“É a direita, é a direita!” segredaram entre si de imediato os grandes analistas da nossa praça acerca da reunião de Praga de que aqui dei conta na semana passada. Com efeito, disseram eles, “quem, além da direita, poderia inaugurar um conferência internacional com ataques à China, a Cuba e à Venezuela, esquecendo o que se passa na Hungria, na Polónia, o Brexit e Trump?”
Muito perspicaz, esta análise. Acontece que um dos raros líderes partidários que falou na conferência de Praga foi Felipe Gonzalez, antigo dirigente histórico do Partido Socialista espanhol. Também falaram Adam Michnik, líder histórico anti-comunista na Polónia e actual líder da oposição de centro-esquerda polaca, e Ken Wollack, presidente do National Democratic Institute, a fundação associada ao partido democrata norte-americano.
Gonzalez, Michnik e Wollack apresentaram-se a si próprios como pertencendo à esquerda democrática. Tratá-los como “da direita” faz lembrar os tempos idos de 1975-1986 entre nós — quando a ala esquerda do partido socialista, em coro com o partido comunista e a extrema-esquerda, acusavam Mário Soares de “lacaio dos americanos e do capitalismo”. Essas acusações eram subscritas pela direita saudosista do salazarismo — que igualmente acusava Soares de “lacaio dos americanos”.
Esses tempos longínquos parecem agora mais próximos quando se vê televisão (um passatempo a que me dedico em doses muito reduzidas). Lá estão em regra uns comentadores — geralmente sem gravata e com a barba por fazer — a falar contra a direita e o capitalismo. Depois aparecem por vezes outros — com o mérito de terem feito a barba e colocado uma gravata — a jurarem a pés juntos que não são de direita e que não defendem o capitalismo, muito menos o [que todos em uníssono designam como] “nacionalismo anti-europeu”.
Não consigo imaginar como o socialista Felipe Gonzalez seria classificado por todos estes ilustres comentadores. Em Praga, ele recordou enfaticamente que a transição à democracia em Espanha só tinha sido possível porque a esquerda e a direita democráticas afirmaram a sua comum defesa da democracia parlamentar, do capitalismo democrático e da identidade nacional espanhola.
Em conjunto, recordou Gonzalez, a esquerda e a direita democráticas declararam que estavam mais próximas entre si do que cada uma delas estava em relação à esquerda revolucionária e à direita contra-revolucionária. Depois, de passagem, condenou o referendo ilegal na Catalunha. Mas não por ser “nacionalista anti-europeu”: porque é contra a Constituição democrática de Espanha — a qual, peço licença para recordar, é um Estado nacional soberano e não uma mera “região da Europa ou da zona euro”.
Um tom semelhante foi adoptado pelo polaco Adam Michnik. O que deve ser condenado no actual governo da Polónia, argumentou ele, não é a defesa da religião católica e do orgulho nacional. A democracia liberal é a favor da liberdade religiosa e funda-se no sentimento nacional — que é a base do auto-governo parlamentar. O que deve ser condenado no actual governo da Polónia são os seus ataques à Constituição e à separação de poderes nela previstos.
Em suma, foi muito peculiar esta reunião em Praga, sob os auspícios do Forum 2000 — inspirado no exemplo e no legado de Vaclav Havel, símbolo do anti-comunismo democrático na Europa central e de Leste. Em vez de ataques tribais entre a esquerda e a direita, assistimos à reafirmação do que une a esquerda e a direita democráticas: a defesa do primado da lei, do Governo representativo que prestas contas ao Parlamento nacional, da economia de mercado e de empresa livre. Em suma, a comum oposição à extrema-esquerda e à extrema-direita.