Quando pedimos à escritora Inês Pedrosa para sugerir um poema de amor escrito em português que de alguma forma a tenha marcado, a resposta foi aparentemente contraditória: “Felizmente, a escolha é muito difícil”, disse a autoraA justificação que acrescentou ajuda a compreender: “A escolha é muito difícil; a poesia de língua portuguesa é um monumento literário da Humanidade, sem favor nenhum.”

“Um monumento literário da Humanidade”. Dentro desse monumento literário existe o mundo dos poemas de amor. Pedimos a nove autores portugueses que escolhessem um e apenas um. O preferido, aquele com o qual têm uma relação mais íntima. Além de Inês Pedrosa, falámos com António Mega Ferreira, Nuno Júdice, Maria do Rosário Pedreira, Eduardo Pitta, José Mário Silva, Fernando Pinto do Amaral, Pedro Mexia e Manuel de Freitas.

Algumas respostas foram espontâneas. Outras foram mais demoradas e chegaram após reflexão. O nome de Mário Cesariny surgiu três vezes. E o de Camões, incontornável, também aqui está. Tal como Almeida Garrett, Teixeira de Pascoaes, David Mourão-Ferreira, Maria Teresa Horta e Ruy Belo.

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Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.

Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro.
Olhavas, descuidada
E triste… Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro!
Ouço bem tua voz,
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim,
Na escuridão completa!
Ouço-te em minha dor.
Ouço-te em meu desgosto
E na minha esperança
Eterna de poeta!
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor,
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes.
Hora santa e perfeita,
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma,

Mãos dadas, a sonhar,
Ao longo dos caminhos…
Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão,
Dos pobres sem um manto.
Em cada tua palavra,
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve — sim!
Te chamaria o céu!
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura,
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava!
Teu corpo era tão fino
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava!
Caía-me, na alma,
A neve do teu rosto.

Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra!
E uma vez, quando a noite
amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto,
Olhando para a serra:
— Que incêndio! — E eu, a rir,
Disse-te — É a lua cheia!…
E sorriste também
Do teu engano. A lua
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua,
Que eu beijei sem querer,
Seus raios virginais.
E a lua, para nós,
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço,
Espiritual, profundo,
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.

Teixeira de Pascoaes, in Prosa e Poesia

Poema sugerido por António Mega Ferreira

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Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava…

Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão…
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy….
Era, na jarra, de repente, um lirio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança…

David Mourão-Ferreira, in Infinito Pessoal

Poema sugerido por Nuno Júdice

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Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes

O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

Mário Cesariny, in Pena Capital

Poema sugerido por Maria do Rosário Pedreira

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Eu sei que deanie loomis não existe
mas entre as mais essa mulher caminha
e a sua evolução segue uma linha
que à imaginação pura resiste

A vida passa e em passar consiste
e embora eu não tenha a que tinha
ao começar há pouco esta minha
evocação de deanie quem desiste

na flor que dentro em breve há-de murchar?
(e aquela que no auge a não olhar
que saiba que passou e que jamais

lhe será dado ver o que ela era)
Mas em deanie prossegue a primavera
e vejo que caminha entre as mais

Ruy Belo, Homem de Palavra[s]

Poema sugerido por Eduardo Pitta

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Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny, in Pena Capital

Poema sugerido por José Mário Silva

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Acabava ali a Terra
Nos derradeiros rochedos,
A deserta árida serra
Por entre os negros penedos
Só deixa viver mesquinho
Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados
Sopravam rijos na rama,
E os céus turvos, anuviados,
O mar que incessante brama…
Tudo ali era braveza
De selvagem natureza.

Aí, na quebra do monte,
Entre uns juncos mal medrados,
Seco o rio, seca a fonte,
Ervas e matos queimados,
Aí nessa bruta serra,
Aí foi um Céu na Terra.

Ali sós no mundo, sós,
Santo Deus! como vivemos!
Como éramos tudo nós
E de nada mais soubemos!
Como nos folgava a vida
De tudo o mais esquecida!

Que longos beijos sem fim,
Que falar dos olhos mudo!
Como ela vivia em mim,
Como eu tinha nela tudo,
Minha alma em sua razão,
Meu sangue em seu coração!

Os anjos aqueles dias
Contaram na eternidade:
Que essas horas fugidias,
Séculos na intensidade,
Por milénios marca Deus
Quando as dá aos que são seus.

Ai! sim foi a trapos largos,
Longos, fundos que a bebi
Do prazer a taça — amargos
Depois… depois os senti
Os travos que ela deixou…
Mas como eu ninguém gozou.

Ninguém: que é preciso amar
Como eu amei — ser amado
Como eu fui; dar, e tomar
Do outro ser a quem se há dado,
Toda a razão, toda a vida
Que em nós se anula perdida.

Ai, ai! que pesados anos
Tardios depois vieram!
Oh! que fatais desenganos,
Ramo a ramo, a desfizeram
A minha choça na serra,
Lá onde se acaba a Terra!

Se o visse… não quero vê-lo
Aquele sítio encantado.
Certo estou não conhecê-lo,
Tão outro estará mudado,
Mudado como eu, como ela,
Que a vejo sem conhecê-la!

Inda ali acaba a Terra,
Mas já o céu não começa,
Que aquela visão da serra
Sumiu-se na treva espessa,
E deixou nua a bruteza
Dessa agreste natureza.

Almeida Garrett, in Folhas Caídas

Poema sugerido por Fernando Pinto do Amaral

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Um mover d’olhos brando e piadoso,
Sem ver de quê ; um sorriso brando e honesto,
quási forçado; um doce e humilde gesto,
de qualquer alegria duvidoso;

Um desejo quieto e vergonhoso;
um repouso gravíssimo e modesto;
ũa pura bondade, manifesto
indício da alma, limpo gracioso;

Um escolhido ousar; ũa brandura;
um medo sem ter culpa; um ar sereno;
um longo e obediente sofrimento:

Esta foi a celeste formosura
da minha Circe, e o mágico veneno
que pôde transformar meu pensamento.

Luís de Camões

Poema sugerido por Pedro Mexia

poema_maria

Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
à pele
do sorriso

Sufocar
de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso

Maria Teresa Horta, in Destino

Poema sugerido por Inês Pedrosa

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Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a sua crosta
como o navio no fundo do mar

                   Mário Cesariny, in Pena Capital

Poema sugerido por Manuel de Freitas

(Ilustrações e grafismo: Andreia Reisinho Costa)