Vamos imaginar uma hipótese simples. A Catarina convida o Augusto para o seu casamento, avisando-o de que o protocolo lhe pede que vá de fraque. O Augusto aceita mas, no dia do casamento, apresenta-se de havaianas e calções. A Catarina, perplexa, não sabe o que fazer. Deve mandá-lo embora, por violação grosseira das regras e atitude provocatória, arriscando-se a que Augusto arme um escândalo? Ou deve fechar os olhos, deixá-lo entrar, e torná-lo no centro do seu casamento, arriscando-se a que outros convidados, ofendidos, batam com a porta?

O cenário parece irreal mas acaba de se passar na nossa Universidade. E logo numa das suas instituições mais prestigiadas, o Instituto de Ciências Sociais.

Os leitores já imaginarão que me estou a referir ao que se passou, ao que se está a passar, com a revista Análise Social. A equipa editorial, escolhida para um mandato limitado, optou por incluir no último número que tinha sob sua responsabilidade um artigo que em tudo se distancia do objecto da revista e do que foi a sua linha editorial ao longo de décadas. A dissonância entre o espírito e a forma daquela revista e o “ensaio gráfico” que nela se pretendia editar era tão grande como se eu pretendesse editar aqui, no Observador, um “ensaio fotográfico” com fotografias pornográficas explícitas, hard core.

No entanto foi isso mesmo que a equipa editorial da Análise Social, uma revista académica onde são publicados ensaios académicos, pretendeu fazer – e fazer de forma provocatória. Tal como no exemplo do casamento, a provocação criaria sempre um dilema: quem lhe dissesse que não, como disse o director do ICS José Luís Cardoso, seria imediatamente insultado por praticar a censura; quem fizesse vista grossa e deixasse passar, tornar-se-ia cúmplice da transformação de uma revista académica num publicação vulgar, sem critério, semelhante a uma newsmagazine de informação geral.

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Hesitei durante algum tempo sobre se deveria escrever sobre este caso. Tive e tenho bons amigos no Instituto de Ciências Sociais e custa-me assistir ao processo de achincalhamento daquela instituição que um grupo radical tem conduzido, com as cumplicidades mais variadas (lá iremos). Mas achei que não devia consentir no silêncio. Até porque, modéstia à parte, sinto que tenho autoridade para falar do que é ou não é censura. Tive, e ainda tenho se bem que num quadro diferente, responsabilidades editoriais em publicações de grande informação e todos os que trabalharam e trabalham comigo sabem que sempre criei espaços de liberdade: as minhas ideias são as minhas ideias, os outros também podem expor as suas ideias e, sobretudo, notícias são notícias e boas peças jornalísticas são boas peças jornalísticas.

Sei por isso distinguir com grande clareza o que é fazer escolhas editoriais – algo que se faz em qualquer órgão de informação inúmeras vezes por dia – e censurar notícias ou opiniões por serem desconformes ao que pensamos ou a interesses que defendemos. Sei, por exemplo, que recusar a publicação de um artigo por este não cumprir as regras de uma publicação não é censura, é uma escolha legítima que qualquer editor faz corriqueiramente. E tanto é possível recusar um texto por ser demasiado intelectual como por ser demasiado popularucho – são recusas legítimas que nada têm a ver com censura.

O “ensaio” em causa talvez pudesse, se tivesse mais qualidade e mais pertinência, se não se limitasse a reproduzir materiais de propaganda de partidos políticos, mesmo que materiais “modernaços”, ser publicado num jornal ou numa revista generalista – mas seria tão dissonante na Análise Social como uma gravata vermelha num funeral. E este é que é o ponto central, o que desmente qualquer acusação de censura.

Mais: numa revista como a Análise Social os artigos científicos são primeiro avaliados por cientistas sociais que verificam se são pertinentes e têm qualidade, só depois sendo publicados. A recusa de artigos que não têm qualidade suficiente é rotineira. Ora no caso em apreço a equipa editorial tinha torpedeado esse processo de revisão pelos pares – era sua escolha directa, sem qualquer revisão prévia.

Infelizmente a forma de actuação do grupo de provocou esta situação distancia-se radicalmente das regras da Academia – que são as regras da Análise Social – e, também, da regras da decência. A sua agenda é outra: é uma agenda política. Este é um detalhe que não podemos esquecer, porque a provocação não foi obra de brincalhões ou ingénuos – a provocação teve uma motivação ideológica, que os próprios assumiram no comunicado que escreveram depois da revista ter sido suspensa. É lá que se lê, não sou eu que estou a inventar, que aquele “ensaio” pretendia “refletir a frustração popular contra o grande capital e as políticas de austeridade em vigor na União Europeia”. Isto não é um postulado académico, é meio manifesto político e ideológico.

A Universidade, a Academia, é antes do mais um lugar onde se conversa, e para conversar é necessário que exista diversidade, pluralismo, que existam regras e que se respeitem as opiniões alheias. A Academia não tem, não pode ter, um programa “contra o grande capital” – ou contra os sindicatos, ou contra os pobres. Não está em causa o que pensam os académicos, que são cidadãos de pleno direito, está sim em causa que não podem transformar órgãos de produção e reflexão científica em panfletos ideológicos melhor ou pior disfarçados. No entanto há quem não actue assim, e é por isso que este caso é exemplar.

Ao acusarem de censura o director do ICS, o coro dos indignados não está mais do que a exercer uma intolerável coação moral sobre um responsável científico, agitando um papão que acorda todos os nossos fantasmas. Ao agitar a turbamulta das redes sociais e dos profissionais da indignação, visam coagir todos os que não pensam como eles, visam atemorizar quem lhes possa fazer frente e calar quem não queira “chatices”.

(Pequena nota à margem: ao pretender tratar o que se passou na Análise Social como se estivéssemos perante um órgão de informação equiparável aos jornais e revistas regulados em detalhe pela Lei de Imprensa, o professor do ISCTE António Monteiro Cardoso entra por caminhos absurdos e contorcionismos intelectuais impróprios de quem pretende falar de cátedra sobre “censura”. E a Entidade Reguladora da Comunicação Social, ao chamar o director do ICS, não cai apenas no supremo ridículo: prova mais uma vez como é um organismo que, quando não é inútil, é nocivo e instrumentalizável.)

Este tipo de chantagem moral não é novo nem é um exclusivo de Portugal. Pelo menos desde que, em 1987, Alain Bloom escreveu “The Closing of the American Mind” que conhecemos os processos através dos quais os radicias têm vindo a tomar conta da Universidade e a criar um ambiente adverso a todos os que não alinhem pela sua cartilha. Na Universidade, na nossa como em muitas outros da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, passaram a existir limites ao que se pode defender, escrever, pensar, dizer. Passaram a multiplicar-se as “caças às bruxas” que visavam todos os que não alinham com a matilha. Novos polícias do espírito criaram um ambiente intimidatório em inúmeros campus universitários, um ambiente de que o episódio da Análise Social é apenas um exemplo menor.

Como uma desgraça nunca vem só, a esta arrogância moral tem muitas vezes correspondido uma insuportável cobardia intelectual. Há receio de parecer mal, de ficar em minoria, de sair do círculo dos iniciados, de deixar de ser convidado para o circuito das conferências, de começar a ser enjeitado nas revistas científicas controladas pela matilha, e tudo isso leva a que se tenha medo de defender o que se pensa. Ora, como notou Edmund Burke, “para o triunfo do mal só é preciso que os bons homens não façam nada”, e é isso que tem sucedido vezes demais, é isso que pode voltar a suceder também neste episódio.

Não duvidemos: no casamento da Catarina a única escolha seria não deixar o Augusto entrar: ele armaria um escândalo que depressa se esqueceria, mas não roubaria uma festa que não lhe pertencia.