Claro que Portugal pertence ao continente europeu desde que existe. Na extrema da extrema ocidental, a este país chamou Fernando Pessoa o “rosto” com que o continente fita “com olhar esfíngico e fatal”, o Ocidente, – “futuro do passado”. Somos o futuro do passado da Europa. Falar dela e do Portugal europeu para referirmos a UE não representa, como tantos reivindicam, excesso de liberdade semântica à laia de ideologia. Parte metonímica, parte sinédoque (como figuras de estilo) trata-se de facto de uma liberdade, mas de uma liberdade de sentido: Portugal é parte de uma União que é parte de um todo europeu, continental, com um profundo sentido histórico e uma ambiciosa ambição civilizacional.

De Portugal, em muitos tempos pretéritos, fitou a Europa desunida o futuro: os caminhos apontados pelo seu turbulento passado. Desde o dealbar dos tempos (europeus), quando ainda nada parecia claro sobre o porvir do continente que foi berço de cultura – helenista, romana, cristã -, que neste canto do Mundo se moldaram os caminhos do futuro: quando o cristianismo finalmente triunfou sobre a pulsão expansionista do Islão às portas de Viena e nos planos balcânicos, esse umbigo ensanguentado da Europa, não fazia senão seguir os passos antigos da península ibérica, da velha Lusitânia, onde pela primeira vez os fiéis de Cristo começaram a recuperar territórios sobre os “infiéis”; nos tempos gloriosos e terríveis (adjetivo essencial para retratar grandeza e miséria, esplendor e decadência, comuns a toda a história humana) dos Descobrimentos; na afirmação de independência do único monarca europeu capaz de responder à força pela astúcia, deslocando em 1808 a sua corte, e logo o seu reino, para um outro continente (D. João VI, claro); e na constante afirmação de pluricontinentalidade, de um país face ao grande Oceano Atlântico, capaz de conjugar união na Europa com uma secular dimensão transatlântica, pluricontinental, lusíada.

A chegada de Portugal à CEE, foi como que um regresso à plenitude da nossa pertença primordial. Depois da conturbada 1ª república, quando o país era olhado com desdém pelas potências europeias, depois de 48 anos de obscuro Estado Novo, depois de 12 anos de navegação errática na caótica democracia pós-de-Abril – com 2 intervenções do FMI -, Portugal voltou ao seio da Europa através da adesão à CEE a 1 de janeiro de 1986. Há 30 anos.

A primeira Europa: o milagre das rosas

No início, tudo foram rosas. Ou parecia. Portugal, com um problema crónico de acesso a fontes de financiamento e um pequeno mercado interno, deparou-se com recursos substanciais sob a forma de fundos estruturais e um grande mercado, em vias de reforçar a liberalização das trocas através do projeto referido como “objetivo 92” – a completude de mercado interno.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É fácil esquecer as condições do país na primeira metade dos anos 80; ignorar um produto per capita pouco superior a 50% da média dos países da então CEE; uma economia maioritariamente nacionalizada e pouco competitiva, por muitas desvalorizações cambiais que se fizessem (e fizeram); ordenados em atraso na ordem dos centenas de milhares; desemprego elevado; défice e juros altos; uma confrangedora falta de acessibilidades e vias de comunicação (…as filas para o Algarve ou Porto nas velhas “nacionais”); elevada iliteracia, altos níveis de mortalidade infantil. Em suma, um país atrasado e em défice de modernidade.

Em pouco tempo, o afluxo ininterrupto do capital proveniente de fundos estruturais – Portugal recebeu mais de 100 MM de euros entre 1986 e 2015, geradores de investimentos da ordem dos 150 MM – permitiu a infraestruturação intensiva do país; uma infraestruturação talvez excessiva, em redes rodoviárias, por exemplo, em detrimento da educação, reforma do Estado, inovação e investigação, capital humano (mas isso são contas de outro rosário).

A primeira Europa acelerou a convergência. O balanço de Três décadas de Portugal Europeu, livro coordenado por Augusto Mateus e editado pela Fundação Manuel dos Santos, ilustra o país que éramos e o que somos; e mostra a recuperação da economia e sociedade portuguesa entre 1986 e a segunda metade dos anos 90. Recuperado da breve recessão de 1993, Portugal caminhava decididamente para o euro e para se tornar, num prazo então otimisticamente curto, um país do primeiro Mundo, a pedir meças aos mais desenvolvidos da Europa.

A segunda Europa: um passe de mágica

… é a da ilusão e do facilitismo. Um tempo em que a queda abrupta das taxas de juro, pelo efeito combinado da criação do euro e de um novo período expansionista, alimentou novas bolhas, como a do crédito e do imobiliário (uma e outra inextricavelmente ligadas). Até 2007, com a eclosão da crise financeira, as condições de financiamento à economia portuguesa mantiveram-se positivas, convergentes com os nossos parceiros europeus, por força da redução do risco cambial decorrente da união monetária e do reforço da integração financeira.

O crédito fácil, a alimentar em Portugal as imparidades que Pedro Santos Guerreiro denunciou no Expresso desta semana, a corrupção real ou latente (que só tarde veio a ser revelada), os conúbios de toda a ordem, a sensação de impunidade, o poder dos “donos disto tudo” reforçaram-se neste período, que irá “grosso modo” de 1996 a 2007, quando a crise “rebenta”.

Um país com um crescimento débil a partir de 2000 vivia uma festa encomendada de antemão e aproveitava o estertor da ilusão da prosperidade: muito para além do sustentável, endividava-se o Estado, endividavam-se as empresas, endividavam-se os particulares. E a União Europeia, paternalista e descuidada, ia deixando andar.

A terceira Europa: o rei vai nu

A crise financeira internacional revelou a extensão do equívoco: a união monetária europeia tinha pés de barro, que é como quem diz, não fora construída corretamente, para além de que a pressa política de incluir o máximo possível de países levara ao incumprimento sistemático – pré e pós adesão – dos critérios de convergência. Países como a Grécia aderiram ao euro sem verdadeiramente cumprir as regras; e depressa os países do euro recomeçaram a desrespeitá-las, em particular o critério do défice público mas também o do endividamento, sem isso levar às consequências que os Tratados previam.

Outro problema, e significativo, foi o alargamento, sobretudo a leste: em 55 anos os membros da União passaram dos seis originais para 15; em pouco mais de 9 anos, entre 2004 e 2013, passaram a ser 28 os Estados-membros, parte dos quais muito mais pobres do que a média europeia, com significativos défices de desenvolvimento, tornando difícil cumprir o requisito fundamental da convergência entre as economias, as sociedades, regiões e cidadãos europeus.

Finalmente, à dimensão económica e financeira do problema, juntou-se nesta terceira Europa a questão securitária: as ameaças nas fronteiras, o terrorismo, as sucessivas crises dos refugiados (de que estamos a viver sem dúvida a mais significativa), fizeram do processo europeu de integração, aos olhos dos europeus, mais do que a solução, parte do problema.

Conclusão

E contudo, a conclusão não pode ser senão uma: a nossa pertença à UE, por muitas dificuldades e dúvidas sobre o seu futuro, é do interesse estratégico de Portugal; é-o também o euro, moeda de referência do sistema financeiro internacional, desde que corrigidos os aspetos negativos a que fiz referência acima e, desde logo, desde que completada a união bancária e a regulação europeia (cujo reforço que entra hoje em vigor é muito relevante).

Por muito que muitos continuem a defender que estávamos melhor antes, fora da União, ou que seria bom ela acabar para Portugal poder cumprir o seu potencial, a realidade desmente-os. Nem tudo correu como devia, é um facto, levando ao atual sentimento de dissociação entre os europeus e a integração europeia, sentimento também em Portugal cada vez mais visível. Mas entre 1986 e 2013, o país evoluiu; a produtividade passou de 28% da média europeia para 64% em 2013; a inflação elevada – 13% em 1986 – transformou-se numa quase deflação, por entre anos de perda significativa de riqueza; as taxas de juro de longo prazo, dos dois dígitos habituais há 30 anos variam agora em torno dos 5%; os portugueses consomem o dobro do que consumiam em 86; o país internacionalizou-se, com as exportações a passar de 25% para 41% do PIB e o das importações de 27% para 39%. Portugal modernizou-se, os níveis de assistência na saúde (apesar de episódios, recentes, a remeter para um atavismo organizacional e incúria ainda por ultrapassar) tornaram-se civilizados. Somos, finalmente, um país europeu.

E sempre que se pensa em soluções, para além dos apelos simplistas e demagógicos ao abandono da União, é no reforço da integração que se pensa; se atentarmos no discurso público, mas também em muitas da reivindicações e dos desabafos que vamos lendo um pouco por todo o lado, na opinião publicada em jornais ou nas redes sociais, é sempre ou quase de mais Europa que se trata, não do contrário.

Somos europeus por origem, mas também por opção. A Europa a que aderimos há 30 anos, continua a ser a nossa vocação. E é o nosso destino.