A 15 de Abril de 1944, o capelão Josef Perau, da 129.ª Divisão de Infantaria da Wehrmacht, tinha passado tempo suficiente na Frente Leste para julgar já “ter visto todos os horrores da guerra”. No entanto, o espectáculo que tinha perante os olhos nos arredores da cidadezinha de Rudobelka (perto de Bobruysk, na Bielorússia) era algo que “nem Dostoievsky teria ousado descrever”. As tropas alemãs, que retiravam sob a pressão implacável do Exército Vermelho, estavam a arrebanhar a população civil e a amontoá-la em campos de concentração improvisados, que não eram mais do que um descampado rodeado de arame farpado.
Nas imediações do campo, o padre Perau viu corpos com marcas de balas na berma da estrada, “soldados a arrastar um velho como se fosse um animal”, puxando por “uma corda atada à volta das pernas”. Reparou também no que lhe pareceram trouxas abandonadas sobre a lama – foi-lhe explicado que eram crianças cujas mães, não tendo já forças para as carregar, tinham deixado na berma e que os soldados alemães tinham liquidado, “do mesmo modo que eliminavam todos os que não podiam continuar a caminhar”. Quando Perau se dirigiu a um oficial médico e indagou sobre aquele procedimento recebeu esta resposta: “Padre, deixe isto connosco. Eu próprio matei algumas crianças indefesas, por piedade. A Alemanha voltará ao estatuto de nação civilizada quando esta guerra for ganha”.
O que o padre Perau não sabia – mas talvez o oficial médico soubesse – é que sob aquele tratamento desumano das populações civis se ocultava uma operação maquiavélica, “planeada e coordenada pelo pessoal do estado-maior do IX Exército alemão e executada pelo general Friedrich Hossbach, do LVI Corpo Panzer”: as tropas irrompiam de madrugada nas aldeias bielorrussas, arregimentavam todos os habitantes, seleccionavam os mais aptos para serem enviados para a Alemanha como trabalhadores-escravos e conduziam as mulheres, as crianças, os velhos, os doentes e aqueles a quem a fome deixara demasiado enfraquecidos para campos de concentração improvisados, nas marchas forçadas com cujo rasto de selvajaria o padre Perau se deparou.
Quando as rusgas e as marchas terminaram, havia 47 mil civis nos campos, vivendo ao relento, sem qualquer tipo de abrigo, alimento ou água e expressamente proibidos, sob pena de execução imediata, de sequer recolher lenha ou gravetos para uma fogueira. Para que a penúria fosse absoluta, à entrada do campo os alemães tinham confiscado todos os alimentos, botas, cobertores e roupas grossas que os deslocados pudessem trazer consigo. Em seguida, quando as tropas soviéticas se encontravam já perto, os alemães minaram a área em torno dos campos e retiraram para ocidente.
Pode parecer absurdo em termos estratégicos que, num momento crítico dos combates, se desviassem milhares de soldados alemães das suas missões para executar uma operação tão arbitrária e inútil – mas o plano alemão visava recolher dividendos terríveis. Entre os infelizes aglomerados nos campos havia pessoas doentes com tifo, algumas delas trazidas expressamente de hospitais pelos alemães, e, em resultado do sobrepovoamento e da completa falta de higiene, não tardou que a doença alastrasse. O que os alemães pretendiam era, já que eram impotentes para fazer face ao Exército Vermelho no domínio das armas convencionais, lançar uma cartada de guerra biológica: os soldados que fossem libertar os campos iriam ser infectados com tifo e, se se declarasse uma epidemia, o avanço soviético seria atrasado durante algum tempo – quem sabe, o suficiente para que as novas e miraculosas armas secretas que o führer estava sempre a prometer, pudessem ser produzidas em massa e virar a sorte da guerra.
Houve alguns soldados soviéticos a contrair tifo, mas as autoridades médicas agiram com prontidão e a doença foi controlada e o plano alemão não produziu os resultados esperados – tal como redundaram em nada muitos outros planos fantasiosos, nascidos do desespero e do fanatismo, com que a Alemanha tentou adiar o desfecho da guerra. O único saldo visível desta tresloucada operação foi que, nos poucos dias que mediaram entre a constituição dos campos de concentração e a sua libertação, os 40 mil civis foram reduzidos a 32 mil – e não estão aqui contabilizados os que pereceram nas marchas entre as suas aldeias e os campos.
Este é um dos muitos episódios arrepiantes narrados por Michael Jones em Guerra total: De Estalinegrado a Berlim (2001, Total war: From Stalingrad to Berlin), publicado em Portugal pela Bizâncio, que descreve os eventos na Frente Leste entre o verão de 1942 e a primavera de 1945, dando particular ênfase ao ponto de vista russo, que tende a ser descurado na historiografia ocidental. Jones acompanha a marcha para Ocidente dos exércitos soviéticos, entre a batalha de Estalinegrado, esse momento-charneira que marca o limite da expansão alemã e a mudança na maré da guerra, até à batalha de Berlim e a derrota final da Alemanha.
Desde o início da Operação Barbarrossa que os alemães tinham tratado os soldados e civis russos com brutalidade.
Jones é um especialista na Frente Leste, tendo publicado, antes deste livro, Leningrad: State of Siege (publicado em Portugal pela Bizâncio como O Cerco de Leninegrado) e The Retreat: Hitler’s First Defeat (sobre a batalha de Moscovo) e, em Janeiro do corrente ano, After Hitler: The last days of the Second World War in Europe, e não só conhece a fundo a bibliografia sobre o tema como a complementa com cartas, diários e entrevistas que realizou a sobreviventes destes trágicos eventos.
Claro que a suspensão das práticas de uma nação civilizada mencionada pelo oficial médico alemão acima citado não começara em 1944: desde o início da Operação Barbarrossa, a 22 de Junho de 1941, que os alemães tinham tratado os soldados e civis russos com brutalidade.
A guerra com a URSS era, do ponto de vista alemão, uma “guerra de aniquilação” e as tropas, embrutecidas pela barragem de propaganda que as convencera de que os eslavos – e os povos da URSS em particular – eram sub-humanos, comportaram-se como bárbaros – e a barbárie era legitimada oficialmente, pois antes da invasão Hitler emitira uma ordem que previa a execução sumária de todos os prisioneiros soviéticos que fossem identificados como “comissários políticos”, uma categoria vasta e difusa onde se incluíam, além dos comissários propriamente ditos, funcionários do partido, “intelectuais”, “comunistas fanáticos” e “agitadores”. Idêntico destino teriam os judeus, cuja eliminação era da responsabilidade dos Einsatzgruppen que seguiam na esteira das tropas regulares.
A cegueira e a soberba dos alemães levou-os mesmo a rejeitar a possibilidade de encontrar aliados na luta anti-bolchevique entre as populações da Ucrânia, Bielorrússia e Estados Bálticos, que tinham sofrido sob o jugo estalinista e que, alimentando sonhos autonomistas ou até independentistas, num primeiro momento acolheram os alemães como libertadores. Os ucranianos, que em 1932-33, tinham sido alvo de uma campanha de morte pela fome, implacavelmente planeada e executada pelo Estado soviético e que vitimou milhões de pessoas, foram os que receberam mais calorosamente os alemães.
Porém, estes trataram rapidamente de demonstrar que não estavam ali para libertar ninguém. Erich Koch, Reichskommisar da Ucrânia (ou seja, o responsável pelo regime de ocupação civil) entre 1941 e 1943, deixou bem claro que os alemães eram a raça superior e que aos eslavos cabia servi-los: “Sugarei este país até à última gota – não estou aqui para distribuir bençãos mas para servir Hitler”.
Mesmo entre os nazis havia quem entendesse que tal atitude era contraproducente: “O princípio da brutalidade implacável, o tratamento de um país segundo a perspectiva e os métodos empregues no passado para escravizar os povos de cor; e o facto de, desafiando qualquer política sensata, o desprezo por esses povos ser manifestado não apenas por acções mas também por palavras […], tudo isto demonstra cabalmente a completa falta de instinto no relacionamento com os povos estrangeiros”, alertava Alfred Frauenfeld, comissário-geral para a Crimeia (citado em Hitler’s Empire: Nazi rule in occupied countries, de Mark Mazower, publicado em Portugal como O império de Hitler), concluindo que tais políticas só poderiam ter consequências desastrosas.
O ressentimento anti-bolchevique entre ucranianos deu lugar a um ressentimento anti-germânico ainda mais intenso e não tardou que se pusesse em marcha uma espiral de violência, com o lançamento de acções de guerrilha nas zonas ocupadas pelos alemães e as represálias brutais exercidas por estes sobre as populações suspeitas de auxiliar os guerrilheiros. À medida que a sorte das armas se ia revelando cada vez mais desfavorável aos alemães, a brutalidade no tratamento das populações ia também aumentando.
Uma directiva recebida pela 129.ª Divisão de Infantaria – a unidade do capelão Josef Perau – em fevereiro de 1944, pouco antes da operação contra as aldeias bielorrussas, alertava contra os perigos da guerrilha nestes termos: “Essa gente tem frequentemente o aspecto de civis indefesos e famintos. Na realidade, são guerrilheiros fanáticos […] Já não é possível, a partir de agora, distinguir os inocentes dos culpados”.
Nem todos os alemães levaram às últimas consequências este apelo ao massacre indiscriminado, uns por genuínos escrúpulos morais, outros por, vendo que a guerra deixara de correr de feição, recearem as represálias que os soviéticos exerceriam sobre eles e sobre o território alemão.
“Não havia uma única pessoa por ali. Os alemães tinham levado tudo, incluindo o gado e a criação. Mas demonstraram alguma consideração – tinham poupado os cães.”
Eram receios justificados, já que do lado soviético a propaganda galvanizava os combatentes com discursos como o do jornalista de guerra Ilya Ehrenburg: “Os alemães não são seres humanos. A partir de agora, a palavra ‘alemão’ tornou-se uma blasfémia terrível […] Se não tiveres matado pelo menos um alemão por dia, desperdiçaste esse dia. Mata o alemão – este é o pedido da tua avó. Mata o alemão – esta é a súplica do teu filho. Mata o alemão – a pátria exige-o. Não falhes, não mostres piedade, mata”. O general Ivan Chernyakovsky, comandante da III Frente Bielorussa, afinava pelo mesmo diapasão, exortando os seus soldados neste termos. “Não haverá clemência! Não mostreis clemência por ninguém – tal como não mostraram clemência por nós. O ódio e a vingança ardem em nós”.
E o que os soldados soviéticos foram descobrindo à medida que faziam recuar os alemães só adicionava combustível às labaredas ateadas pelos apelos ao ódio: encontraram aldeias sem vivalma, rodeadas por camponeses enforcados nas árvores, ornados com cartazes toscos com ameaças ou dizeres sarcásticos, ou em que todos os habitantes tinham sido arrebanhados pelos alemães num celeiro ou num armazém que regavam com gasolina e a que lançavam fogo. Um tenente do Exército Vermelho narrava a experiência de entrar numa destas aldeias-fantasma: “Não havia uma única pessoa por ali. Os alemães tinham levado tudo, incluindo o gado e a criação. Mas demonstraram alguma consideração – tinham poupado os cães”. Por vezes, dos matos e dos campos em torno das aldeias surgiam, a medo, alguns sobreviventes e os relatos cheios de detalhes cruentos que faziam só tornavam mais absoluto o horror e o ódio aos alemães.
Não há testemunhos fílmicos da guerra sem quartel que opôs guerrilheiros e ocupantes e triturou as populações entaladas entre ambos, mas, mais de 40 anos depois, Elem Klimov estreou “Vem e vê” (“Iszi i hlyadzi”, 1985), um filme que acompanha Flyora, um rapaz bielorrusso apanhado no vórtice das operações anti-guerrilha das tropas alemãs, e cuja inquietante combinação de realismo cru e delírio surreal só tem par em “Apocalypse Now”, de Coppola, e, como este, fica a assombrar durante anos a fio quem o tenha visto.
Os soldados soviéticos também descobriram que os seus camaradas, que tinham sido aprisionados em quantidades colossais no início da Operação Barbarrossa, tinham sido tratados de forma desumana – ainda antes da invasão da URSS, o Alto Comando da Wehrmacht tinha estabelecido que as regras internacionais de tratamento de prisioneiros de guerra não seriam aplicadas na Frente Leste. Daqui resultou que, de um total de seis milhões de prisioneiros, cerca de 3,3 a 3,5 milhões tenham perecido devido às privações e maus-tratos sofridos nos campos e nos transportes (e também aos programas de extermínio de “comissários” acima mencionado).
Depois de contactarem com estas realidades, alguns soldados soviéticos mudaram o seu comportamento: deixaram de fazer prisioneiros. Do outro lado, também muitos alemães pareciam pouco interessados em cair prisioneiros dos soviéticos. Como Ian Kershaw sugere no sufocante The end: Germany, 1944-45 (publicado em Portugal pela D. Quixote como Até ao fim: Destruição e derrota da Alemanha de Hitler, 1944-1945), uma das razões para a resistência fanática da Alemanha, muito para lá do que seria sensato, uma vez que a guerra estava inevitavelmente perdida, explica-se por os alemães terem plena consciência (mesmo que, depois, muitos o negassem) das atrocidades cometidas pelas suas tropas na Frente Leste e recearem serem pagos na mesma moeda.
Mas os horrores que os soldados soviéticos foram descobrindo na sua marcha vitoriosa pelo território soviético, embora os tivessem endurecido, não poderiam tê-los preparado para o que encontraram quando chegaram à Polónia e à Alemanha Oriental.
Uma das testemunhas citadas por Jones, o sargento Ivan Sorokopoud, fez parte das primeiras tropas a entrar no campo de concentração de Auschwitz I, a 27 de janeiro de 1945, e, embora já tivesse longa experiência, ficou, como os seus camaradas, estarrecido: “Era inacreditável. Meia hora depois, de volta ao camião, ninguém conseguiu articular uma frase coerente – só se ouviam insultos balbuciados e pragas contra os nazis. De regresso à minha posição de artilharia, esforcei-me por readquirir alguma serenidade. Aos meus camaradas disse apenas: ‘Não tenham piedade destes filhos da puta alemães – façam-nos em puré!’”.
Quando as tropas soviéticas pisaram pela primeira vez território alemão, na Prússia Oriental, o ódio acumulado não poupou os civis: violações, pilhagem, vandalismo, assassinatos arbitrários. A propaganda alemã tratou de capitalizar estas atrocidades em seu favor, exortando os soldados alemães a resistirem até ao último fôlego, pois o que os esperava, a eles e às suas famílias, em caso de triunfo soviético, era pior do que a morte.
Pelo seu lado, Ilya Ehrenburg continuava a acicatar o ânimo dos soldados soviéticos: “O ajuste de contas começou […] Estamos completamente determinados a vingar-nos dos alemães para sempre”. E muitos soldados deixaram-se arrastar por esta onda de ódio, o que está bem patente nos excertos de cartas transcritos por Jones: “Jurei mais uma vez […] vingar a morte do meu irmão. Centenas de alemães terão de expiar com as suas vidas. Nenhum que caia nas minhas mãos sobreviverá”, “As mães alemãs amaldiçoarão o dia em que deram à luz um filho. As mulheres alemãs agora vão viver o terror da guerra!”, “Agora temos rédea livre para fazermos o que quisermos com estes velhacos alemães”, “Como o meu coração fica feliz por passarmos por uma cidade alemã a arder!”.
“Se os alemães fizeram pilhagens e publicamente violaram as nossas mulheres, tal não significa que tenhamos de fazer o mesmo.”
Jones tem o cuidado de explicitar que nem todos os soldados pensavam assim e que muitas unidades se comportaram de forma correcta e relata a história de um soldado que, ao passar pela sua aldeia natal, na Ucrânia, descobrira que a casa da família fora destruída e que “os pais e os avós tinham sido enforcados num pequeno pomar que tinham em frente” e, todavia, não se vingara nos civis alemães, merecendo do general que o comandava o comentário “O verdadeiro herói é aquele que consegue conter a sua ira”.
Ao aperceberem-se dos excessos cometidos, as autoridades soviéticas também tentaram moderar as chamas descontroladas do ódio anti-germânico. “Se os alemães fizeram pilhagens e publicamente violaram as nossas mulheres, tal não significa que tenhamos de fazer o mesmo […] Os nossos soldados não permitirão nada de semelhante – não por piedade pelo inimigo mas por uma questão da sua dignidade pessoal. A nossa raiva não é irracional, a nossa vingança não é cega”, proclamava um editorial de 9 de fevereiro de 1945 do Estrela Vermelha, o jornal do exército soviético. O próprio Ilya Ehrenburg, até aí o mais sanguinário dos propagandistas, tentou explicar que as suas exortações à vingança não deveriam ser interpretadas literalmente.
Entretanto, apesar da resistência desesperada do que restava dos exércitos nazis e dos adolescentes e velhos arrebanhados em milícias sem treino nem equipamento adequado (a Volkssturm), os exércitos soviéticos aproximavam-se rapidamente de Berlim.
O desfecho era inevitável, mas os alemães continuaram a resistir com uma sanha inacreditável, causando pesadas baixas aos soviéticos. Na tarde de 30 de abril, com combates ferocíssimos a travarem-se dentro do Reichstag – uma bandeira vermelha chegou a adejar numa janela, mas um contra-ataque alemão obrigou os soviéticos a recuar – Hitler suicidou-se no seu bunker. Nessa noite, outro grupo de soldados do Exército Vermelho conseguiu hastear a bandeira soviética no Reichstag, e no dia seguinte o comandante militar de Berlim rendia-se – mesmo a tempo, já que 1 de maio era a data que, pelo seu simbolismo, tinha sido fixada por Estaline como prazo para a conquista da capital alemã.
O hastear da bandeira no Reichstag foi encenado a 2 de Maio pelo experiente fotógrafo Yevgeny Khaldei (1917-97), que já fotografara os combates em Kerch, Sebastopol, Rostov, Bucareste, Belgrado, Budapeste e Viena. É uma das fotos mais famosas da história, mas há nela muito de falso. Para começar, o homem que segura a bandeira não era, como foi então anunciado, o georgiano Meliton Kantaria (um embuste destinado a agradar ao também georgiano Estaline), mas o tenente Alexei Kovalev, que fizera parte do grupo que hasteara a primeira bandeira no Reichstag e depois fora repelido. Ao inteirar-se do comportamento heróico de Kovalev, foi o próprio marechal Zhukov que fez questão que fosse ele a figurar na encenação de Khaldei.
A foto foi alvo de vários retoques: foi apagado o relógio “extra” no pulso direito do soldado que segura Kovalev (o que denunciaria as pilhagens a que os soldados se entregavam) e adicionados dramáticos rolos de fumo negro.
Não foi, porém, a única foto de Khaldei documentando a conquista de Berlim a ser falsificada: a foto na capa de Guerra Total, quase tão famosa como a da bandeira, é uma montagem de quatro imagens representando, separadamente, o Reichstag, os soldados, o tanque e os aviões.
O mesmo acontece com outra foto de Khaldei, mostrando a destruição de Berlim, usada na capa de O continente das trevas (edição portuguesa de Dark Continent), de Mark Mazower, que resulta de uma colagem de várias fotos de ruínas (não necessariamente em Berlim, com excepção da torre de igreja em fundo) e de tanques, artilharia, soldados e cavalos de diversas proveniências.
Khaldei não tinha escrúpulos em falsificar imagens, talvez por essa prática estar tão difundida na URSS de então que se transformara numa segunda natureza (ver Reescrevendo a História com Tesoura e Cola). Outra das suas fotos famosas, tirada perto de Murmansk, resulta também da montagem de três foto diversas, de onde foram retiradas a rena, a explosão e os aviões (que nem sequer são soviéticos – são caças britânicos Hawker Hurricane).
Mas vale a pena regressar a Alexei Kovalev, o soldado que, na foto de Khaldei, hasteia a bandeira no Reichstag, pois é com o seu relato que o livro de Jones termina. Quando o leitor julga ter acabado o nauseante rol de sofrimentos e atrocidades, Jones põe sobre a mesa o mais excruciante testemunho, que lhe foi relatado pessoalmente pelo próprio Kovalev. Este fora batedor e a sua missão consistia em recolher informações, furtivamente, junto dos habitantes locais sobre o número e paradeiro dos alemães. “Apanho uma rapariga russa a lavar roupa no rio, um miúdo a brincar numa aldeia, ou um velho sentado à porta de casa. Interrogo-os. Eles ajudam-me o melhor que podem. E depois, a ‘regra de ferro do nosso exército’: tenho de matar as minhas fontes, sem excepção. Não posso correr o risco de os alemães os interrogarem e descobrirem que as nossas tropas estão por perto […] Cortava-lhes a garganta com a minha faca. Assassinei centenas de pessoas do meu próprio povo, pessoas boas, simpáticas, honestas. Assassinei-as – para podermos derrotar a Alemanha nazi. Este foi o preço que paguei. Vou ter de viver com ele cada dia da minha vida”.
Guerra total: De Estalinegrado a Berlim
Autor: Michael Jones
Tradução: Clara Alvarez
Editora: Bizâncio
335 páginas