Há uma canção das Escuteiras que aprendi na escola primária: «faz outros amigos, mas mantém os antigos; aqueles são de prata, estes são de ouro.» Para a América, a aliança com a Europa vale mais do que ouro. (…)
As relações entre os países assentam em interesses e valores partilhados, mas igualmente em personalidades. O elemento pessoal, em assuntos internacionais tem, para o bem e para o mal, maior peso do que muitos esperariam. Basta pensar na amizade que existia entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher que contribuiu para vencer a guerra fria, ou a hostilidade entre Khrushchev e Mao Tsé-Tung que ajudou a perdê-la.
Foi a pensar nisto que comecei a aproximar-me de alguns dos principais dirigentes no meu primeiro dia completo no departamento de Estado. Enquanto fui primeira-dama e senadora tinha conhecido e gostado de alguns deles. Outros tornar-se-iam novos amigos. Mas seriam, todos eles, nossos preciosos parceiros no trabalho que esperávamos vir a fazer.
A velha relação e um vulcão chamado Sarkozy
A cada nova chamada, confirmava numa mensagem, a garantia e o compromisso renovado da América. David Miliband, ministro dos Negócios Estrangeiros Britânicos fez-me engolir em seco e sorrir ao mesmo tempo quando disse: «Meu deus, que mundo de problemas lhe passaram os seus antecessores! É um trabalho hercúleo, mas penso que é o Hércules certo para ele!» Fiquei vaidosa, como devia, mas deixei claro que o que mais precisávamos agora era de uma parceria renovada e de uma iniciativa comum, não de um solitário herói mitológico.
David provou ser um parceiro inestimável. Era novo, enérgico, inteligente, criativo e atraente, com um sorriso pronto. as conceções que tínhamos deste mundo em mudança eram francamente semelhantes. Ele acreditava na importância da sociedade civil e partilhava a minha preocupação pelo número crescente de pessoas sem trabalho e de jovens desligados nas sociedades europeias, americanas e em todo o mundo. Para além de termos desenvolvido uma boa relação profissional, tornámo-nos bons amigos.
Encontrei-me uma série de vezes com David Cameron, umas vezes com o presidente Obama, outras vezes sozinha. Com a sua curiosidade intelectual, estava pronto a trocar ideias sobre quaisquer acontecimentos no mundo
O chefe de David era o aguerrido primeiro-ministro Gordon Brown, do Partido Trabalhista, sucessor de Tony Blair. Gordon Brown, um persistente e inteligente escocês, acabou a conduzir a recessão económica que atingiu seriamente a Inglaterra. Apanhou com as pesadas consequências de uma má jogada, incluindo a ressaca ao apoio que Tony Blair deu à decisão de Bush de invadir o Iraque. Quando, em abril de 2009, acolheu a cimeira do G-20, pude confirmar o estado de tensão em que estava. Perdeu as eleições seguintes e foi substituído por David Cameron, um candidato tory (conservador).
O presidente Obama e David Cameron entenderam-se a partir do primeiro minuto, começando com uma reunião privada antes da vitória eleitoral de Cameron. Tinham um relacionamento fácil e gostavam da companhia um do outro. Ao longo dos anos seguintes encontrei-me uma série de vezes com David Cameron, umas vezes com o presidente Obama, outras vezes sozinha. Com a sua curiosidade intelectual, estava pronto a trocar ideias sobre quaisquer acontecimentos no mundo, do desenrolar da Primavera Árabe à crise na Líbia e ao debate em curso sobre austeridade versus crescimento económico.
Para ministro dos Negócios Estrangeiros, Cameron escolheu William Hague, um antigo dirigente do Partido Conservador e um implacável adversário de Tony Blair na década de 1990. Antes da eleição, quando era ainda ministro sombra dos negócios Estrangeiros, Hague veio visitar-me a Washington. Começamos, cada um por seu lado, por uma abordagem cautelosa, mas para minha surpresa descobri que era um estadista sério e previdente, com sentido prático e humor. Também ele se tornou um bom amigo. Eu era uma entusiasta da sua biografia de William Wilberforce, o principal defensor da extinção da escravatura na Inglaterra do século XIX.
Hague trouxe à sua tarefa a consciência de que a diplomacia é lenta, muitas vezes aborrecida mas absolutamente necessária. num jantar de despedida que me ofereceu em 2013, na embaixada britânica em Washington, o seu brinde foi uma preciosidade: «Um grande ex-ministro dos Negócios Estrangeiros britânico e primeiro-ministro, Lord Salisbury, afirmou que as vitórias da diplomacia “são feitas de séries de vantagens microscópicas: uma sugestão astuciosa aqui, uma oportuna cortesia ali, uma sábia concessão num determinado momento e uma persistência sensata noutro momento; são feitas de um tato sempre atento, de uma calma impassível e de uma paciência que nenhuma imprudência, nenhuma provocação, nenhum disparate faz tremer”.» Estas palavras resumiam na perfeição a minha experiência como chefe da diplomacia americana. Lembravam-me, além disso, que Hague era um David Beckham a brindar!
Do outro lado do canal da Mancha encontrei outros parceiros memoráveis. Bernard Kouchner, o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, era um médico socialista no governo de Nicolas Sarkozy, um presidente conservador. Bernard tinha começado nos Médicos sem Fronteiras, que providenciam assistência médica em zonas de desastre e conflito, em alguns dos lugares mais pobres do planeta. Foi um interveniente chave no Haiti devastado pelo terramoto de janeiro de 2010. Trabalhei ainda em estreita colaboração com o seu sucessor, Alain Juppé, e mais tarde com Laurent Fabius, escolhido pelo sucessor de Sarkozy, François Hollande, que foi eleito em maio de 2012. Embora de partidos políticos opostos, Juppé e Fabius eram ambos excelentes profissionais e uma companhia agradável.
Os arrebatados solilóquios de Sarkozy, quase em estilo corrente de consciência, abrangiam todos os temas da política externa, tornando difícil qualquer intervenção dos parceiros, mas eu nunca me cansei de tentar.
Muitos dirigentes são mais calmos em pessoa do que aparentam quando se mostram em público. Não é o caso de Sarkozy. Em pessoa, era ainda mais engraçado e teatral. Estar sentada ao seu lado numa reunião era sempre uma aventura. Saltava e gesticulava enfaticamente para apresentar os seus argumentos, enquanto a sua destemida intérprete se debatia para o acompanhar nos raciocínios, conseguindo afinal, imitá-lo na perfeição, inclusive nas inflexões. Os arrebatados solilóquios de Sarkozy, quase em estilo corrente de consciência, abrangiam todos os temas da política externa, tornando difícil qualquer intervenção dos parceiros, mas eu nunca me cansei de tentar. Era suficientemente descontraído para coscuvilhar, descrevendo outros dirigentes como doidos ou fracos; um deles era um maníaco, «ex-viciado em drogas»; outro tinha um militar que «não sabia combater»; e ainda outro descendia de uma longa linhagem de «brutos». Sarkozy não parava de perguntar porque é que todos os diplomatas com quem se encontrava eram tão imperdoavelmente velhos, cinzentos e masculinos.
Entre o riso e a discussão, debatíamos os assuntos, mas, na maior parte das vezes, acabávamos por concordar naquilo que era preciso fazer. Sarkozy estava determinado em levar de volta a França a um lugar de topo no poder mundial e impaciente por assumir maior carga das questões internacionais. Foi esta determinação que vi em ação na Líbia. E, apesar da sua exuberância, era sempre um gentleman. Num dia gelado de janeiro de 2010, enquanto subia as escadas do Palácio do Eliseu em Paris para o cumprimentar, perdi o sapato, ficando descalça em frente da imprensa, que aproveitou alegremente para tirar fotografias. Ele pegou atenciosamente na minha mão e ajudou-me a apanhar o sapato. Uns dias mais tarde enviei-lhe uma cópia da fotografia com a legenda: «Posso não ser a Cinderela, mas você será sempre o meu Príncipe Encantado.»
“Uma jovem mulher que irá muito longe”
O governante mais poderoso da Europa, no entanto, era uma mulher de temperamento quase oposto ao do Sarkozy: a chanceler Angela Merkel, da Alemanha. Conheci Angela Merkel em 1994, durante uma visita a Berlim com Bill. Ela viera da Alemanha de Leste, sendo já nessa altura ministra das Mulheres e Juventude, no governo do chanceler Helmut Kohl. Quando me foi apresentada descreveram-ma como «uma jovem mulher que irá muito longe». Palavras que se tornaram proféticas.
Cientista talentosa, estudara Física, o que a tornava particularmente perita em questões técnicas, como alterações climáticas e poder nuclear.
Ela e eu mantivemo-nos em contacto nos anos seguintes, chegando a aparecer as duas juntas num espetáculo para a televisão alemã em 2003. Em 2005 Angela foi eleita chanceler, a primeira mulher à frente do seu país. Apesar do alarde ao progressismo alemão em questões como saúde e mudanças climáticas, a Europa pode ainda reconhecer-se como o mais respeitável clube de antigos alunos, e foi gratificante ver que Angela viria a agitar as águas.
A minha admiração por ela cresceu durante o meu mandato enquanto secretária de Estado. Era uma mulher decidida, astuta e direta, que me dizia sempre com franqueza exatamente o que pensava. Cientista talentosa, estudara Física, tendo feito o seu doutoramento defendendo uma dissertação em química quântica, o que a tornava particularmente perita em questões técnicas, como alterações climáticas e poder nuclear. Ela trazia a sua curiosidade sobre o mundo a qualquer discussão, levando-se a interrogar sobre acontecimentos, pessoas e ideias – uma mudança refrescante em relação a muitos outros dirigentes que parecem pensar que já conhecem tudo que é preciso conhecer.
Quando, em junho de 2011, a chanceler veio a Washington para uma visita de Estado, organizei um almoço em sua honra e brindei-a calorosamente. Em resposta, ela ofereceu-me a capa emoldurada de um jornal alemão que tinha feito a cobertura da minha recente visita a Berlim. Assim que a vi desatei a rir. A primeira página apresentava uma grande fotografia de nós as duas de pé, ao lado uma da outra, com as cabeças cortadas. dois pares de mãos entrelaçavam-se à frente dos dois fato-casaco semelhantes, exatamente da mesma maneira. O jornal desafiava os seus leitores a adivinhar qual era Angela Merkel e qual era eu. Tive de reconhecer que era difícil decidir. O jornal emoldurado permaneceu no meu gabinete durante o resto do mandato como secretária de Estado.
A liderança de Angela foi posta à prova durante os piores anos da crise financeira global. A Europa foi duramente afetada pela crise, suportando excepcionais desafios por causa do euro, a moeda única partilhada por muitas das nações. As economias mais pobres – Grécia, Espanha, Portugal, Itália e Irlanda – enfrentavam uma dívida pública terrível, um fraco desenvolvimento económico e uma taxa de desemprego muito alta, tudo isto sem os instrumentos de política monetária à disposição de quem controla a sua própria moeda. Em troca da ajuda de emergência, a Alemanha, a mais forte economia da Zona Euro, insistiu que estes países teriam de tomar medidas drásticas na redução dos gastos e reformar os seus orçamentos.
A crise levantava um dilema político sério. Se as economias frágeis não conseguissem resolver as suas dívidas, toda a Zona Euro poderia sucumbir, o que lançaria o mundo e a nossa economia no caos. Por outro lado, também me preocupava que um excesso de austeridade na Europa pudesse vir a abrandar ainda mais o crescimento, tornando difícil a estes países e ao resto do mundo sair do buraco. Nos Estados Unidos, o presidente Obama reagia à recessão fazendo aprovar no Congresso um programa de investimento agressivo para estimular, de novo, o crescimento económico, enquanto se esforçava para reduzir a dívida nacional a longo prazo. Parecia razoável sugerir que a Europa tomasse medidas semelhantes, em vez de cortar unicamente na despesa, o que provocaria uma contração ainda maior na economia.
Passei muito tempo a conversar com os líderes europeus, incluindo Angela Merkel, sobre estes desafios. Podíamos concordar ou não com as suas políticas fiscais e monetárias, mas era impossível não ficar impressionado com a sua determinação de aço. Como observei em 2012, ela «carregava a Europa aos ombros». (…)
Um acordo nos Balcãs
As guerras da década de 1990 nos Balcãs são um aviso pungente de que os velhos ódios da Europa podem despontar em forma de nova e devastadora violência.
Quando visitei a Bósnia em outubro de 2010, como parte de uma viagem de três dias aos Balcãs, fiquei ao mesmo tempo satisfeita com os progressos que observei e consciente da gravidade do que ainda restava fazer. As crianças agora podiam ir à escola em segurança e os pais para o trabalho, mas não havia suficientes bons empregos, e as dificuldades económicas e o descontentamento continuavam a fervilhar. Os virulentos ódios étnicos e religiosos que haviam alimentado as guerras tinham arrefecido, mas persistiam perigosas correntes de sectarismo e nacionalismo. O país era uma federação de duas repúblicas, uma dominada por muçulmanos bósnios e croatas, a outra dominada por sérvios bósnios. Os sérvios bósnios frustravam quaisquer tentativas para afastar os impedimentos ao crescimento e ao bom governo, na esperança teimosa de vir um dia a fazer parte da Sérvia, ou até de se tornarem um país independente. A promessa de uma maior estabilidade e mais oportunidades representada pela integração na União Europeia ou na NATO permanecia fora do alcance.
Em Sarajevo participei num debate aberto com estudantes e líderes da sociedade civil, no histórico Teatro Nacional, que tinha escapado a danos mais sérios na guerra. Um jovem levantou-se para contar a viagem que tinha feito aos Estados Unidos como parte de um programa de intercâmbios académicos financiado pelo Departamento de Estado, com as universidades e faculdades americanas. Ele referiu-se à experiência como «facilmente uma das melhores» da sua vida e implorou-me que continuasse a apoiar e alargar estes programas. Quando lhe pedi que explicasse porque pensava que tinha sido tão importante, o jovem respondeu: «aprendemos a escolher a tolerância em vez da intolerância, a trabalhar em conjunto com os outros respeitando-os, em igualdade… Havia participantes do Kosovo e da Sérvia ao mesmo tempo, e nenhum deles se mostrou preocupado com as questões a dividir os seus países porque perceberam que… somos amigos, podemos conversar e agir em conjunto; este não é um problema, se quisermos realmente realizar alguma coisa.» Gostei muito da frase simples que usou: «escolher a tolerância em vez da intolerância». Isso abrangia na perfeição a transição pela qual o povo dos Balcãs estava ainda a passar. E era a única forma de curar as suas feridas e as feridas de todos.
Mas as histórias e os ódios antigos provavam serem difíceis de ultrapassar. Um dos objetivos da minha visita era levar ambos os lados a tomar uma resolução.
Seguimos depois para o Kosovo. Na década de 1990, o Kosovo era parte da Sérvia, e a sua maioria, uma população étnica albanesa, enfrentou ataques brutais e a expulsão forçada pelas forças de Milošević. Em 1999, uma campanha aérea da NATO, liderada pelos Estados Unidos bombardeou militares e cidades sérvias, incluindo Belgrado, para impedir a limpeza étnica. Em 2008, o Kosovo declarou a sua independência e foi reconhecido como uma nova nação pela maioria da comunidade internacional. Mas a Sérvia recusou-se a reconhecer a independência do Kosovo e continuou a exercer uma influência significativa na região da fronteira do norte, onde vivem muitos sérvios étnicos. A maioria dos hospitais, das escolas e até dos tribunais continua a ser dirigida e financiada por Belgrado, e as forças de segurança sérvias proporcionavam proteção. Tudo isto desestabilizava a soberania do Kosovo, exacerbava as divisões internas do país e constrangia as relações entre os dois vizinhos. A situação tensa interferia com o progresso económico e social para o qual ambos os países precisavam de trabalhar cada um por si, incluindo a candidatura à União Europeia. Mas as histórias e os ódios antigos provavam serem difíceis de ultrapassar. Um dos objetivos da minha visita era levar ambos os lados a tomar uma resolução.
Quando cheguei a Pristina, a capital do Kosovo, multidões entusiásticas na beira da estrada do aeroporto aplaudiam a nossa comitiva, com muitos adultos carregando crianças aos ombros para que pudessem ver. Quando chegámos à praça no centro da cidade, que ostenta uma estátua monumental de Bill [Clinton], a multidão era tão densa que a comitiva foi obrigada a interromper a marcha. Fiquei contente que isso tivesse acontecido; queria saudá-los. Então, saltei do carro e comecei a apertar mãos, a dar abraços e a ser abraçada. Do outro lado da Praça havia uma pequena e encantadora loja de roupas com um nome familiar: Hillary. Não consegui resistir a uma visita rápida. O empregado da loja contou-me que tinham posto o meu nome à loja para que «a estátua de Bill não se sentisse sozinha na praça».
Alguns meses mais tarde, em março de 2011, representantes do Kosovo e da Sérvia sentaram-se lado a lado em Bruxelas sob a proteção da União Europeia. Era a primeira vez que falavam diretamente e com calma um com o outro, desta forma. Os diplomatas americanos estavam presentes em cada reunião, incitando ambos os lados para que aceitassem os ajustes que poderiam levar à normalização das relações e abrir a porta a uma eventual adesão à União Europeia. E isso só se tornaria possível quando as questões de fronteiras estivessem resolvidas. As conversações continuaram durante 18 meses. Os negociadores alcançaram alguns acordos modestos sobre a liberdade de movimentação, taxas e gestão das fronteiras. Enquanto a Sérvia não reconhecia a independência do Kosovo, deixava cair as objeções à sua participação em conferências regionais. Ao mesmo tempo, insisti com a NATO para que prolongasse a missão militar no Kosovo, onde se mantêm, desde junho de 1999, para apoiar a paz, 5000 soldados provenientes de 31 países.
As questões essenciais mantiveram-se por resolver quando um novo governo nacionalista foi eleito na Sérvia na primavera de 2012. Cathy Ashton, a alta responsável para a política externa da União Europeia (o seu primeiro alto responsável para os Negócios Estrangeiros e para a Política de Segurança) e eu decidimos partir juntas para visitar os dois países e tentar quebrar o impasse, apressando uma resolução final. Cathy era uma parceira inestimável neste e noutros assuntos. No reino Unido, Cathy tinha servido como presidente da Câmara dos Lordes e ministra da Presidência no governo de Gordon Brown.
Depois de um ano como comissária europeia para o comércio, foi escolhida para representante dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, uma pequena surpresa porque, tal como eu, ela não era uma diplomata de carreira tradicional, mas veio a tornar-se uma parceira eficiente e criativa. Era simples e fácil de conviver (especialmente para uma baronesa, dizia eu a meter-me com ela) e trabalhámos bem em conjunto, não apenas para questões europeias, mas também nos assuntos do Irão e do Médio Oriente. Costumávamos chamar a atenção uma da outra quando, numa grande reunião, um dos nossos colegas do sexo masculino involuntariamente, ou até inconscientemente, escorregava num comentário sexista. Nessa altura, ambas revirávamos os olhos.
Em outubro de 2012 fizemos juntas a ronda pelos países dos Balcãs. Insistimos com cada um para avançar com medidas concretas no sentido de normalizar as relações. O primeiro-ministro do Kosovo, Hashim Thaçi disse-nos: «o Kosovo de hoje não é ainda o Kosovo dos nossos sonhos. Nós estamos a trabalhar persistentemente para um Kosovo europeu, para um Kosovo euro-atlântico. Estamos conscientes que precisamos de fazer mais.» Cathy e eu encontrámo-nos também com os representantes da minoria étnica sérvia numa igreja ortodoxa em Pristina, que tinha sido incendiada nas revoltas anti-sérvias em 2004. Eles preocupavam-se com o seu futuro num Kosovo independente. Estavam gratos ao governo pelos últimos esforços no sentido de se tornarem mais inclusivos, oferecendo emprego aos sérvios. Isto era o tipo de reconciliação de base que queríamos promover. A presidente muçulmana do Kosovo, uma mulher extraordinária, Atifete Jahjaga, era nossa aliada no esforço para a mudança e para a reconciliação dentro do seu país. Como disse a Cathy, este género de diplomacia não trata apenas da normalização das relações entre os países; o mais importante é «normalizar a vida para que seja possível à gente que vive no norte prosseguir na sua vida quotidiana como parte da comunidade».
Se continuarem a implementar os acordos, os povos do Kosovo e da Sérvia terão finalmente a oportunidade de construir o futuro próspero e pacífico que merecem.
Em abril de 2013, graças ao contínuo esforço de Cathy baseado nos alicerces que ambas tínhamos preparado, o primeiro-ministro do Kosovo, Thaçi, e o primeiro-ministro da sérvia, Ivica Dačić, chegaram a um marco no acordo para resolver as disputas ao longo da fronteira, no sentido da normalização, abrindo a porta a uma possível adesão à União Europeia. O Kosovo aceitou conceder maior autonomia às comunidades sérvias locais no norte, e a Sérvia aceitou retirar as suas forças no terreno. Ambas as partes se comprometeram a não interferir na busca de cada uma por uma maior integração europeia. Se continuarem a implementar os acordos, os povos do Kosovo e da Sérvia terão finalmente a oportunidade de construir o futuro próspero e pacífico que merecem. (…)
Regresso a Belfast
A minha última viagem como secretária de Estado, em dezembro de 2012, levou-me de novo à Irlanda do Norte, um lugar onde as pessoas se esforçaram arduamente, com muito sofrimento, para abandonar os antigos conflitos. De cada um dos lados da divisão sectária católicos-protestantes, afirmam as pessoas que o trabalho está longe de ter acabado e que o seu maior desafio agora será incentivar uma atividade económica suficientemente consistente para criar o progresso inclusivo que há de beneficiar cada uma das comunidades. Mesmo assim, durante um almoço em Belfast, alegremente rodeada de velhos amigos e conhecidos, evocámos o quanto já tínhamos alcançado em conjunto.
Quando Bill foi eleito presidente pela primeira vez, os distúrbios na Irlanda do Norte arrastavam-se há décadas. A maioria dos protestantes queria manter-se parte do Reino Unido, enquanto a maioria dos católicos queria juntar-se à República da Irlanda, a sul, e longos anos de violência tinham deixado ambos os lados amargurados e entrincheirados. A Irlanda do Norte era uma ilha dentro de outra ilha. Rua a rua, os velhos critérios de identidade sectária afirmavam-se explicitamente – a igreja a que cada família ia, a escola que as crianças frequentavam, a camisola do clube de futebol que usavam, a rua onde caminhavam, a que horas do dia e com que amigos. Todos reparam em tudo. E isto era um dia normal.
Em 1995, Bill nomeou o senador George Mitchell como enviado especial para a Irlanda do Norte. Bill tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a visitar o país quando ele e eu estivemos em Belfast no final desse ano, e acendemos as luzes da sua árvore de Natal, diante de uma grande multidão. Voltei à Irlanda do Norte quase todos os anos nessa década e, durante os anos que se seguiram, mantive-me ativamente envolvida como senadora. Em 1998 ajudei a organizar a conferência Vozes Vitais, de mulheres que se batiam por um acordo de paz. Os seus protestos de «Já chega!» tinham-se tornado um grito de guerra que não mais podia ser ignorado.
O acordo de Sexta-Feira Santa, que colocou a Irlanda do Norte no caminho para a paz, foi um triunfo da diplomacia, em especial para Bill e para George Mitchell, mas mais do que tudo foi um testemunho da coragem do seu povo.
Quando já me encontrava no pódio a falar, olhei para cima e vi, na primeira fila do balcão, Gerry Adams, Martin McGuinness e outros dirigentes do Sinn Féin, a ala política do IRA, o exército republicano irlandês. Aatrás deles encontravam-se os dirigentes unionistas que se recusavam a falar com os Ssinn Féin. O facto de se encontrarem ambos ali, numa conferência de mulheres para a paz, confirmava a abertura de ambas as partes ao compromisso.
O acordo de Sexta-Feira Santa, que foi assinado nesse ano e colocou a Irlanda do Norte no caminho para a paz, foi um triunfo da diplomacia, em especial para Bill e para George Mitchell, que tanto fizeram para aproximar os dois partidos. Mais do que tudo, no entanto, foi um testemunho da coragem do povo da Irlanda do Norte. Parecia um daqueles momentos quando «esperança e história» rimam, nas palavras do grande poeta irlandês Seamus Heaney. A implementação provar-se-ia irregular, mas a paz começou a gerar proveitos. A taxa de desemprego baixou, o valor das casas aumentou e o número de empresas americanas a investir na Irlanda do Norte subiu.
Na altura em que lá voltei como secretária de Estado em 2009, a crise financeira global tinha deixado pesadas marcas no famoso «tigre celta». As barricadas e o arame farpado tinham desaparecido das ruas, mas o processo de desarmamento e «devolução», que era suposto garantir uma autonomia crescente à Irlanda do Norte, estava em riscos de estagnar. Muitos católicos e protestantes continuavam a viver uma vida segregada, em bairros diferentes, alguns destes separados por muros reais, com o título orwelliano de «muros da paz».
Em março de 2009, dois soldados ingleses foram mortos no condado de Antrim e um polícia foi abatido no condado de Armagh. Em vez de inflamar a violência, os assassínios produziram o efeito oposto. Católicos e protestantes marcharam juntos em vigílias, assistiram a cerimónias inter-religiosas e declararam, a uma só voz, a sua recusa em voltar aos tempos antigos. As mortes podiam ter sido o início de uma volta atrás. Em vez disso, as mortes provaram quão longe a Irlanda do Norte tinha chegado. Numa visita em outubro de 2009 e nos frequentes telefonemas ao primeiro-ministro Peter Robinson, ao primeiro-ministro adjunto, Martin McGuiness, e a outros dirigentes, insisti com eles para que continuassem o desarmamento dos grupos paramilitares e dessem os passos finais para a devolução, colocando as áreas vitais do policiamento e da justiça, especialmente, sob o controlo do seu governo.
Dirigindo-me ao plenário na assembleia da Irlanda do Norte, lembrei-lhes que, «no processo de paz, tem havido momentos em que o progresso parece difícil, quando a estrada onde seguimos se fecha à nossa frente e não parece haver qualquer saída. Mas vocês encontraram sempre uma maneira de fazer o que acreditam estar certo para o povo da Irlanda do Norte.» E por causa desta perseverança, o país «destaca-se como um exemplo para todo o mundo em como até os mais acérrimos adversários conseguem superar as diferenças e trabalhar juntos para um bem maior. Por estas razões, encorajo-os agora a seguir em frente, com esse mesmo espírito imparável de determinação e firmeza. Pela minha parte, garanto que os Estados Unidos estarão sempre ao vosso lado, enquanto prosseguirem o trabalho para a paz e a estabilidade duradouras».
Apenas semanas depois da minha visita, um carro-bomba feriu seriamente outro polícia, e parecia, outra vez, que aquele tecido de paz, cuidadosamente costurado, se iria romper. Uma vez mais, a paz manteve-se. Em fevereiro de 2010, os partidos chegaram a um novo acordo para os poderes de policiamento a que se chamou o acordo de Hillsborough. O progresso para uma paz duradoura estava de novo no bom caminho, apesar dos esforços dos extremistas de ambos os lados para fazer descarrilar o processo. Em junho de 2012, assistimos a um outro espantoso sinal de mudança: a rainha Isabel II visitou a Irlanda do Norte e apertou a mão a Martin Mc-Guinness. Alguns anos antes, este gesto teria sido impensável.
Em dezembro de 2012, 17 anos depois da minha primeira visita a Belfast, estava de volta e cruzei-me com uma velha amiga, Sharon Haughey. Em 1995, quando Sharon tinha apenas 14 anos, enviou a Bill uma carta comovedora sobre o futuro que ela sonhava para ela e para a Irlanda do Norte. Bill leu um excerto da carta quando se acendeu a Árvore de Natal em Belfast: «Ambas as partes ficaram feridas. Ambas as partes terão de perdoar», tinha ela escrito. Quando Sharon era mais crescida trabalhou como estagiária no meu gabinete do senado, ajudando a servir Nova Iorque com a sua grande e orgulhosa comunidade americano-irlandesa. Aprendeu muito em Washington e quando voltou para casa candidatou-se e foi eleita presidente da câmara de Armagh. Quando apareceu nesse almoço em 2012, ostentava o seu colar cerimonial do cargo, e contou-me que ia casar no final desse mês. Pensei na família que a Sharon estava prestes a criar e em todas as crianças da Irlanda do Norte que cresceram depois do acordo de Sexta-Feira Santa. Elas podiam agora viver sem as dores das perturbações políticas. Espero que nunca voltem atrás e que a paz e o progresso possam servir de inspiração ao resto da Europa e do mundo.