1. Exista ou não acordo na TAP, António Costa garantiu que reverterá a privatização. Ou seja, fá-lo-á custe o que custar. Aos contribuintes, pois estes terão de pagar hoje o que os privados já investiram e terão de pagar no futuro os prejuízos que a TAP não deixará fatalmente de voltar a acumular. A Portugal, que pagará um elevadíssimo preço reputacional junto dos investidores estrangeiros, uma vez que passará a ser um país que não cumpre os contratos que assina. Num tempo de pressão orçamental e de crise no investimento estrangeiro não sei o que será pior.
Razões? Unicamente a crença ideológica de que a companhia aérea deve ter maioria de capital público. Mesmo que isso implique ter a totalidade do capital nas mãos do Estado, pois não se vê como é que privados podem estar interessados em colocar o seu dinheiro numa companhia que não controlam e onde a gestão continuará a estar condicionada por decisões políticas, como esteve nas últimas décadas com as consequências que estão à vista.
Corresponde esta crença ideológica a algum consenso europeu ou mesmo a uma velha tradição do PS? Não, de forma alguma. O consenso europeu é que a ideia das “companhias de bandeira” estatais é uma ideia do passado, razão porque são pouquíssimas as que ainda existem com esse estatuto, sendo que há muitas histórias de verdadeiras catástrofes empresariais e sociais quando os governos não resolveram a tempo as situações (recordo as histórias da Sabena, da Swissair, da Alitália, mais recentemente a da transportada aérea da Estónia, que declarou falência o mês passado). O PS também não foi, no passado, um partido que defendesse intransigentemente uma “TAP de capitais públicos”, pois vários governos socialistas planearam (e tentaram) a sua privatização.
Finalmente, será que existe algum sinal de que o consórcio privado esteja violar o contrato? Sobre isso o governo nada diz. É esse contrato irregular ou escandaloso? Silêncio. Alguma das opções anunciadas pelos novos donos prejudica os interesses dos consumidores portugueses, ou de Portugal, ou do famoso “hub” de Lisboa? Não, que se saiba (a não ser que António Costa também tenha opinião sobre o preço a que devem ser vendidos os bilhetes junto da cauda do avião, e queira alinhar nessa discussão ao lado dos sindicatos da CGTP).
A forma teimosa, arrogante mesmo, com que António Costa proclamou a sua vontade não corresponde a mais nada que não à sua crença, ideológica, de que o Estado deve controlar uma companhia aérea, custe isso o que custar, uma crença ideológica que rompe com a tradição de moderação e pragmatismo do PS, tal como rompe com o seu alinhamento com a orientação das social-democracias europeias. Uma crença ideológica que o aproxima do fanatismo estatista da extrema-esquerda.
2. A determinação do Governo de António Costa de reverter as concessões das empresas de transportes públicos do Porto e de Lisboa insere-se na mesma viragem ideológica em direcção à extrema-esquerda. Tem mesmo facetas incompreensíveis, já que boa parte dos transportes públicos nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto são há muito assegurados por empresas privadas. É isso que se passa na região onde moro, no concelho de Sintra, o segundo maior do país em número de habitantes, onde o transporte público rodoviário é mantido desde 1995 (ou seja, há já 20 anos) por uma empresa privada. É o que se passa em todos os outros concelhos das Grande Lisboa com excepção de Lisboa, onde opera a Carris. Pelo que se pergunta: porque é diferente o concelho de Lisboa (e, a norte, o concelho do Porto)? Porque é que o que funciona bem, há duas décadas, nas áreas metropolitanas (e no resto do país), há-de ser mau para a capital do país ou para a “capital do Norte”?
Só há duas respostas possíveis. Uma é que, mais uma vez, estamos perante um PS que virou ideologicamente à esquerda e regressou aos preconceitos estatistas que levaram à nacionalização, na altura da nossa revolução, de 94 empresas de transporte que depois passaram a integrar uma empresa pública de muito má memória, a Rodoviária Nacional. A outra é que estamos perante um PS rendido aos interesses da CGTP que, graças à influência que tem nas empresas de transportes públicos de Lisboa e do Porto consegue ter um poder de pressão política sem paralelo com o real peso eleitoral do partido que controla os sindicatos dos transportes, o PCP.
3. Felizmente que há quem assuma que opções como algumas que o Governo está a tomar não correspondem a uma avaliação pragmática do que é melhor para o país, antes a uma opção ideológica. Foi o que fez, em entrevista ao Diário Económico, o ministro do Trabalho Vieira da Silva, que reconheceu que a determinação de aumentar rapidamente o salário mínimo é “uma batalha ideológica”. Mais: até acrescentou que é uma “daquelas batalhas em que não há ninguém que tenha razão absoluta”.
Sendo assim, o mínimo que se recomendaria é que, não havendo certezas empíricas, houvesse prudência e moderação. Mas não. De novo o que vemos é um Governo empenhado numa “batalha ideológica” com o radicalismo do “custe o que custar”. E pode custar muito, em desemprego e em competitividade da economia. Não sou eu, “fanático neoliberal de extrema-direita” (para adoptar a linguagem da moda das redes sociais, do lixo das caixas de comentários e dos comentadores sem ideias ou escrúpulos), que o digo. Quem o diz são economistas reconhecidamente alinhados com a esquerda.
Disse-o e escreveu-o o actual ministro das Finanças, Mário Centeno, nomeadamente no seu livro O Trabalho, Uma Visão do Mercado, onde defendeu o contrário do que hoje defende o Governo de que faz parte. Por exemplo: “É necessário que o aumento do salário mínimo não o ponha acima da produtividade do trabalhador.” Ou: “A evidência existente indicia que há um efeito negativo dos aumentos do salário mínimo na variação salarial dos trabalhadores que têm salários imediatamente acima.” Está isso a ser tido em linha de conta? Não, bem pelo contrário, está a ser desconsiderado.
Disse-o também esta semana o Prémio Nobel da Economia Paul Krugman, que, numa conferência em Lisboa, defendeu que “é preciso muito cuidado” porque Portugal não tem moeda própria. O economista que a esquerda mais gosta de citar reconheceu nessa conferência que o aumento do salário mínimo arrisca-se a ser prejudicial à economia portuguesa, pois poderá por em causa a sua competitividade.
Vieira da Silva não ignora, aparentemente, estes problemas, mas fia-se na fé: para ele, aumentar em três anos o salário mínimo quase 20% (mais exactamente 18,8%) “não é arriscar demasiado”. Ou seja, é arriscar, e é arriscar a competitividade da economia e o crescimento do desemprego, mas é arriscar em nome de “uma batalha ideológica”.
E depois ainda dizem que fanáticos são os outros…
4. Há nas primeiras semanas de acção parlamentar da XIV Legislatura, assim como do novo Governo, mais exemplos do mesmo tipo de actuação política movida não por uma avaliação ponderada do que interessa mais ao país, mas por escolhas ideológicas que contrariam as evidências empíricas. Podia citar mais exemplos, mas fico-me por um só: a pressa com que o PS, associado à extrema-esquerda parlamentar, acabou com os exames no 4º ano e com a prova de avaliação de professores.
Porquê? Porque, para o Bloco, os exames no 1º ciclo representam um “regresso ao passado” e, para o PS, porque “desvalorizam a avaliação contínua“. O segundo argumento parece menos ideológico, mas na verdade não é, pois a verdade é que os exames do ensino básico quase não têm impacto nos chumbos (entre 2009 e 2015 só tiveram reflexo em 3% dos alunos), o que mostra como é a avaliação contínua que continua a ser determinante.
Mas o PS foi ainda mais longe, seguindo o Bloco de Esquerda e o PCP na eliminação da Prova de Avaliação dos Professores, um gesto que só se explica pela vontade de entregar na prática o Ministério aos professores (como escreveu Alexandre Homem Cristo). Neste caso o mais significativo é o PS aprovar a eliminação de uma prova que tinha sido um governo PS a introduzir (no tempo de Maria de Lurdes Rodrigues), o que mais uma vez mostra que estamos perante um partido que se radicalizou e que está a mudar de identidade.
5. A deriva ideológica do actual PS não se traduz apenas em medidas que o fazem encostar-se à sua esquerda, medidas que mostram que foi o PS que mudou de lugar político, pois em muitos casos estamos perante escolhas que contrariam a moderação que o PS sempre fez questão de mostrar (pelo menos quando tinha a responsabilidade de governar o país). Essa deriva ideológica também se traduz num desnorte que tem tradução num discurso que perdeu referências centrais e diferenciadoras.
Um bom exemplo disso são as palavras escolhidas por Carlos César para o discurso no jantar de Natal do grupo parlamentar do PS, onde se referiu à utopia como motor da ação política. Trata-se de uma escolha de palavras significativa, pois esquece as lições do século XX e apaga as diferenças entre a tradição da esquerda moderada, que nunca deixou de “procurar mais humanismo, mais igualdade e mais justiça”, mas que tirava esses desígnios do terreno das utopias pois sabia (e devia continuar a saber) que foi por colocar as utopias no centro da acção política que os comunistas justificaram, décadas a fio, os regimes totalitários e todas as suas misérias humanas.
O problema das utopias, sejam elas quais forem, é que acabam sempre a colidir com a liberdade, e quando isso sucede revelam-se um caminho para a servidão. Essa lição do século XX não ficou obsoleta no século XXI, pelo contrário, pois é mais actual do que nunca. Por isso é que inquieta ver os socialistas recuarem ideologicamente a um tempo que se julgava ultrapassado, a misturarem as suas bandeiras com as da esquerda radical (e isso não se passa só em Portugal, veja-se o que se passa com o Partido Trabalhista britânico), tudo no meio de uma confusão ideológica cujo único traço distintivo é a sua radicalização.
Por isso tenham, por favor, algum pudor em falar de radicalismo ideológico: é que não estão mais do que a ver-se ao espelho.
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