Sobre as eleições norte-americanas da passada terça-feira, já quase tudo terá sido dito. Mas o fundamental é bastante simples: os eleitores falaram e a sua voz foi ouvida. Afinal, o “sistema” não estava “viciado”. Como gostava de insistir Karl Popper, o “sistema” democrático não dá o governo ao povo — mas claramente permite ao povo mudar de governantes sem violência.
Foi por isso que o presidente eleito falou suavemente e saudou a sua rival derrotada, sublinhando que a nação tem para com ela uma dívida de gratidão pelo seu serviço público. A rival derrotada telefonou-lhe, felicitando-o pela vitória. O presidente cessante recebeu o presidente eleito na Casa Branca e o mesmo sucedeu com as primeiras damas.
É assim que o “sistema” (democrático) funciona: todos aceitam os resultados, mesmo quando muitos não gostam deles. Só nas ditaduras, convém recordar, é que toda a gente é obrigada a gostar dos resultados.
Mas há outro aspecto importante no “sistema” (democrático): nenhuma vitória é uma vitória absoluta de alguém.
Donald Trump não ganhou sozinho. Ganhou com o Partido Republicano que conquistou, em votações separadas, as duas câmaras do Congresso.
Ao Partido Republicano, Donald Trump é aliás um recém-chegado. Se este partido tivesse mantido nas eleições primárias o estatuto dos “superdelegados” que o Partido Democrático ainda mantém, Donald Trump não teria provavelmente sido o candidato republicano. Teria sido simplesmente um candidato independente — como Ross Perot, em 1992, que obteve apenas 18,9% dos votos, ainda assim o melhor resultado de um candidato independente desde 1912.
O Partido Republicano, convém recordar, é o segundo mais antigo partido político do Ocidente, depois do Partido Conservador britânico. E os republicanos, por seu turno, não estão de modo algum unidos em torno das vagas propostas políticas do presidente eleito. Apenas 30 senadores republicanos (dos 54 então existentes) apoiaram a sua candidatura. E apenas 5 por cento dos candidatos estaduais e locais republicanos o apoiaram (contra 70% dos candidatos democratas que apoiaram a candidatura de Hillary Clinton).
O Presidente eleito vai certamente dar-se conta desta realidade. Como empresário experiente, ele por certo terá aprendido a ouvir os sinais do mercado e a tentar acomodá-los. No caso da democracia americana — que foi premeditadamente concebida, com base na tradição constitucional britânica, para não dar o poder absoluto a ninguém — o mercado vai encarregar-se de lhe recordar isso mesmo.
Não há por isso, em meu entender, motivo para todo este alarme que vai por aí.
Em primeiro lugar, não vejo motivo para auto-críticas do chamado “establishment” que era contra Trump: o facto de alguém ganhar eleições não implica que todos os derrotados passem a concordar com ele. Apenas têm de aceitar a derrota e… continuar a criticá-lo, se acharem que ele merece ser criticado. Só nas ditaduras é que a vitória de um candidato implica a unanimidade nacional em torno do vencedor.
Pelo mesmo motivo, em segundo lugar, são descabidos os ataques ao presidente eleito que o descrevem como fascista e que anunciam a iminente conversão da América ao fascismo.
Esses ataques com efeito fazem recordar os ataques que as esquerdas americana e europeia lançaram contra Ronald Reagan, em 1980. Também nessa altura foi dito que o presidente eleito era ignorante, populista e até mesmo fascista. Reagan provou ser um grande presidente. E, com Margaret Thatcher, derrubou pacificamente o comunismo, promovendo uma ordem mundial fundada no comércio livre e inspirada pelo ideal democrático .
É certo que só em “estado de graça” pós-eleitoral (num “sistema” democrático) seria possível comparar Donald Trump com Ronald Reagan. Mas, se o presidente eleito — que não parece particularmente favorável ao comércio livre e à causa democrática no mundo — quisesse ainda assim emular Ronald Reagan, um conselho muito simples deveria ser destacado: “deixe o ‘sistema’ funcionar”.
Ronald Reagan sabiamente gostava de dizer: “parece que o trabalho árduo nunca matou ninguém; mas eu não quero correr riscos desnecessários.” Por isso, ele tinha um horário relativamente leve (nunca perdendo a sesta diária, à semelhança de Churchill), e não se dedicava a detalhes desnecessários. Sobretudo, concentrou-se na escolha de uma equipa governativa de luxo — de Republicanos de longa data — nos quais confiava e delegava.
Se não seguir a sabedoria de Ronald Reagan, é muito expectável que o presidente eleito Donald Trump venha a ter de enfrentar a sabedoria da democracia americana — o tal “sistema” que, afinal, não estava “viciado”.