1. A caminho da Páscoa, os cristãos vivem por estes dias os recolhidos momentos de luto que antecedem o domingo da ressurreição. A Páscoa é a principal celebração do ano litúrgico, a mais antiga festa cristã, a data de maior significado da Igreja porque nela se “actualiza” a ressurreição de Jesus. Um mistério cristão que desde há dois mil anos renova a tão, como dizer?, intensa promessa da vida eterna.
Mas como são agora, hoje, ainda mais sombrios e enlutados estes dias a caminho da Páscoa quando pensamos na actual perseguição aos cristãos e no seu desmedido desamparo face à barbárie. Uma onda que se vai desdobrando, crescendo, avançando… até não sabemos onde. Um cerco de inaudita violência, porventura inimaginável há pouco tempo atrás, e nem é preciso abrir um mapa do mundo para observar o rasto dessa violência: o seu eco desapiedado chega-nos de variadas latitudes e longitudes mas em redor delas não há senão uma seca, uma quase cortante indiferença. Não há vozes, nem sinais nem consciência, que cheguem dos “ocidentes”, do mundo civilizado, do poder, dos poderes, e se há, não os vemos. O que vemos sim é o sangue continuar a correr em muitas massacradas geografias onde apesar disso e para além disso, se persiste em continuar a crer e a rezar, a confiar e a esperar.
De um lado, essa mais gelada indiferença, do outro, gente que mantém intacta a esperança e alta a sua coragem. Alta como um direito cipreste a cortar os céus, e interrogo-me aliás sobre este tão perturbador exemplo de fé: não será ele afinal quem emprestará este ano um sentido ainda mais dramaticamente pungente à Via Sacra de Sexta Feira da Paixão? À vigília de Sábado de Aleluia? Ao esplendor reeditado do Domingo da Ressurreição?
Páscoa quer dizer “passagem”. Passagem para a eternidade. Mas quantos desses cristãos humilhados, perseguidos, estropiadas ou escondidos em buracos, não gostariam de poder celebrar a “passagem” no consolo das suas famílias, no convívio aconchegado das suas comunidades, no chão da sua terra, no afecto dos seus amigos, e não vão fazê-lo? E nós sabemos que não vão, porque são hoje presa do inferno do terror, e nós também vimos e testemunhamos que são. Não há disfarce, nem batota, nem fazer conta, há a verdade e nós somos confrontados com ela, todos os dias, no telejornal.
Não tenhamos medo das palavras: vivemos momentos de trevas e não só nesta Semana Maior. Mas, em simultâneo, somos também testemunhas privilegiadas da cintilação que o Papa Francisco faz jorrar hoje sobre a Igreja, ao não se encerrar no conforto rotineiro dos templos mas saindo deles, de sapatos cambados e fato de trabalho, para, de coração escancarado, ir ao encontro do outro. Cintilação e barbárie, luz e trevas? Em simultâneo, no mesmo mundo e à mesma hora? Sim. Mas não é paradoxo, é mais uma vez o mistério a interpelar-nos. De caminho, atirando-nos com o desafio de uma fé que, se possível, esteja à altura do recado desse mistério
2. Há mil maneiras de dar testemunhos de fé, das mais gloriosas às mais recatadas, das mais fecundas às mais silenciosas, das mais densas às mais corriqueiras, das mais recolhidas às mais mediatizadas. Lembrei-me de um (bom) exemplo que junta um elevado grau de empenho na prática da Fé, com o maior recato na sua exibição. Falo de Paulo Miguel Pereira da Silva, administrador da Renova. Na linguagem em voga no nosso mundo empresarial, Paulo Miguel é um “empresário de grande sucesso”, dado o que a empresa que ele gere é capaz de produzir e facturar milhões.
Pois bem: por entre os milhões, as viagens semanais ao estrangeiro, os meetings, as inovações permanentes com que a Renova sempre surpreende e que devem dar trabalho, suspeito que Deus tenha um grande lugar. Não sei se sentado à mesa do Conselho de Administração, mas certamente na vida deste patrão que mais parece um “soissant huitard” de farta e desarrumada cabeleira grisalha e “allure” descontraída. Não que ele me tenha falado de Deus – e a que propósito? Discreto, reservado e solitário como é – o seu “mais que hobby” é o mergulho a sós nas profundezas silenciosas de vários oceanos – nunca o faria. Mas adivinhei-o eu ao chegar-me há semanas às mãos um pequeno livro, “Via Sacra para Crentes e não Crentes” (Paulus Editora), onde Paulo Miguel Pereira da Silva se ocupa da meditação – para crentes – de cada uma das quatorze estações da Via Sacra (cabendo a José Luis Nunes Martins, a mesma reflexão como “não crente” e as fotos a Francisco Gomes).
Não vou resumir porque um diálogo intimo com Deus mesmo que em voz alta não é resumível, nem uma espiritualidade tão densa e maturada como a de Paulo Miguel Pereira da Silva se encaixa em duas linhas. Mas vou recomendar esta leitura… a crentes e a não crentes. Pequena farol abrindo caminho por entre as trevas dos dias.
3. A poesia lava as almas e arreda os medos. Talvez hoje, ela consiga também num breve sopro, num breve relance, domar o mal e amançar os corações inquietos. Aqui deixo, com votos de Boa Páscoa, o português fortissimo do brasileiro Jorge Lima, poeta do outro lado do Atlântico.
POEMA DO CRISTÃO
Porque o sangue de Cristo
jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém.
E, tendo a vida eterna, posso transgredir leis naturais:
a minha passagem é esperada nas estradas,
venho e irei como uma profecia,
sou espontâneo com a intuição e a Fé.
Sou rápido como a resposta do Mestre,
sou inconsútil como a sua túnica,
sou numeroso como a sua Igreja,
tenho os braços abertos como a sua Cruz despedaçada e refeita,
todas as horas, em todas as direções, nos quatro pontos cardeais,
e sobre os ombros A conduzo
através de toda a escuridão do mundo, porque tenho a luz eterna nos olhos.
E tendo a luz eterna nos olhos, sou o maior mágico:
ressuscito na boca dos tigres, sou palhaço, sou alfa e ômega, peixe, cordeiro, comedor de gafanhotos, sou ridículo, sou tentado e perdoado, sou derrubado no chão e glorificado, tenho mantos de púrpura, e de estamenha, sou burríssimo como São Cristóvão, e sapientíssimo como Santo Tomás. E sou louco, louco, inteiramente louco, para sempre, para todos os séculos, louco de Deus, amém!
E, sendo a loucura de Deus, sou a razão das coisas, a ordem e a medida;
sou a balança, a criação, a obediência;
sou o arrependimento, sou a humildade;
sou o autor da paixão e morte de Jesus;
sou a culpa de tudo.
Nada sou.
Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordia!