O drible é um jogo de cintura, qualquer coisa como um movimento desconcertante. Em movimento ou parado, tanto faz. O drible faz parte da nossa vida. Ora vejam lá isto: o dia começa com uma combinação para um café muito conhecido em Benfica e arrisco Califa. Negócio fechado. No quadradinho seguinte, peço um mil folhas e sento-me à espera do ilustre convidado. Às tantas, para aí na 789.ª folha, lá vem drible: afinal, o café é o Nilo. Oléééééé. João Alves nem demora dois minutos e, voilà, ei-lo em grande estilo. Para entrar no carro, é preciso ultrapassar o obstáculo de ferro, a divisória entre o passeio e a estrada. Alça-se um pé, depois outro e, cabuuuuum, tropeça-se à grande e à portuguesa. A queda é amortecida pelo carro, vá lá. Abre-se a porta, senta-se e ouve-se um curioso “estou a ver que está em grande forma”. João Alves conduz sem as luvas pretas. Começa aqui a aventura.
A sua imagem estará sempre relacionada com as luvas pretas, tradição do seu avô Carlos Alves.
São sentimentos inexplicáveis. De certa forma, fui educado por ele. No futebol. E também na vida. Os meus avós acompanharam-me sempre, tal como os meus pais, mas o meu avô incutiu-me o valor e o prazer do futebol. No final dos anos 60, o meu avô treinava a Sanjoanense e inscreveu-me no plantel dessa equipa porque eu tinha um certo jeito para a coisa.
Como é que a tradição das luvas pretas começou?
Com esse meu avô, um dos grandes futebolistas da sua geração, com presença assídua na seleção, célebre por ter chegado aos quartos-de-final dos Jogos Olímpicos28, em Amesterdão. Ele, na altura, jogava no Carcavelinhos quando foi jogar com o Benfica. Momentos antes, uma menina aproximou-se dele e pediu-lhe que jogasse com as suas luvas pretas. Ele, que era defesa, explicou-lhe que não poderia satisfazer o seu pedido, pois o futebol e o jogo em questão eram assuntos demasiado sérios para estas brincadeiras. A menina calou-se mas não desistiu. Ao intervalo, com o Benfica em vantagem, o meu avô descobriu dentro dos bolsos dos seus calções o pequeno par de luvas pretas que ela ali colocara sem autorização. O meu avô calçou então as luvas e começou a segunda parte. E não é que o Carcavelinhos deu a volta e ganhou jogo? A partir daí, o meu avô jogou sempre com as luvas.
E o João Alves?
Sempre tive receio, medo, de usar as luvas. Coisa de crianças, adolescentes. Sei lá, nunca me senti à vontade para usá-las. Mas a morte do meu avô mexeu comigo e o seu último pedido foi que a tradição das luvas passasse para mim. Dito e feito. Dois dias depois da morte do meu avô, a 14 de novembro de 1970, num Malveira-Benfica (0-4), para o campeonato nacional de juniores, prestei homenagem ao meu avô. E decidi ser sempre assim.
Alguma vez marcou com a mão?
Não.
Algum árbitro o chateou por usar as luvas?
Nenhum.
Nada de nada com as luvas?
Só uma vez, em 1977, num torneio de verão no sul de Espanha. Os jogadores uruguaios do Nacional Montevideo implicaram com as luvas desde o início. Mal o árbitro apitou, foi a caça ao homem: eles saltaram para cima de mim e queriam tirar-me as luvas à força.
Bolas.
Esses meninos do Nacional eram tramados. Um ano depois, na Luz, durante o jogo de apresentação do Benfica para essa época, montaram cá um espetáculo.
Então?
O Benfica estava a ganhar 2-0, já na segunda parte, e eles começaram a ser expulsos uns atrás dos outros. Aquilo descambou à séria. Até meteu público e tudo. Os adeptos entraram em campo e os jogadores viraram-se a eles. Veja isso nos jornais da época. Foi um tratado de pancadaria como nunca se viu. O jogo nem acabou [é verdade, 2-0 aos 70 minutos e o Nacional, com Rodolfo Rodríguez na baliza, fecha-se a sete chaves dentro do seu balneário durante umas boas duas horas e muito para evitar males piores].
[posto isto, aqui vai mais um drible de altíssimo nível: João Alves estaciona o carro e leva-nos ao dentista]
E agora?
Miguel, é só dez minutos.
E consegue falar depois disso?
Eheheheheh, prometo que sim.
[apresentado dentista mais assistentes, é meeeeeesmo só dez minutos e arrepiamos caminho para o Nilo]
Agora sim, estamos perto.
Ali é o Nilo e aqui é o Córsega. Conheço-os há quase 50 anos, quando fui jogar para os juvenis do Benfica.
E vivia onde?
Nasci em Albergaria-a-Velha e vim para cá, diretamente para o Lar do Jogador, ali na Calçada do Tojal. Passei muito tempo aqui dentro [e aponta para o Córsega], a jogar bilhar com os outros jogadores do Benfica.
Estamos em…
Cheguei ao Benfica em 1969.
E quê?
Fomos campeões nacionais de juniores [71-72] e vice-campeões europeus.
O Benfica?
Não, calma aí [e sorri com vontade]: o Benfica foi campeão nacional, Portugal é que foi vice-campeão europeu.
Quando?
Em 1971, na Checoslováquia. Eliminámos a França e fomos. Tínhamos cá uma equipa: começava no Fidalgo, acabava no Jordão [na fase de grupos, três vitórias, todas por 1-0; nas meias, 2-1 à RDA; na final, 3-0 da Inglaterra]
E o João Alves?
Lesionei-me antes desse Europeu. Fomos jogar à Roménia e levei uma porrada que me meteu fora. A perna inchou logo. Mesmo assim, fui à mesma para a Checoslováquia. Só que acabei por voltar a Portugal. Tinha mesmo de ser tratado, não dava para ter esperanças.
Roménia, Checoslováquia. Como era visitar esses países nessa altura?
Era como sair de um dia de sol para um de chuva. A diferença era enorme. Olhe lá este caso: fomos…
Fomos, quem?
Nós, Benfica.
Muito bem, siga.
Fomos jogar à RDA, ao campo do Carl Zeiss Jena. Era a meia-final da Taça das Taças. Aterrámos em Berlim e depois fomos de autocarro para Iena. Naquela fronteira do Checkpoint Charlie, a diferença era mais que evidente. A Alemanha que deixámos era uma Alemanha, a Alemanha que abraçámos era outra. As estradas, o modo de viver, as ruas. Tudo, tudo, tudo era diferente. Não havia comparação.
E desportivamente?
O doping estava instalado naqueles países de Leste. Uma vez, apanhámos 5-0 da Checoslováquia, em Praga, para o Euro76. Outra, 5-0 da URSS em Moscovo, para o Euro84. Só os víamos passar, não havia a mínima hipótese.
E essa eliminatória com o Carl Zeiss Jena?
É como lhe digo, eles pareciam aviões em casa. Perdemos lá por 2-0. Cá, na Luz, cheia como um ovo, foi só 1-0. Podíamos ter feito mais, jogámos muito bem e criámos oportunidades até dizer chega.
E o João Alves?
Não joguei, vi o segundo amarelo da prova na RDA e fiquei suspenso.
https://www.youtube.com/watch?v=Y3ErQSgZdRg
Era costume ver amarelos?
Nãããããão, raramente. Lembrei-me que fui expulso com dois amarelos, o segundo dos quais por mão na bola no meio-campo. Enfim.
Que jogo foi?
Um Boavista-Sporting em que ganhámos 2-0.
Ganhámos, quem?
Nós, do Boavista.
Como é que chega ao Boavista?
Ò Miguel, isso agora é cá uma aventura.
Estava no Benfica e é campeão nacional de juniores. E agora?
Fui para o Varzim.
Como assim, emprestado?
Exatamente.
E onde andava o Varzim?
Na 2.ª divisão.
Subiram?
Fomos à liguilha e perdemos a finalíssima com o Montijo, em Leiria: 1-0.
E depois?
O Montijo contratou-me.
Contratou-o ou emprestou-o?
Primeiro, emprestou-me. Depois, contratou-me.
Como é que o Benfica fica assim sem o João Alves?
Lembra-se daquela pergunta inicial sobre as luvas pretas.
Sim.
No dia da homenagem ao Santana, o Benfica reúne a equipa principal e alguns reservas para o jogo. De repente, há uma barafunda provocada por uma pessoa com estatuto no Benfica e resulta no meu processo de empréstimo. Atenção que também havia o Vitória do Pedroto. Um Vitória dos bons, de se meter com Benfica e Sporting pelo primeiro lugar do campeonato. Bom, adiante: a meio da época, fui mobilizado para a Guiné.
Como?
É isso, fui chamado. Pertencia à artilharia anti-aérea.
E agora?
Era preciso arranjar dinheiro para trocar de lugar com um outro militar.
Era assim?
Sem tirar nem pôr.
E conseguiram?
Sim, encontrámos um rapaz. Encontrei-me com ele e tudo.
Como se fez essa troca?
Eram precisos 90 contos e o Benfica não queria avançar. Então, o Montijo deu 90 contos pela troca e mais 600 pelo meu passe.
E o rapaz?
Uns três meses depois, dá-se o 25 Abril e ele regressou são e salvo, felizmente.
E o João Alves no Montijo?
Até ao fim dessa época 1973-74.
A da estreia na 1.ª divisão?
Exatamente.
O campo do Montijo era um pelado?
Era, sim. E dos bons. Os pelados são como os relvados: há os bons e os maus. O pelado do Montijo era bom, bem alisado e bem tratado. Havia outros maus, como o do Penafiel. Era muito difícil jogar lá, pela irregularidade do campo.
E depois do Montijo?
Vou trabalhar com o Pedroto, no Boavista.
O Pedroto era o quê?
Um homem sensacional, muuuuito à frente do seu tempo. Um génio. Devo-lhe muita coisa na carreira. Mas mesmo que não o conhecesse pessoalmente, vivi na sua época e é um treinador histórico para qualquer um. Fez do Boavista o Boavistão e do Vitória de Setúbal uma equipa com nome na Europa que eliminou Inter e Liverpool. Duas equipas do meio da tabela que, de repente, ameaçaram os grandes e até acabaram o campeonato no segundo lugar (Boavista em 1975- 76, Vitória em 1971-72). Sem esquecer o Porto. E a seleção.
É ele quem o lança?
Em novembro 1974. Perdemos 3-0 na Suíça, um particular, e depois fomos a Wembley, jogar com a Inglaterra, para o Euro76. Sabe o resultado?
Nem ideia.
0-0. Empatámos 0-0 em Wembley. O meio-campo era eu, o Octávio, o Vítor Martins e o Teixeira. Ficámos com a bola e a Inglaterra ficou à nora. O Damas fez uma exibição fantástica e segurámos o 0-0. E em Wembley. Como tínhamos perdido 3-0 na Suíça, os jornais ingleses diziam aos adeptos para levarem caneta e papel de forma a anotar os golos. Olha, deu xis.
[João Alves começa a rir-se, outra vez]
Lembrei-me agora de uma história engraçada com o Carolino, que também jogou comigo no Montijo. Estávamos em grande forma, a discutir o título de campeão nacional com o Benfica. Uma noite, durante o estágio em Espinho, o Pedroto vai deitar-se depois da habitual tertútlia no hall do hotel com os amigos, e apanha o Carolino a fumar no corredor. Está a ver, não está? A altas horas da noite, a fumar. O Pedroto proíbe-o de fumar e o Carolino começa a jogar pior. Às tantas, o Pedroto pergunta-lhe ‘olha lá uma coisa, o que se passa contigo, tens algum problema?’ E o Carolino diz-lhe que está tudo bem, só parou de fumar por ordem dele, do Pedroto. ‘Então recomeça a fumar.’ [João Alves ri-se com vontade] E o Carolino recomeça a jogar o futebol que sabe, para alegria do Boavista.
https://www.youtube.com/watch?v=naf4hvO6_2w
Em dois anos de Boavista, ganha o quê?
Duas Taças de Portugal, uma em Alvalade ao Benfica e outra nas Antas ao Vitória de Guimarães. Ao Benfica, até marco um golo e tudo.
Vingança?
Nãããããão, nada disso. Dois anos depois, estou eu no Salamanca e com tudo feito para assinar pelo Real Madrid quando aparece o Benfica.
Real Madrid ou Benfica, é isso?
E não só. O Barcelona e o Valencia também me queriam, só que queria realizar o velho sonho de ser campeão nacional pelo Benfica.
Benfica em vez do Real Madrid?
Isso mesmo. E foi outro tratado.
Então?
Meteu a Assembleia da República e tudo.
Como?
O valor da transferência era 25 mil contos e havia um problema da entrada/saída de divisas. Teve de ser uma pessoa de fora a tratar desse assunto. Leia nos jornais da época, há informação sobre isso.
Como foi lá em Salamanca?
Uma maravilha. Naquela altura as transferências dos jogadores portugueses para o estrangeiro não eram comuns, como agora. A saída era um acontecimento. Tirando as aventuras nos EUA [Eusébio e Toni nos Las Vegas Quicksilvers; Artur Jorge e Costa nos Rochester Lancers; Simões e Malta da Silva nos San José Earthquakes, José Maria no Toronto Metro], havia para aí uns seis na Europa [Humberto Coelho no PSG, Damas e Quinito no Racing Santander, Carlos Alhinho no Racing White, Jordão e Bastos no Saragoça]. E depois eu. O Boavista ganhou 12 mil contos do Salamanca pela venda do meu passe. Foi um ótimo negócio para todos.
E o que ganhou em Espanha?
Uma experiência sensacional. A liga espanhola era o campeonato mais charmoso do mundo, porque era o mais aberto aos estrangeiros, ao contrário de Inglaterra e Itália, com as fronteiras ainda fechadas pela desastrosa campanha no Mundial66 [culpa da eliminação na fase de grupos, pela Coreia do Norte]. Aquilo em Espanha era um campeonato do Mundo domingo sim, domingo sim. Todos os fins-de-semana havia jogos com estrelas deste e daquele país. As equipas estavam bem reforçadas e isso animava qualquer um.
Inclusive o João Alves?
A mim, acima de todos. Na segunda época, fui eleito o melhor jogador do Salamanca e também o melhor estrangeiro da Liga pela imprensa local. Eram classificações acumuladas, com as pontuações dos jornalistas de jornada a jornada, e eu ganhei, com direito a prémio e tudo.
Guarda todos esses troféus?
Claro. Estão lá na minha casa. Fazem parte da mobília, são uma relíquia. Como aquele mais recente, entregue pelo Salamanca ao melhor jogador de sempre. É uma estatueta em bronze, resultante de uma votação popular.
Chiça, que categoria. E esse do melhor estrangeiro da Liga?
Nessa época, fiquei à frente de nomes consagrados como Cruijff (Barcelona), Kempes (Valencia), Luís Pereira (Atlético Madrid), Breitner, Netzer. Eu sei lá.
Disse dois nomes do Real (Breitner e Netzer), um clube fulcral na sua vida.
Eheheheh, é verdade. A minha estreia no Salamanca é com o Real Madrid. E é ao Real Madrid que marco o golo da vitória do Salamanca, na segunda volta.
Em Salamanca?
Qual quê, ò Miguel. No Santiago Bernabéu, ganhámos 1-0. Nesse dia, nasceu a minha filha e marquei o golo da vitória. E que golo, um dos melhores da minha carreira. Um pouco à imagem de outro, ao Tibi, num Benfica-Porto (1-0), em que a minha filha nasce.
Outro golo, outra filha?
A esta dei-lhe o nome de Nuria, numa homenagem à minha passagem por Espanha. Foi a primeira Nuria em Portugal. Tive de pedir autorização e tudo.
Só histórias.
No dia do Real Madrid-Salamanca, estava endiabrado. Emocionado com o nascimento da minha filha, fiz trinta por uma linha, saltei, corri, fintei, defendi, ataquei. Fiz tudo e mais alguma coisa. E o golo. Fui eleito o melhor em campo e o pobre do defesa esquerdo, que se chamava Janssen, teve de ser substituído ao intervalo porque não estava a conseguir impor-se a mim.
E o Camacho?
Devia estar lesionado ou suspenso. Sei que nesse dia não jogou. E ainda bem, porque na época seguinte calhou-me ser ele a marcar, num outro Real Madrid-Salamanca, e ai Jesus. O homem era um lateral implacável, daqueles que não dava hipótese. Anos mais tarde, encontrámo-nos em Lisboa, com ele no banco do Benfica, e divertimo-nos a lembrar essas histórias da Liga espanhola dos anos 70.
Estou a ver aqui que também tinha o costume de marcar ao Barcelona.
Tanto em Salamanca como em Camp Nou. Uma vez, em Barcelona, fui marcado individualmente pelo Neeskens. O homem era um bruto, mau como as cobras. Deu-me uma porrada e fiquei de pernas para o ar. Saí lesionado e não voltei mais.
Só nesse dia?
Sim, só nesse dia.
A sua pior lesão é aquela do PSG?
Sim, essa foi duríssima. Marcou-me no joelho. Na cabeça. E no coração. Mas basta de coisas negativas. Vou contar-lhe uma história: na estreia, em casa, com o Marselha, e o Marselha de Trésor, Six, Linderoth e Temime [que acabaria por descer de divisão], o PSG ganhou 2-1 e eu joguei tão bem que o estádio todo, e falo de 40 mil pessoas [para o jornal “L’Équipe”, foram 43 845], entoou o meu nome. Alves, Alves, Alves, até eu desaparecer no túnel de acesso aos balneários. Que coisa maravilhosa! Nessa semana fui eleito para a equipa da jornada, ao lado de um tal Platini, do Saint-Etienne. Os franceses sempre gostaram de médios ofensivos, com gosto pelo passe, pelo risco, pelo golo.
Acontece como, a lesão?
Em Sochaux, sofri uma falta do Genghini, que me partiu todo em três sítios. Fui levado de helicóptero para Paris e fui operado duas vezes num curto período de tempo. Não houve maldade do Genghini, mas fiquei de fora dos relvados por cinco meses. Quando voltei, em janeiro 1980, já não era o mesmo.
Guarda rancor ao Genghini?
Não. O Genghini ligou-me muitas vezes para o quarto do hospital a saber como estava e acompanhou a minha recuperação. Foi um lance fortuito, pronto. O árbitro é que nem assinalou falta, quanto mais mostrar um cartão, fosse de que cor. O lance foi bastante mediatizado, as televisões davam o lance da falta vezes sem conta e tornou-se caso nacional. Por isso, o árbitro foi irradiado. Sabe o que aconteceu?
Não. O quê?
Em Metz, já nos anos 90, quando eu já era treinador do Estrela e fomos participar num torneio indoor, daqueles de Inverno, quando acabou o jogo, uma pessoa veio ter comigo a pedir-me desculpa por não ter assinalado falta nem ter mostrado o cartão. Era ele, o árbitro. Foi um gesto nobre e corajoso da sua parte que muito me emocionou.
Como aparece o PSG na jogada?
O presidente [Francis Borelli] tinha acabado de me ver em ação na final do Torneio de Paris, em que o Benfica goleou o Estrela Vermelha por 4-0, e queria empurrar o PSG para junto dos grandes do futebol francês e também queria aproximar o clube da comunidade portuguesa em Paris, que vibrava com o PSG, criado apenas em 1970. Mas antes do PSG, o Bordéus estava na jogada. Dois ou três dias depois de saber dessa novidade, e comigo de férias em Roma, recebo um telefonema do tal presidente do PSG a dizer-me isto, aquilo, aqueloutro e lá fui para Paris. Cheguei a Paris como o mais bem pago do plantel, recebia 800 contos.
E ganhava quanto o Benfica?
500.
E no Salamanca?
200.
E no Boavista?
Ah, aí era 25. E era o mais bem pago no Bessa.
Bessa, onde acaba por voltar para encerrar a carreira.
E não só, tenho aqui a camisola do Maradona.
A do Nápoles?
Ah pois é, Nápoles 0 Boavista 0, um particular de Verão em San Paolo. Troquei de camisola com o Maradona.
Mais do Boavista?
Fiz uma boa época, a de 1983-84. Tinha a ideia de ir ao Europeu de França, só que os quatro treinadores andaram a rebuscar entre Benfica e, principalmente, Porto. Cada um a escolher a sua quota-parte e quem se lixou fui eu.
No ano seguinte, em 1985, já é treinador. E ganha a Taça de Portugal-1990, pelo Estrela.
Grande dia. Ou melhor, grandes dias. Foram dois jogos extraordinários entre Estrela e Farense [1-1 e 2-0, com golos de Paulo Bento e Ricardo na finalíssima, três dias depois da final]. Muito empenho, muita seriedade e um Jamor a abarrotar, com invasão maciça dos adeptos dos dois clubes e até de outros.
Então?
Eu bem vi bandeiras do Sporting e do Benfica misturadas com as do Estrela da Amadora. Foi a verdadeira festa da Taça. Um momento digno do futebol português.
Do que se lembra mais desses dias extra-futebol?
De uma tarja enorme em que se lia “João Alves para Primeiro-Ministro”, embora não me lembre se estávamos perto das eleições. E de uma cena inesquecível cá fora, depois de levantarmos a Taça, com os motards de Faro, que eram sei lá quantos, a fazerem um corredor gigantesco e a aplaudirem à medida que o autocarro do Estrela passava por eles. Até me arrepio todo só de recuar no tempo e rever esse episódio.
É a maior alegria da carreira?
Como treinador, sem dúvida. Eliminámos o Braga, ao fim do segundo e só nos penáltis. E depois eliminámos o Vitória de Guimarães, também só ao fim do segundo jogo.
O capitão era o Duílio?
Sim senhor. Grande homem, grande jogador.
E o ataque?
Basaúla e Ricky. Tenho ideia que nem um nem outro jogaram a final da Taça por lesão e suspensão. O que dá ainda mais força à conquista.