O que António Costa fez até aqui não é pouco: em sete meses conseguiu convencer Francisco Assis de que tem na mão um programa credível e de centro, assim como convenceu Manuel Alegre e Ferro Rodrigues de que a sua alternativa é mesmo de esquerda.
A conversão dos fiéis é mesmo possível, e foi obra de um apóstolo: Mário Centeno, o economista do Banco de Portugal, liderou a bissetriz, desenhou um plano, pôs-lhe os números e deixou tudo em livro. Esta sexta-feira falou aos socialistas e arrancou-lhes palmas – mesmo aos desconfiados do seu plano para baixar a TSU, que arriscam não só as pensões, como as contas do Orçamento. Não é fácil de acreditar, mas é um plano coerente. Deu um racional ao coração. E os socialistas precisavam dessa coerência, desse racional, como de pão para a boca.
Mas juntar os socialistas não chega. Para a longa e dura campanha que se avizinha, Costa precisa de explicar bem alguns pontos deste programa. Só deste discurso, ocorrem-me estes:
1. Explicar como se consegue distribuir tanto rendimento por tanta gente sem margem orçamental relevante;
2. Explicar como convencer os empresários a contratar sem termo, quando – como ele próprio reconhece – a sua margem financeira não é grande;
3. Explicar como se aposta ao mesmo tempo nas empresas exportadoras e no renascer de setores como a restauração e a construção – sem que isso signifique um crescimento artificial e/ou um novo desequilíbrio para as contas externas;
4. Explicar como encaixam as novas promessas na Bíblia de Centeno, sem que isso lhe estrague a narrativa (como a nova promessa de descongelar as carreiras e progressões no Estado);
5. Explicar o que acontece se os efeitos no primeiro ano de governo não resultarem, quando todo o seu programa depende desses resultados;
6. Explicar, enfim, porque havemos de acreditar no Excel do PS – se o PS nos disse todo este tempo que o Excel raramente acerta.
Repito: a convenção do PS que aprovou o programa mostrou que Costa já ganhou uma batalha: conseguiu convencer a ala esquerda e a do centro que é possível ter uma alternativa sem ruturas. Conseguiu juntá-los para uma campanha.
Mas agora a batalha de Costa vai ser olhos nos olhos com o país. Já não é dar a Bíblia aos crentes, é vendê-la aos que perderam a fé. É convencer os indecisos e os descontentes de que vale a pena correr o risco. Outra vez. Que as “contas certas” que apresentou não são só uma quadratura do círculo, são uma aposta segura.
À distância do Coliseu dos Recreios, ao som desta versão de “À minha maneira” que lá se ouviu, o discurso de António Costa parece mobilizador – e provavelmente suficiente para vencer. Mas terminado o hino, tal como a letra dos Xutos que fez sua, esse discurso obriga-nos a pensar duas vezes. E pensar duas vezes não é sinal de grande conforto.
P.S. Pensar nisto não é conversa do medo. É conversa de quem já viu cair isto tudo como um castelo de cartas – e de quem não gostou disso nem do que se seguiu. Só isso.