Temos todos que nos autoproteger, atreveu-se a dizer Jorge Gomes, secretário de Estado da Administração Interna, no auge de mais uma tragédia provocada pelos fogos, numa hora em que florestas, matas, vilas e aldeias ardiam e se contavam os mortos, sem saber ao certo quantos estavam ainda por contar. Não estamos a falar de uma morte qualquer, nem de vítimas de acontecimentos imprevisíveis, muito pelo contrário. Jorge Gomes sabia de certeza o que estava iminente, dado o histórico dos incêndios neste Verão, dadas as conclusões do Relatório da Comissão Técnica Independente que analisou os incêndios de Pedrógão Grande e dados os alertas meteorológicos de calor extremo para o fim de semana, mas perante os acontecimentos não lhe ocorreu mais nada a não ser declarar que nos devemos autoproteger em vez de esperarmos pelos bombeiros.
Queria ver se Jorge Gomes seria capaz de dizer o que disse se a sua própria mãe, o seu pai, a sua avó ou o seu avô (ou todos juntos!) estivessem entre os que morreram. E se a mulher grávida que, em desespero, entrou em contra-mão na autoestrada para tentar escapar às chamas, perdendo a vida, fosse a sua própria mulher? E se o bebé que ficou por nascer fosse o seu próprio filho, será que este homem teria alento para vir dizer que temos que nos autoproteger em vez de ficarmos à espera dos bombeiros e dos aviões de combate aos fogos?
A boutade do secretário de Estado é de tal maneira colossal que ficamos de boca aberta e somos assaltados pelo pavoroso medo de nos sentirmos imediatamente desprotegidos, sozinhos e desnorteados nesta luta desigual. Se este homem vem dizer, no meio de tenebrosas colunas de fumo e fogo que temos que nos desembrulhar e que nos cabe desenrascar uns com os outros, e uns aos outros, sem contar com os efectivos da protecção civil, o que nos está a dizer é: autoprotejam-se porque se estiverem a contar connosco podem morrer à espera. Podemos e morremos.
À hora a que escrevo já estão confirmados 38 mortos. Números que chocam por sabermos que cada uma destas pessoas morreu em condições brutais. Tiveram, porventura, a pior de todas as mortes e aquela que mais nos apavora a todos: morrer queimado. Se somarmos as vítimas do Pedrógão Grande e os que perderam a vida nos fogos deste Verão chegamos a quase 100 pessoas. De todas as idades e origens sociais. Muitos dos que perderam a vida pertenciam à mesma família, o que quer dizer que o luto é ainda mais trágico para estas famílias que choram ao mesmo tempo pai e mãe, ou irmãos e tios, ou primos e avós.
Morrer carbonizado na sua própria casa, a tentar salvar pessoas e bens, ou perder a vida por não ter capacidade para fugir das chamas, são desgraças a que ninguém pode ficar imune. Muito menos os políticos. Será que este homem não sabe que em situação de catástrofe e incêndios todos se entreajudam e todos se tentam autoproteger de morrer, mesmo antes de chegarem os bombeiros e os aviões?
O autismo político de certos políticos é um escândalo. Fazer de conta que não se percebe o que está em causa é tão criminoso como atear fogos. E ficar calado, no silêncio cauteloso e cúmplice em que estão todos aqueles que sustentam a insustentável geringonça é igualmente escandaloso. Onde estão as Catarinas Martins, as irmãs Mortágua, os Jerónimos de Sousa, os Louçãs, os sindicalistas, os reivindicalistas, os seguidistas e todos aqueles que apontam o dedo e fazem de tudo uma questão fracturante? Onde estão todos aqueles que dentro e fora da Assembleia da República gritam por igualdade, justiça e oportunidades? Será que a morte de inocentes por má gestão de serviços, por incompetência humana e por incapacidade de acautelar a tempo novas tragédias semelhantes às de Pedrógão Grande não é matéria que toque a consciência destes cidadãos hiperactivos e nervosos com tudo aquilo que mexe fora da sua esfera política?
Despedir em directo todo um serviço de Protecção Civil declarando-o insuficiente e falível, transferindo poderes e responsabilidades para cidadãos aflitos, sabendo-os reféns das chamas e intoxicados pelo ar irrespirável contaminado de fumo não é leviandade, é loucura. Insanidade pura.
Jorge Gomes acredita que é no fim da linha, entre os mais vulneráveis, que está a solução mágica para o combate aos incêndios. Se não fosse dramático chegava a ser cómico. Nem é precisa muita imaginação para perceber a coisa, basta olhar para as fotografias dos incêndios deste fim de semana, ou ver os vídeos e imagens que foram transmitidos em directo e em diferido para perceber que aquilo que o secretário de Estado propõe já acontece desde a noite dos tempos: o primeiro automatismo dos cidadãos em perigo é protegerem-se. É um kit humano, aliás. Nasce connosco, não carece de ordens nem de decretos ou indicações superiores. Autoprotegemos-nos, para usar a patética terminologia de Gomes, porque trazemos em nós esse kit de sobrevivência.
Ajudamo-nos uns aos outros enquanto não chegam os bombeiros, os aviões e outros reforços, mas não podemos deixar de contar com eles. E de esperar por eles! Até porque nesse combate desigual, insisto, perdemos forças, perdemos activos, perdemos casas, perdemos bens, perdemos animais e, acima de tudo perdemos pessoas. E, sem tudo isto, perdemos fatalmente a esperança.
Mais do que incompreensíveis, há frases verdadeiramente inconcebíveis. Vindas de governantes chegam a ser assustadoras.
Autoprotegermo-nos? Como? Com que meios? Até quando? Fazendo o quê? De quem, afinal?
Parece-me que a única resposta possível a este desafio é óbvia: temos que nos autoproteger, sim, mas destes políticos que nos desertam e nos deixam cada vez mais sozinhos nas nossas aflições.
Jorge Gomes tinha que nos assegurar que todos os meios possíveis e imaginários estarão sempre a caminho ao menor sinal de catástrofe; Constança Urbano tinha que se abster de falar das férias que não teve (para que António Costa as tivesse, como sabemos, para estar na praia enquanto Portugal ardia, Tancos era notícia e populações inteiras viviam no pior dos infernos) e explicar porque é que o Relatório da Comissão Técnica Independente que analisou os incêndios de Pedrógão Grande não serviu para evitar novas tragédias; o próprio António Costa, responsável máximo de tudo isto, tinha que se chegar à frente na primeira hora, solidarizar-se com as vítimas e as suas famílias, pedir desculpas, deixar de sorrir e de acenar à esquerda, arregaçar as mangas e ir para o terreno.
Só depois de apagados todos os fogos e de feitas todas as avaliações poderia ser produzida uma directiva para os cidadãos, ajudando-nos, ensinando-nos, treinando-nos e reforçando em nós as competências que naturalmente temos para nos entreajudar e nos proteger. Não é em cima do acontecimento que esta gente pode vir dizer, por palavras supostamente mais elaboradas, que a partir daqui é o salve-se quem puder e cada um está por si porque este governo não está por todos.
Autoproteja-se a si mesmo enquanto é tempo, senhor secretário de Estado, porque aquilo que os senhores estão a gerar é um perverso sistema de Desprotecção Civil.