção tão arrebatadora, que sozinha deu um novo cunhado a Jenny: Eric Clapton.
“E a serenidade? Onde está?”
“Adorei a companhia de John e George, especialmente do George, que estava a levar seriamente a meditação”, reflete Prudence Farrow, que ao contrário dos populares versos, afinal até foi lá fora brincar um pouco e conhecer os colegas de bungalow. “As mulheres deles acho que estavam apenas a curtir a beleza de lugar, e é verdade que a certa altura apareceram executivos e advogados que foram muito perturbadores para a minha meditação, não tinham a mínima ideia do que se estava a passar ali”.
A irmã de Mia Farrow não ficou indiferente ao burburinho que acabou mesmo por assinalar o início de fim dos Beatles na Índia, quando cada um a seu tempo acabaria por abandonar o Maharishi, com a brutalidade da realidade a obrigar a voltar a Londres. Brian Epstein, o manager conhecido como o quinto Beatle, estava morto, notícia que tiveram que absorver quando tinham acabado de começar a testar os ensinamentos do Maharishi, no País de Gales. “Foi muito estranho ter acontecido naquele momento preciso”, recordou George em “Anthology”. “Começas a fazer a viagem interior e no mesmo dia o Brian bate as botas, foi muito far out.” Ringo Starr, sempre mais económico nas palavras, descreveu o estado de espírito melhor que ninguém: “Ficámos como galinhas sem cabeça”.
A solução para fugir da morte do amigo foi um retiro no outro lado do mundo, mas mesmo com todas aquelas horas de meditação e comida vegetariana, Brian insistia em continuar morto, deixando a responsabilidade de organizar o negócio mais rentável e volúvel da década para a própria banda — que como hoje sabemos, nunca mais recuperou desta perda fatal.
“No fundo, a viagem à Índia foi uma oportunidade única para os Beatles encontrarem alguma serenidade, longe dos milhões de fãs e das coisas que tinham de tratar”, reflete Jenny, “mesmo que não tenha sido o que esperavam, deu essa oportunidade para olhar com mais atenção para dentro deles”. Ringo, que começa rapidamente a odiar todo o projeto, abandona Ashram passado duas semanas, McCartney fica cinco semanas, e Lennon e Harrison insistem no transcendentalismo mais uma boa temporada. “Tivemos umas belas férias na Índia e voltamos para ser homens de negócios”, respondia Lennon um tempo depois com alguma mágoa, no mesmo tom sarcástico com que gozou com o canadiano, ou que cantou “Sexy Sadie”, sobre o Maharishi, a canção que definitivamente afastou os Beatles dos ensinamentos do guru sorridente, com aquelas primeiras linhas cortantes:
“Sexy Sadie, what have you done
You made a fool of everyone”
[uma versão alternativa de “Sexy Sadie”:]
“Na verdade, esta forma de meditação do Maharishi com mantra tem mil anos”, explica-nos Paul Saltzman sobre o controverso guru que se fosse vivo teria uma centena de anos. “Aquilo era tudo um pouco de marketing, feito por pessoas menos boas da organização que rodeava o Maharishi, que ainda acredito ter sido uma pessoa muito pura”.
Os Beatles mudavam de ideologia e som como quem troca de calças, seres alados insusceptíveis a fixarem os pés no chão, sempre receptivos e sempre céticos, ao contrário da querida Prudence, de Jenny e de Paul, que de olhos fechados e sussurros de mantras sentiram a vida mudar bruscamente, com esta viagem de há 50 anos. Para celebrar a data, Paul Saltzman prepara ainda este mês um regresso ao Ashram, onde pretende finalizar um documentário sobre os Beatles na Índia (“The Beatles In India”, que deve estrear ainda este ano).
“Quando comecei a revelar algumas destas coisas que aconteceram na viagem, a mostrar as fotografias, o meu melhor amigo veio ter comigo chocado porque nunca lhe tinha mencionado nada disto”, confessa Paul, o herói improvável de coração partido que tocou nos deuses e sobreviveu para contar a história. “Mas o que as pessoas têm de entender é que conhecer os Beatles na Índia foi a experiência mais profunda da minha vida.”