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FEDERICO PARRA/AFP/Getty Images

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Padre Sosa: "Um Papa jesuíta é uma coisa difícil de engolir"

Quando soube que o Papa era um jesuíta, sul-americano e septuagenário, Arturo Sosa, Superior Geral da Companhia de Jesus, ficou cético. Mas foi mudando de ideias.

Aparece vestido à civil numa sala despojada da Cúria Geral dos Jesuítas, em Roma. Ao contrário do que acontece em ocasiões formais, Arturo Sosa, o novo Superior Geral da Companhia de Jesus, aparece sem o fato preto, nem a camisa com cabeção. De cabelo e bigode brancos, surge sorridente e de bom humor. Fala fluentemente inglês e italiano, mas prefere o espanhol, com um sotaque venezuelano cerrado (também é fluente em inglês e italiano).

Arturo Sosa Abascal nasceu na Venezuela a 12 de novembro de 1948 e é o primeiro não europeu a chegar a Superior Geral dos Jesuítas. No dia em que foi escolhido, 14 de outubro de 2016, quando se tornou evidente que era o preferido dos 212 eleitores reunidos em Roma, Sosa terá comentado, com boa disposição: “Se temos de comer a galinha, não resta mais nada do que pôr a água a ferver.”

O sucessor do padre Adolfo Nicolás, que apresentou a resignação ao fim de oito anos como Geral dos Jesuítas, define-se como um homem tranquilo. Doutorado em Ciência Política, deu aulas em várias universidades (incluindo a de Georgetown) e dedicou-se longamente ao estudo da história política da Venezuela.

Em 1992, quando um grupo de militares, entre os quais se contava Hugo Chávez, levaram a cabo uma tentativa de Golpe de Estado, foi ele o representante da Igreja escolhido para garantir que os revoltosos eram transferidos em segurança da prisão militar do quartel de San Carlos, em Caracas, para a cadeia de Yare, fora da capital. A mediação foi um sucesso. No entanto, durante muito tempo, Sosa passou a ser visto por muitos como simpatizante de Chávez. Dizia-se que os tempos que passara nos bairros pobres o tinham levado a aproximar-se à esquerda.

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A história e os seus escritos, porém, revelam um homem que tanto teceu críticas à esquerda como à direita. Se, por um lado, disse que o projeto político iniciado por Hugo Chávez “não se sustenta a si próprio, nem económica, nem política, nem ideologicamente numa política inovadora”, também reconheceu que os elementos da oposição “também não têm um projeto que permita pensar num futuro que não dependa das rendas [do petróleo], que é a única forma se de poder sair, a longo prazo, da situação venezuelana”.

ANDREAS SOLARO/AFP/Getty Images

Políticas à parte, Arturo Sosa é considerado um dos mais completos académicos da Venezuela, com uma carreira académica irrepreensível. Chegou a ser reitor da Universidade Católica de Táchira num período conturbado. A nível eclesiástico também já enfrentou provas duras, algumas das quais semelhantes às de Jorge Mario Bergoglio na Argentina. Os dois foram Superiores provinciais dos respetivos países em tempos políticos adversos: Bergoglio durante a ditadura militar, Sosa na altura do chavismo.

Quando o padre Sosa foi eleito Geral dos jesuítas, os dois conheciam-se mal. Mas embora apenas tivessem estado juntos um par de vezes, o venezuelano conhecia bem o percurso do argentino. Mesmo antes de ser Papa, Bergoglio não era um jesuíta qualquer.

Nos últimos anos, Arturo Sosa foi delegado do padre Geral para as Casas internacionais e as Obras da Companhia de Jesus em Roma. Com isso, tinha a responsabilidade de controlar a formação dos jesuítas e também as casas da Companhia, incluindo a Universidade Gregoriana e a Cúria Geral, em Roma. É lá que vive agora.

Desde que assumiu a liderança da Companhia, estabeleceu uma relação amistosa com o Papa. Falam quando precisam, num ambiente cordial e de grande informalidade. Confrontado com os momentos espinhosos da relação de Bergoglio com a Companhia de Jesus, Arturo Sosa diz que é preciso pôr os acontecimentos em perspetiva e perceber que as tensões fazem parte do percurso.

Numa conversa franca sobre a Companhia e o Pontificado de Francisco, o novo Geral dos jesuítas diz que foi difícil aceitar a eleição de um jesuíta para Papa, ainda para mais sendo latino-americano. Para Sosa, é natural que o Papa enfrente resistências, mas que fará tudo para tornar reais os compromissos assumidos há 50 anos, no Concílio Vaticano II, entre os quais estavam colocar a Igreja ao serviço dos pobres. Quanto às discussões sobre a doutrina, Arturo Sosa é claro: a norma não pode estar acima das pessoas.

Sendo Venezuelano e o Papa Francisco argentino, quando é que se conheceram?
Vi pela primeira vez o padre Bergoglio em 1975, mas nessa altura não o conheci, vi-o de longe. Ele era Provincial da Argentina, na altura da 32ª Congregação Geral dos Jesuítas. Nessa altura, eu estudava Teologia aqui em Roma. Havia uma história que nos ligava de certa maneira. Nesta 32ª Congregação, no tempo do padre Arrupe [então Superior Geral], a Companhia de Jesus reformulou a sua missão em termos muito inovadores, muito pós-conciliares, com a questão do serviço da fé e da promoção da justiça. A preparação da Congregação provocou muita tensão criativa na Companhia. Neste contexto, surgiu um grupo chamado Jesuítas em Fidelidade, que era completamente contrário à linha que o padre Arrupe estava a promover dentro da Companhia. Um dos elementos desse grupo era um jesuíta espanhol, de apelido Puyadas, que estava colocado na província argentina. Na Venezuela, Puyadas provocou uma crise económica, que levou aquela província à falência. Quando eu era criança, o meu pai interessou-se muito por perceber o que se passava. O padre Puyadas foi uma fraude económica, ligado a uma cooperativa chamada Javier, que fez uma quantidade de coisas muito estranhas. A verdade é que o padre Puyadas foi parar à Argentina, passou à clandestinidade e integrou esse grupo chamado Jesuítas em fidelidade.

Quem eram os outros? Havia alguém célebre?
Não, e já estão todos mortos. Bom, o Padre Arrupe recebeu a indicação de que Puyadas vinha para Roma, para tratar de mover influências no Vaticano de maneira a que a Congregação não se encaminhasse para a linha de Arrupe. Então, com essa informação precisa, pediu ao padre Bergoglio, que era o provincial: “Tem de fazer com que o padre Puyadas regresse à Argentina.” Efetivamente, o provincial Bergoglio teve de ir à procura dele.

Onde é que ele estava?
Num convento de religiosas numa zona de Roma. Tinha gente que o apoiava na [Pontifícia Universidade] Gregoriana e no Vaticano, aqui e ali.

Como é que Bergoglio conseguiu mandá-lo embora?
Levou-lhe uma passagem de avião e disse-lhe:
“— Vamos para o aeroporto.”
“— Mas não tenho passaporte.”
“— Vamos tirá-lo.”

Assim?
Assim. Se falarem nisso a Bergoglio, ele conta a história. Falámos recentemente no assunto. Foi um momento muito tenso. E esta foi a minha primeira visão de Bergoglio. Depois fomos os dois à 33ª Congregação Geral. Ele já não era Provincial, mas foi eleito delegado pela província. E eu também fui, era o delegado mais jovem. Tinha 35 anos, acabara de fazer os votos uns meses antes. O momento também era muito tenso porque tinha existido uma tensão muito grande entre Arrupe e o Papa João Paulo II, que acabara de ser eleito. João Paulo II tinha perdido a confiança na Companhia e Arrupe adoeceu, teve um derrame cerebral. O lógico era convocar a eleição de um novo padre Geral, mas o Papa não quis. Nomeou um jesuíta, o padre [Paolo] Dezza, para Superior da Companhia. Há que reconhecer que, depois de muitas voltas e tensões com o Papa, o padre Dezza agiu com grande fidelidade à Companhia e à Igreja e depois convocou uma Congregação para eleger o novo Geral. Foi aí que conheci o padre Bergoglio um pouco mais de perto.

"Há que reconhecer que o Papa Francisco faz as coisas com uma grande simplicidade e transparência. Não é um jogador de xadrez, é um homem que está à procura de uma estratégia para levar a sua Igreja adiante."

O que é que recorda dele?
Ele era uma figura de referência. A Província argentina era importante na América Latina, com muito peso, muitas vocações e uma importante tradição de estudos teológicos e filosóficos. A nossa eleição faz-se através de conversas pessoais e, naturalmente, procuramos alguém com quem nos entendemos melhor. Depois disso, não tive muito mais relação com ele. Até ao final do século XX, na América Latina, no funcionamento [da Companhia], o Norte ficava para um lado, o Sul para outro. O México, a Colômbia e o Equador constituíam uma Assistência, o Perú, a Bolívia, Argentina e por aí abaixo eram outra. Havia muito pouca comunicação entre os jesuítas das duas Assistências. Os do Norte tinham uma relação mais próxima com os da Europa e dos Estados Unidos do que com os jesuítas do Sul. Poucos iam estudar para a Argentina, o Chile ou o Brasil, e [da mesma forma] poucos deles vinham estudar para os países do Norte. Era outra dinâmica, que mudou muito depois dos anos 90, desde que passou a haver uma só Conferência Provincial. Depois, Bergoglio foi nomeado bispo.

Antes disso passou um período difícil com a Companhia.
Não foi [só] ele! É importante não retirar as coisas do contexto. Este foi um momento em que, em toda a parte, havia tensões no seio da Companhia. Não é que este tenha sido um caso especial. Aquele foi um tempo de discernimento — para usar uma palavra de que Bergoglio gosta muito. Foi muito tenso. Em todas as províncias da Companhia houve uma forte tensão para entender o que o Concílio Vaticano II propunha, sendo que a América Latina estava numa situação difícil. Na Argentina, em concreto, havia uma ditadura militar que perseguiu inclusivamente jesuítas e bispos. Não se tratava propriamente de um contexto de serenidade. Bergoglio fez parte deste processo, como fizemos todos. Depois do Concílio Vaticano II reuniu-se a Conferência de Medellín e toda a Igreja latino-americana ficou nesta tensão, deparando-se com resistências, guerras, com estas relações que opunham uma parte à parte. Havia grandes discussões ideológicas e filosóficas sobre teologia, sobre o papel da opção pelos pobres, sobre o que isso significava. Nesse momento, metade dos países da América Latina estavam dominados por ditaduras militares. É nesta História que entram Jorge Bergoglio e uma lista de muito mais pessoas.

No caso de Bergoglio, esta crise com a Companhia corresponde a dois anos muito difíceis para ele.
Claro. Ele foi chamado a tomar decisões muito difíceis enquanto Provincial. Era muito jovem quando chegou ao cargo, porque foi uma época em que muita gente deixou a Companhia.

Havia poucas vocações?
Não, havia vocações, mas muita gente deixou de ser sacerdote, já ordenado, pelas diferenças que surgiram. Uma das responsabilidades de Bergoglio era a de tratar de preservar a Companhia e geraram-se tensões. Na Argentina deste tempo, ainda por cima, houve conflitos políticos muito duros, em que os jesuítas estavam metidos — e não numa única fação. Não foi fácil conviver com isto. Depois de ser Provincial, ele esteve um tempo em Córdoba, e voltou a um ponto muito importante da província argentina, em San Miguel. Depois, nomearam-no bispo de Buenos Aires — também foi algo inusitado, que o bispo auxiliar de Buenos Aires fosse um jesuíta. E o facto de ser Bergoglio tinha o seu significado. Aí desenvolveu um trabalho muito importante.

Mas os jesuítas pediram-lhe que se fosse embora da Cúria dos Jesuítas…
Mais ou menos.

Foi ele que quis ir-se embora? O que dizem os biógrafos é que os superiores lhe perguntaram se lhe parecia bem que um bispo vivesse numa casa de jesuítas… E então, Bergoglio saiu.
Isso para Bergoglio não foi muito fácil de engolir, mas a verdade é que não é comum os bispos jesuítas que existem viverem em comunidades de jesuítas, porque isso é difícil de entender. Quando um jesuíta é ordenado bispo, continua a ser jesuíta, não perde a família, mas deixa de fazer parte da vida habitual da Companhia. Um bispo não está submetido à obediência ao Superior da Companhia, porque é bispo. Tem uma responsabilidade e uma jurisdição e não está submetido à vida comunitária dos jesuítas. As casas da Companhia não são hotéis.

Parece-lhe que Bergoglio se sentiu rejeitado nesta época?
Não… O que é verdade é que na Província argentina havia diferentes opiniões sobre ele e sobre a sua aceitação do episcopado. Uns eram muito favoráveis, outros eram muito contrários. Claro, não era um ambiente muito fácil para ele e para nós.

"Os biógrafos querem tirar conclusões, mas nem Bergoglio rompeu com a Companhia de Jesus durante o seu episcopado, nem a Companhia de Jesus rompeu com Bergoglio. Essa história não é verdade, porque se não seria impossível a situação atual. Ou seja, ele nunca perdeu esta relação."

Como agora aqui em Roma ou pior?
Muito mais tenso. É uma situação muito distinta: o que se passou na província jesuíta não é igual ao que se está a passar em Roma. Aqui, ele está a promover uma Reforma da Igreja que também tem muitas resistências. Não lhe podem dizer para se ir embora do Vaticano — coisa que não lhe desagradaria muito. Ir-se-ia [embora] feliz, como chegou. Está a apelar a que se leve a sério o que foi decidido há 50 anos. O Concílio Vaticano II marcou uma linha que, em termos geométricos, devia ter sido uma reta, mas converteu-se numa espiral. Foi muito difícil fazê-lo avançar, houve grandes resistências a vários níveis, na Cúria do Vaticano e na Igreja. O Papa Francisco leva isso a sério: se é isto que a Igreja quis ser, então vamos ser assim. E com coisas muito fundamentais — a proximidade dos pobres é um princípio do Vaticano II; ocupar-se da criação também faz parte do Evangelho; o tema da misericórdia também está no Evangelho e foi focado no Vaticano II. Ali houve uma intuição tremenda: se lermos os textos que foram escritos em 1964/1965, percebemos que marcam uma mudança de época. Falam de coisas que só se colocaram nos anos 70 ou depois. As mudanças do mundo são de tamanha magnitude que há que vê-las antecipadamente. Então, é isto o que diz Bergoglio. Temos de ter uma atitude que permita entender estas alterações e anunciar o Evangelho, que é o que o Vaticano preconiza. Isto gera problemas nas pessoas que se veem em segurança num mundo que não muda. É uma atitude humanamente compreensível, mas é também a fonte do conservadorismo e do fundamentalismo. É muito mais fácil ter uma verdade estabelecida, do que ter de pensar qual é a posição que devemos tomar num determinado momento. Por isso se diz que quem quer ser redentor, termina crucificado. É assim. É uma via que gera sempre conflito. O que é inovador é ver que esta pessoa está no meio do conflito com uma grande serenidade. É uma serenidade que vem, obviamente, da sua profundidade espiritual. Não se improvisa.

Isso vem daquilo que Bergoglio passou na Argentina?
Já passou muitas coisas, não é a primeira vez que está no meio de uma tormenta. Tem a confiança de sentir que está a ser fiel ao que sente que o Espírito Santo lhe pede. Há que reconhecer que o Papa Francisco faz as coisas com uma grande simplicidade e transparência. Não é um jogador de xadrez, é um homem que está à procura de uma estratégia para levar a sua Igreja adiante.

Não é um Maquiavel…
Eu tenho outra leitura de Maquiavel… (Risos) Mas o Papa não é alguém que está a jogar para conseguir um objetivo escondido e isso provoca reações contrárias de certa parte. Muita gente sente isso e é isso que lhe granjeia a aceitação que tem. As pessoas sentem que estão perante um homem sincero, que fala a partir do seu íntimo.

Desde que Bergoglio chegou a bispo e saiu da casa dos jesuítas, afastou-se da Companhia de Jesus até chegar a Papa.
Bem, não ia meter-se na Companhia outra vez, mas nunca se afastou e também nunca perdeu o contacto com os jesuítas.

Mas também não vinha a esta casa [em Borgho Sancto Spirito, a Cúria Geral dos Jesuítas, em Roma], segundo dizem os biógrafos.
Os biógrafos querem tirar conclusões, mas nem Bergoglio rompeu com a Companhia de Jesus durante o seu episcopado, nem a Companhia de Jesus rompeu com Bergoglio. Essa história não é verdade, porque se não seria impossível a situação atual. Ou seja, ele nunca perdeu esta relação.

Quando chegou a Papa, uma das primeiras coisas que fez foi telefonar ao Superior Geral [padre Nicolás, antecessor de Sosa].
E isso é normal, porque uma coisa é ser bispo, outra é ser bispo de Roma. Quando nomeiam um jesuíta para bispo, põem-no numa situação muito difícil e à Companhia também, porque lhe dão uma missão que não é da Companhia. E a Companhia também fica numa situação muito difícil, porque [aquela pessoa] não é um jesuíta, é um bispo. Então, o normal, com tantos bispos que já houve na Companhia, é que se mantenha uma relação fraterna. Conhecemo-nos, vivemos juntos. Há um respeito muito grande, tanto da Companhia em relação ao que o bispo faz, como do bispo relativamente ao que faz a Companhia. Talvez alguém que esteja de fora o interprete como uma rutura, mas é apenas respeito pela missão, a vocação e a responsabilidade de cada um. O caso do Papa é distinto, porque a Companhia de Jesus está sujeita ao Papa, diretamente. Então, o Papa, seja ele qual for, não pode prescindir dessa relação — seja ele quem for, jesuíta ou não. Esta [questão] foi de certo modo uma fonte de sofrimento para a Companhia devido à relação que existia entre o Papa João Paulo II e Arrupe. Nem Arrupe, nem os jesuítas, entendiam porque é que havia reticências. Houve Papas e padres gerais da Companhia ao longo de mais de 400 anos, uns mais próximos, outros mais afastados, mas a Companhia não pode prescindir do Papa, nem o Papa da Companhia. Então, quando Bergoglio chega a Papa, quando o elegem, obviamente que uma das primeiras coisas que lhe vem à cabeça é pôr-se em contacto com o Geral da Companhia de Jesus. É uma questão de senso comum.

"Um papa jesuíta é uma coisa difícil de engolir para um jesuíta — depois, o facto de ser sul-americano, ainda mais! E a questão de ser uma pessoa com 76 anos ainda mais um pouco, sobretudo quando o Papa que tinha renunciado o fizera, entre outras coisas, pela idade. É legítimo ficar a pensar: “O que é que se passa?” Bem, além disso, era Bergoglio! Não foi um prato fácil de digerir..."

Qual foi a sua reação quando viu que o Papa era jesuíta?
Foi de grande surpresa, claro.

Estava onde?
Em San Cristóbal, na Venezuela. A primeira coisa que surge é que isto não está no horizonte dos jesuítas. Conscientemente, a Companhia de Jesus não aspira nem deseja ter um jesuíta Papa. Mesmo os bispos que existem [vindos da Companhia] são-no por situações muito particulares e muito difíceis, porque na Companhia não há carreira eclesiástica. Um papa jesuíta é uma coisa difícil de engolir para um jesuíta — depois, o facto de ser sul-americano, ainda mais! E a questão de ser uma pessoa com 76 anos ainda mais um pouco, sobretudo quando o Papa que tinha renunciado o fizera, entre outras coisas, pela idade. É legítimo ficar a pensar: “O que é que se passa?” Bem, além disso, era Bergoglio! Não foi um prato fácil de digerir…

Comentou isso com alguém?
Com a comunidade dos jesuítas que lá estava. Depois disse que iria chamar-se Francisco. Que Francisco seria? Não disse qual era, só disse Francisco. A um jesuíta, o primeiro que ocorre é Francisco Xavier, mas também há Francisco de Bórgia, que foi Superior Geral. Mas também havia Francisco de Assis, um franciscano. Eu associava mais Bergoglio a Francisco Xavier, pela imagem que tinha dele. Continuámos à procura de respostas. O que passa é que o mesmo Papa Francisco encantou as pessoas com a sua primeira aparição. A maneira como se dirigiu às pessoas, a partir da varanda da Basílica de São Pedro — aquilo que todos vimos pela televisão — foi um momento em que se romperam muitas imagens daquilo que poderia acontecer. Quando começou a agir, ainda mais. Para nós, jesuítas, o encontro com o Geral foi muito importante.

Porquê?
Por aquilo que lhe disse antes. Era um gesto que todos esperávamos e aconteceu. A relação entre o Papa Francisco e o padre Nicolás era verdadeiramente fraterna. Conheciam-se muito pouco pessoalmente [antes da eleição de Bergoglio], porque Nicolás passou quase toda a vida no Japão.

Falou com o padre Nicolás sobre os encontros com o Papa?
Claro! Foram muito fraternos, muito fraternos. A palavra que define a relação é mesmo fraterno. Depois da eleição, na Congregação, o padre Nicolás esteve em Espanha. Tem dois irmãos que lá vivem e passou por Roma antes de ir para a sua nova comunidade, nas Filipinas. Três dias antes da partida, por coincidência, eu estive com o Papa, numa audiência de comemoração do número 4000 da [revista] Civiltà Cattolica. Comentei com ele:
“— No domingo, vamos despedir-nos do padre Adolfo.”
“ — Ah, eu vou!”
E veio. Veio despedir-se do padre Adolfo e convidou-o para concelebrar a missa com ele em Santa Marta no dia seguinte. No início, disse uma coisa que emocionou muito o padre Nicolás: “Quero oferecer esta missa pelo padre Nicolás, pelas suas intenções e pela sua vida.” Isto é uma expressão de um carinho enorme.

Como reagiu o padre Nicolás?
Não lhe dissemos nada sobre o almoço. Fizemos-lhe surpresa. Quando chegou o Papa, ficou muito contente.

Normalmente, os dois trocavam ideias?
Sim, sim, sim. E de parte a parte. Contava o padre Nicolás que, quando tinha alguma coisa para tratar com o Papa no âmbito do seu cargo, ou quando tinha de lhe dizer alguma coisa, escrevia-lhe e, no dia seguinte ou dois dias depois, o Papa telefonava-lhe.

Escrevia-lhe por carta ou por email?
Por email, para o secretário, que dava a mensagem ao Papa. Dizia: “No dia seguinte, ou daí a dois dias, respondia-me. Telefonava-me.”

Muito prático.
Sim, sim. Bergoglio e o Papa são amigos do telefone. (risos) Ele gosta de falar pelo telefone, resolve muitas coisas assim. Ou então manda papelinhos.

Pequenos e com uma caligrafia muito pequenina?
Sim, sim, sim. Ele tem coisas assim: em dezembro, fui ver a minha mamã, que tem 92 anos. Fui à Venezuela, onde a situação estava — e está — muito complicada. Naquele momento, havia uma mediação política do Vaticano. Mandei uma mensagem ao Papa a dizer que ia à Venezuela ver a minha mãe no Natal, mas que seguramente faria alguma intervenção pública. Perguntei se lhe parecia que havia alguma questão em que devesse insistir ou que devesse evitar, uma vez que as coisas estavam assim. Respondeu-me: “O que mais me preocupa é a situação das pessoas que estão a passar necessidades. Não há alimentos, não há medicamentos. É preciso encontrar uma maneira de resolver isto.” Quando chegou o dia da partida, recebi um bilhete dele com uma imagem da Virgem e um rosário, que dizia: “Isto é para levar à sua mamã.” Ele tem esta maneira de se relacionar com as pessoas.

"Não sei que fama temos nós: às vezes boa, às vezes nem tanto, mas na Companhia de Jesus fala-se com muita liberdade. Ainda que no final a tomada de decisão caiba a alguém, o Superior, o Provincial, o Superior Geral, ou quem tiver essa responsabilidade, durante o processo discute-se e com dureza. Diz-se as coisas com toda a liberdade e também se trata de escutar o outro."

A chegada de um Papa com todas as características que Bergoglio tem, inerentes à sua condição de jesuíta, mudou alguma coisa dentro da Companhia?
O facto de o Papa ser jesuíta deu uma dimensão distinta à espiritualidade da Companhia, porque ele expressa-a com grande clareza, mas pôs a Companhia numa situação de grande responsabilidade em relação à sua própria vida. O Papa veio à Congregação Geral e falou o tempo todo em discernimento. É uma responsabilidade que temos de impôr a nós próprios. É uma tensão que nos obriga a ser mais coerentes com a nossa própria vocação.

O caminho do discernimento não é fácil…
Nada fácil! Mas é o caminho que é o estilo de Jesus no Evangelho. Ele foi um Homem que discerniu. A pedra fundamental da espiritualidade inaciana [de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus] é o discernimento.

Notam-se diferenças no dia-a-dia da Companhia por causa deste aspeto?
Nota-se uma maior necessidade de ser consequente e de estar mas disponível para partilhar esta espiritualidade.

A proximidade dos pobres é algo que a Companhia quer aprofundar?
Sim, mas isto já vem de antes de Bergoglio!

E ficou mais forte?
Sim, sim, está muito claro nos documentos da última Congregação. A Congregação Geral assumiu a imagem dos jesuítas fundadores. Quando São Inácio se juntou aos dez [fundadores] o que lhe ocorreu foi ir à Terra Santa. Reuniram-se em Veneza para apanhar um navio que partia no dia seguinte, mas não puderam ir porque havia uma guerra com os turcos e não existia ligação marítima entre a Europa e a Terra Santa. Neste momento, os dez — pessoas que vinham de situações familiares bastante boas, eram todos universitários, mas nem todos sacerdotes — começaram a viver pobremente e muito próximos dos pobres. Começaram a pensar naquilo que deveriam fazer juntos. A Companhia de Jesus nem sequer existia, nem sequer estava na mente deles. Foi quando decidiram ir a Roma colocar-se à disposição do Papa. Ou seja, era o Papa que lhes podia dizer onde podiam ser úteis. Foi aí que [Santo Inácio] decidiu criar a Companhia de Jesus, com esta imagem de gente bem formada, capaz de ter uma vida intelectual ao nível mais alto da época, que vive pobremente e trabalha como pobres, e faz um ministério entre o povo e que quer discernir em conjunto sobre o que fazer. Foi isto que assumiu a última Congregação para o nosso caminho. O nosso caminho é o do discernimento comum feito junto dos pobres.

Qual foi a grande mudança que Francisco trouxe à Igreja nestes quatro anos?
Esta do discernimento é, provavelmente, a de maior profundidade. A fidelidade ao Evangelho supõe a capacidade de discernir. Foi também esta a forma como Paulo de Tarso abriu a Igreja ao mundo: [o que importa] não é a lei judia, mas a ação de Deus na História, que está aberta a todos. Isto é muito importante. Outra coisa muito forte é a visão da hierarquia da Igreja como serviço. Os bispos são pastores. Estamos ao serviço do povo, não só dos pobres, mas de todos. Os que são ordenados — sacerdotes, bispos — têm de estar ao serviço, essa é a sua missão. E a Igreja é isto: o povo de Deus que é servido por aqueles que são chamados a essa missão, começando pela cabeça, pelo Papa, pelos bispos, os sacerdotes e o resto. Foi isso que que o Vaticano II escreveu na [Constituição Apostólica] Lumen Gentium. Quando a Lumen Gentium descreve a Igreja, primeiro fala do povo e depois da hierarquia. Um prolongamento disto é o resgate da sinodalidade da Igreja. Ou seja, o Papa é o bispo de Roma que, com os outros bispos, tem a responsabilidade de manter a fé da Igreja e anunciar o Evangelho. É esse o sentido da Igreja. Somos nós que estamos encarregados disto, temos de resolver as coisas em conjunto. O sínodo não é uma reunião para nos vermos cara a cara: é o sítio onde os corresponsáveis da Igreja decidem qual é o caminho que querem seguir.

"Se a doutrina fosse uma coisa imóvel, seríamos pedras. A doutrina é uma ajuda e se não ajuda, não há razão para segui-la. Ajuda a fazer o quê? A criar o tipo de relação que Deus nos pede."

O último sínodo [da Família, que decorreu entre 2014 e 2015] foi aguerrido.
É o lugar do discernimento, não é uma assembleia legislativa. É um grupo que se reúne para escutar o Espírito Santo. Não são teólogos que defendem uma doutrina. É escutando o Espírito que o discernimento vai aparecer.

Desde o Sínodo da Família, as diferenças de opinião no seio da Igreja tornaram-se mais visíveis.
Claro, isso é importante. Não pode haver discernimento se não houver liberdade de expressão. Não vimos o Papa tomar medidas disciplinares porque um cardeal ou bispo ou cristão pensam de maneira diferente dele.

Alguns dos seus colaboradores mais próximos têm opiniões que não coincidem com as dele.
Alguns assumiram isso publicamente e não vimos que, por isso, o Papa lhes tenha dito: “Por causa disso, já não és cardeal.” Isto é levar a sério a sinodalidade. Faz parte da experiência e da tradição da Companhia. Não sei que fama temos nós: às vezes boa, às vezes nem tanto, mas na Companhia de Jesus fala-se com muita liberdade. Ainda que no final a tomada de decisão caiba a alguém, o Superior, o Provincial, o Superior Geral, ou quem tiver essa responsabilidade, durante o processo discute-se e com dureza. Diz-se as coisas com toda a liberdade e também se trata de escutar o outro. É isso que nos pede o Espírito nesse momento. É algo que não acontece assim em todas as instituições eclesiásticas. Na Companhia de Jesus não há lugar para o medo, ninguém tem medo do superior. Fala-se com toda a liberdade. O governo da Companhia depende de uma relação pessoal aberta com o Superior. O superior ou o provincial conhece profundamente os indivíduos porque eles se abriram com ele. Por isso, pode tomar algumas decisões que ninguém entende. É como uma mãe em relação a um filho: entende coisas que os outros não percebem. Funcionamos com essa liberdade e depois tomamos decisões. Também criticamos, não ficamos calados porque alguém tomou uma decisão.

A questão do capítulo VIII da Amoris Laetitia levanta-se mais para a Cúria ou para toda a Igreja?
Refere-se a quê em concreto?

À questão da comunhão para os recasados. Ainda que o texto não a defenda explicitamente, há quem entenda que abre a porta a essa hipótese.
O que o texto diz, e que serve para toda a Igreja e para todo o ser humano, é que a norma não está acima das pessoas. E nenhuma norma feita por seres humanos é tão boa que possa abarcar todos os casos possíveis. Ninguém é tão irresponsável que se agarra à norma sem tomar em consideração as circunstâncias particulares de uma pessoa ou de várias pessoas e situações. É isso que diz o texto. Então, como é que se passa de uma coisa à outra? É a isso que se chama discernimento. Isto está tão enraizado no ADN da Companhia de Jesus que os textos da sua Constituição dizem: “Isto tem de se fazer desta maneira ou daquela, MAS” — termina sempre com esta frase — “de acordo com as pessoas, tempos e lugares.”

Então a doutrina não é algo imóvel para todo o sempre…
Se a doutrina fosse uma coisa imóvel, seríamos pedras. A doutrina é uma ajuda e se não ajuda, não há razão para segui-la. Ajuda a fazer o quê? A criar o tipo de relação que Deus nos pede.

"Noutros países, como é o caso de Portugal, onde o Estado retira, por opções ideológicas, os subsídios às escolas católicas, jesuítas e não-jesuítas, a situação torna-se muito difícil. Para manter uma escola, alguém tem de pagar. Se o Estado não contribui... Porque é que deve contribuir o Estado? O Estado vive daquilo que a sociedade paga. Defendi toda a vida o direito de o cidadão escolher a educação que quer."

Falando da sua relação pessoal com o Papa, desde que passou a Geral da Companhia. Encontram-se com regularidade? Falam um com o outro de vez em quando?
Quando faz falta. Quando tenho um assunto que tem a ver com o Papa, não são muitos…

Como por exemplo?
Por exemplo, agora estão a ser feitos os novos estatutos da Rede Mundial de Oração do Papa, que é da responsabilidade da Companhia de Jesus. É preciso falar disso com ele. Este ano é o centenário do Pontifício Instituto Oriental, queremos que o Papa envie uma mensagem especial para eles. Tenho de falar com o Papa sobre isso, não posso falar com mais ninguém. São assuntos que ele tem de resolver. Se houver alguma questão que me parece importante dar-lhe a conhecer… E depois há situações como o aniversário da Civiltà Cattolica, que é uma coisa da Companhia. Também nos encontramos na assembleia dos superiores gerais dos religiosos, a que o Papa assiste. O mesmo se passa ao contrário: se o Papa tem alguma coisa que crê que eu devo conhecer ou que me quer dar a saber, ou pedir opiniões, fá-lo com toda a liberdade.

Há mais vocações na Companhia desde que este Papa foi eleito?
Há quem fale no efeito Francisco, nalgumas zonas, mas não creio que se possa estabelecer uma ligação entre a existência de um Papa jesuíta e o número de vocações da Companhia. Mantém-se mais ou menos a tendência que havia antes do Papa Francisco. Há poucas vocações na Europa e na América Latina, mantêm-se médias, mas tendem a baixar, na América Latina, e subiram nas regiões da Ásia e da África. Mas esta tendência já existia antes de Francisco. Não me alegraria que as vocações da Companhia viessem do facto de haver um Papa jesuíta. Preferia que a Igreja fosse mais viva e tivesse mais vocações de todo o tipo: laicas, de serviço, de sacerdócio. Na Companhia é igual.

Em Portugal, identificamos muito a Companhia com dois importantes colégios situados em Lisboa. Ainda que ali haja outro tipo de alunos, são duas escolas de elite. Até que ponto é missão da Companhia formar estas elites? Faz sentido garantir que, nestes colégios, os alunos da elite se juntem com os outros?
Nós procuramos uma excelência educativa que não é sinónimo de elites sociais. Em qualquer instituição da Companhia de Jesus, seja ela dirigida a que nível for, busca-se a qualidade educativa. Em segundo, a Companhia faz um esforço enorme em todo o mundo para ter escolas onde esteja toda a gente que lá quiser entrar, e não apenas os que podem pagar. E aí levanta-se a grande questão: acabo de regressar da Índia. Há uma grande quantidade de escolas nas zonas tribais da Índia, na América Latina, há um movimento que se chama Fé e Alegria, que tem centenas de escolas em todos os países. Porque é que o Fé e Alegria subsiste na América Latina? Porque os Estados contribuem para que o movimento funcione. Noutros países, como é o caso de Portugal, onde o Estado retira, por opções ideológicas, os subsídios às escolas católicas, jesuítas e não-jesuítas, a situação torna-se muito difícil. Para manter uma escola, alguém tem de pagar. Se o Estado não contribui… Porque é que deve contribuir o Estado? O Estado vive daquilo que a sociedade paga. Defendi toda a vida o direito de o cidadão escolher a educação que quer. Se não posso escolher, então o Estado tem de oferecer opções públicas, onde as pessoas possam escolher. Na América Latina, por sorte, praticamente todos os Estados contribuem para que haja escolas populares nas mãos da Igreja Católica e da Companhia, porque é uma questão de qualidade e há muita gente que procura essas escolas. Na Europa, começa a haver a opção contrária por motivos ideológicos. Quando uma escola depende das propinas próprias, então só pode admitir quem pode pagar e poucos mais. Uma escola que tenha qualidade terá sempre de ser seletiva, mas era bom que a seleção não fosse feita por razões económicas, mas porque as pessoas procuram este tipo de escola, que deve render o suficiente para continuar a funcionar.

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