Segurança

A defesa da democracia, quase histérica, que apareceu ultimamente nos jornais, na televisão e na net, com ou sem pretextos relevantes, significa uma única coisa: que as pessoas sentem o risco cada vez mais próximo de ela acabar. Não se defende um regime que se considera garantido e nem os perigos da “Europa” (a que nunca de facto pertencemos) justificam a universalidade e a veemência da defesa do que já temos prática e constitucionalmente. A questão é outra. É o sentimento geral de que a democracia está em risco. E está em risco porquê? Porque a ditadura atrai o cidadão comum na razão inversa da insegurança. Como sempre acontece nos países pobres, os portugueses põem a segurança acima de qualquer valor. Daí a atracção pelo funcionalismo (inamovível) e a desconfiança do emprego privado (por definição, imprevisível). Mas também, e apesar de tudo, pela ordem tradicional. O indígena, que vive na miséria ou perto dela, precisa de acreditar na estabilidade da família, do emprego, da reforma e da assistência médica; precisa de ver os filhos bem “encaminhados”; e os ladrões na cadeia. Numa palavra, precisa de acreditar na autoridade e hoje basta ligar a televisão para constatar que a autoridade democrática dia a dia se desfaz. O Estado faliu, os banqueiros faliram (ou andam lá perto), o desemprego continua, as criancinhas do 5.º ano de escolaridade vão ser instruídas nas realidades do aborto e da contracepção, o PC e o Bloco proclamam a urgência de tornar Portugal numa espécie de Albânia e o governo vive da mão para a boca. No meio disto, naturalmente, o cidadão treme e, no fundo, começa a pensar que a sua paz de espírito vale um pouco de tirania. Não vale. Mas cada vez mais parece que vale. Salazar não chegou onde chegou, senão por isso. E não lhe custou muito.

Portugal e a Europa

O que escrevo hoje parece contradizer o que escrevi a semana passada. Mas não contradiz. Se a Europa não suportará a instalação em Portugal de uma ditadura de direita ou de esquerda, não está obviamente disposta – como se vê na Hungria – a impedir um regime autoritário, disfarçado com meia dúzia de ornamentos da democracia. Por uma razão muito simples, que a maioria de nós sempre se recusou a reconhecer: Portugal não faz parte da Europa. Se há ainda um sentido em falar de Europa (a não ser como expressão geográfica), só pode ser no sentido de cultura europeia. Mais precisamente a cultura europeia do século XVIII até meados do século XX. Ora Portugal só muito marginalmente participou nessa cultura, que ligava a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Holanda e a Bélgica, parte da Áustria e parte de Itália. Este país periférico e desconhecido não passava de um assunto para livros de viagem. Nada saiu daqui que tivesse uma real influência para além de Badajoz: os melhores copiavam com zelo a França (em vernáculo ou em calão, como se lamentava Eça) e nunca atraíram a atenção de ninguém. Para o alemão ou o inglês medianamente educado, Portugal (fora Ronaldo – que vive em Espanha – e o turismo) é um vácuo: pobre ou rico, oprimido ou livre, não o preocupa, excepto pelo dinheiro que lhe gasta. Está fora da consciência e da história moderna da Europa, como a Bulgária ou a Roménia. Quando o governo e o Presidente da República apregoam os nossos méritos isso não comove uma cultura que existe por si própria e, desde 1919, pela universal influência da cultura americana. E quando os pobres políticos locais resolvem ameaçar com “murros na mesa” ou a “renegociação” da dívida não são considerados mais do que um pequeno incómodo. Sei bem que isto custa a ouvir aos nacionalistas de profissão ou convicção. Mesmo assim, não deixa de ser a verdade.

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