Durante um minuto e trinta e nove segundos as palavras sucedem-se: “Filma! Ai! Coitado. Como é que é possível? Eu vou processar aquele gajo. Ele vai bater-lhe. Filma. Ai! Bateu com a cabeça no chão. Ele ‘tá morto ali. Não vale a pena. É uma gaja. Ainda vai levar mais. Agora vai levar o outro.”
No chão, um corpo é espancado. Espezinhado. Entretanto os jovens da geração mais preparada de sempre passavam ao lado, fazendo-se transparentes. Há gente mascarada como a rapariga de cabelo roxo que parece ter desenhado uma cicatriz nas costas quiçá para o Halloween (as feridas na cosmética nunca doem, não é?) Um casal olha e abraça-se como quem se refugia num casulo.
O outro vídeo é mais curto. Não tem lugar em Lisboa mas sim em Coimbra. Não estamos à porta de uma discoteca mas sim na rua de uma zona habitacional.
Também aqui um corpo caído é espezinhado e pontapeado.
Mais uma vez é uma voz de mulher que sobressai no vídeo: ‘Ó pá! Parem com isso. Matam o gajo, pá! Chamem a polícia. Assassinos! Ai! Ó pá! Socorro! Ó seu anormal pára! Saiam daí! Eu ‘tou a filmar tudo. Isto vai já para a polícia. Pelo amor de Deus chamem a polícia. Eu vou lá abaixo. Chama a polícia. Mas não está ali ninguém?”
Entretanto algumas pessoas aproximam-se. Os agressores partem.
Tudo isto aconteceu em Portugal, esta semana. Em ambos os casos temos homens quase em silêncio a assistir e mulheres que comentam, decidem filmar e divulgar (os estudiosos do género sabem explicar isto?)
Note-se que ambos os casos só existem porque os filmes foram feitos e divulgados.
A partir daqui os casos divergem: a agressão de Lisboa mantém-se nos títulos, juntam-se dados, investiga-se e denuncia-se a passividade das autoridades policiais. (Infelizmente ainda não vejo que se questione o estado de estupidificação subjacente àquelas filas que se formam à porta das discotecas com dezenas de pessoas que esperam num misto de ansiedade e submissão que os ditos seguranças lhes aprovem o vestuário e o aspecto para finalmente lhes permitirem a entrada). O estabelecimento onde trabalhavam os agressores foi encerrado e os agressores detidos.
Já o caso de Coimbra desapareceu das notícias e dos agressores também nada se sabe porque estão em parte incerta. Serão irmãos e conhecidos das autoridades graças ao seu passado violento. E mais nada. Porquê? Porque não é só perante a violência e a barbárie que estamos tolhidos pelo medo. Na própria hora de expressarmos a nossa indignação o medo condiciona-nos.
E assim em Lisboa como os agressores estavam no paradigma daqueles de que se pode e agora é mediaticamente imperioso dizer mal – os empresários donos da discoteca, mais os seguranças e respectivas empresas – a sociologia do enquadramento foi às malvas, a psicologia da desculpabilização esfumou-se e as autoridades desdobram-se em diligências, medidas e declarações, a onda de indignação cresce e qualquer intervenção só pode ir no sentido da exigência de uma maior dureza penal.
Já em Coimbra à ausência de empresas e actividades em que se possa fulanizar o odioso da questão junta-se o facto de os agressores serem apresentados como ciganos em vários comentários nas redes sociais e isso torna o sucedido num daqueles temas de que todos fogem não vá dar-se o caso de se acabar a ser acusado de racismo.
Não faço a menor ideia se os agressores de Coimbra são ou não ciganos (aliás, na prática não percebo como se identifica alguém como cigano) mas sei que em Coimbra várias agressões graves lhes têm sido imputadas perante o silêncio generalizado. Um silêncio difícil de quebrar mesmo quando o agredido é alguém com participação na vida da cidade e que resolve dar o seu testemunho, como aconteceu aquando da grave agressão em 2011, a Manuel Rocha, director do Conservatório de Música de Coimbra e membro da Brigada Victor Jara. Manuel Rocha tinha ido à estação de Coimbra-B esperar um amigo quando, segundo então relataram os jornais, “foi espancado sem razão aparente por um grupo de jovens. Manuel Rocha, 48 anos, ficou ferido com gravidade, fracturando uma perna”.
Na língua de pau usada para relatar os casos que contêm referências étnicas recorre-se a termos como jovens para iludir a realidade. Como o próprio Manuel Rocha descreveu no PÚBLICO, em Abril de 2011, foi agredido por ciganos jovens mas também por adultos e crianças. Homens e mulheres: “De repente, eram várias pessoas a bater-me, a pontapear-me. O primeiro pôs as mãos à volta do meu pescoço e tentou estrangular-me – uma sensação esquisita, muito esquisita… Para me proteger virei-me de barriga para baixo. O resto foi o meu amigo que me contou: havia mulheres e crianças a bater-me e foi uma mulher que quebrou a minha perna. Agarrou-a com as duas mãos, torceu-a e quebrou-a: tlac!”
Entretanto as várias pessoas que se encontravam na estação faziam de conta que não viam nada: “Mas que gritassem. Pelo menos, que gritassem.” – vai dizer Manuel Rocha ao PÚBLICO. Claro que não gritaram. Calaram-se pela mesma razão porque vários daqueles que o visitavam no hospital lhe iam contando casos semelhantes ao seu: “Veio um amigo e contou uma história, outro fez uma confidência, depois veio um conhecido e falou-me do assunto, a seguir um colega e até um médico – cada um com um caso novo, uma perspectiva diferente.” Uma razão chamada medo.
Depois dos tempos em que o agressor não era um agressor mas sim uma vítima da sociedade acabámos no grotesco de ser o perfil do agressor a determinar se a vítima, que tem de estar sempre isenta de mácula, pode ou não ser vítima. Afinal é a diferença do perfil do agressor que determina que em Lisboa tenhamos um caso e em Coimbra um facto da semana passada. E em ambas as cidades o telemóvel tornado na testemunha do que oficialmente não existe.
Gostaria de estar errada mas acredito que a reacção teria sido outra se em vez de homens os agredidos fossem cães pois os animais. livres que estão da grelha com que avaliamos a humanidade acabaram a tornar-se o último pretexto para fazermos o que achamos que deve ser feito.
E assim nos mesmos dias em que víamos como (muito particularmente em Lisboa) grupos de pessoas assistiam tolhidas a agressões a outros da sua espécie, era publicada no Observador uma reportagem que dava conta dos excessos de que algumas pessoas são capazes para defender os animais: “O que vamos fazer hoje é um sequestro de um animal. Se chegarmos lá e o dono tiver dado sumiço ao animal, poderemos fazer um sequestro do dono até ele nos contar onde está o animal. “ Atente-se nesta frase: “fazer um sequestro do dono até ele nos contar onde está o animal.” O que é isto? Qual é o limite? Quem o define?
Vivemos num tempo bloqueado entre a anomia daqueles jovens que passavam diante daquele homem a ser espezinhado e o perigosíssimo arrebatamento destes outros que declaram “as nossas ações justificam os fins que pretendemos: o bem-estar animal”.
Quando temos medo de ser o que somos, quando abdicamos dos nossos valores porque tudo é relativo, sobram os animais a lembrar-nos aquilo de que somos capazes. Os humanos esses só servem para ilustrar a nossa impotência.