Ferro Rodrigues, o socialista que António Costa escolheu para colocar à frente do grupo parlamentar, teve ontem uma daquelas prestações que simbolizam todo a arrogância e imobilismo de uma esquerda que se julga moralmente superior aos restantes mortais. De facto, como classificar a sua sugestão de que o Presidente da República só poderia falar de reformas do sistema político se antes fizesse a sua autocrítica? E como avaliar a sua sentença de que em Portugal nunca houve problemas de governabilidade, ele que chegou a líder do PS porque o anterior líder se demitiu por causa do “pântano”? E que dizer de alguém que acha que a crise actual é só uma “crise de confiança” provocada pela situação internacional?

A reacção do novo líder parlamentar do PS ao discurso presidencial no 5 de Outubro é bem o símbolo do que nunca acontecerá: enquanto esta geração de dirigentes socialistas, que se sente dona do regime e a sua única referência, continuar a ter a influência que tem, não haverá em Portugal compromissos. Eles só aceitam rendições. E só aceitam a rendição de quem eles mesmos aprovam, pois não devemos esquecer que António Costa até já se deu ao luxo de dizer que líder queria para o PSD, quando o PSD regressar à oposição.

É preciso entender esta mentalidade para perceber por que razão é e continuará ser muito difícil fazer compromissos em Portugal. Não é o único motivo (já irei aos outros), mas continua a ser um motivo determinante.

Há nesta atitude algo de cultural e algo de herança política. O lado cultural é comum à maior parte da esquerda e radica na ideia de que esta democracia não é a democracia de todos, mas a democracia do seu “25 de Abril” e da sua Constituição. O nosso regime não é visto como um regime aberto onde ideias diferentes disputam a preferência dos eleitores, mas como um regime apenas aberto a quem aceitar um determinado modelo de estado social, inquestionável mesmo quando evidentemente insustentável. E a quem aceitar igualmente que há árbitros do que se pode ou não fazer, a que chamam carinhosamente “pais” – há os “pais” da Constituição, o “pai” do SNS, só não há “pai” da escola pública porque a mais importante lei de bases foi aprovada (por unanimidade) na época de um governo de Cavaco.

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O lado da herança política podemos radicá-lo na I República e nas práticas do partido de Afonso Costa, na forma como ele impôs a sua hegemonia ao definir linhas “intangíveis” que não podiam ser cruzadas – quem duvide que leia, ou releia, “A República Velha”, de Vasco Pulido Valente, e recorde como a lei da Separação do Estado e das Igrejas se transformou na intangível. O consulado de José Sócrates levou estas táticas aos limites, e há no PS muita saudade, assumida ou envergonhada, desses tempos e dessa agressividade do “ou estão comigo, ou estão contra a democracia”.

Mas há mais dois motivos políticos para um compromisso entre os maiores partidos ser tão difícil em Portugal. O primeiro desses motivos é os nossos partidos não terem programas que, de alguma forma, representem sectores diferenciados da sociedade. Querem todos ser partidos das classes médias, dos funcionários públicos, dos pensionistas, dos jovens. Se às vezes dizem que são partidos de trabalhadores, logo a seguir reclamam as suas credenciais como promotores do investimento privado e dos empresários “inovadores”.

O resultado é fácil de verificar: estes partidos vivem de promessas, não vivem de programas. No dia em que fazem compromissos com quem está no poder, deixam de poder fazer promessas. Isso já aconteceu com o PSD, isso acontece sempre com o PS. O facto de, depois de conquistado o poder, fazerem muitas das coisas que antes vilipendiaram parece não os incomodar demasiado, pois contam sempre com a benevolência dos incautos.

Em países como a Alemanha, a Dinamarca ou a Holanda, para citar apenas três exemplos, as diferenças ideológicas entre os partidos de centro-esquerda e os de centro-direita são por vezes mais marcadas do que as existentes entre o nosso PSD e o nosso PS (e poupam-me, por favor, à lengalenga do neoliberalismo do actual PSD, pois só espero para me rir do neoliberalismo de Costa e recordo-me bem de como criticaram o neoliberal Sócrates…). No entanto nesses países é possível fazer compromissos e coligações, com cedências de parte a parte. É isso que em Portugal parece ser impossível de alcançar.

Mas há mais, e esse mais tem a ver com os dilemas que dilaceram a esquerda. Quando António Costa apareceu no I Congresso do Livre, repetiu a ladainha do costume – “A direita facilmente se junta, a esquerda facilmente se divide” – não está a dizer nada de substancial, pois os dilemas da esquerda actual não têm apenas a ver com as heranças da radical separação entre os que lutaram pela democracia e os que lutaram por uma nova ditadura há 40 anos. Têm antes a ver com os que, mesmo a contragosto, aceitam governar em tempos sem sonhos e os que se recusam a gerir sociedades que não são como as que eles idealizaram.

Toda a esquerda tem hoje um mesmo problema: não tem programa para um tempo em que o crescimento económico é baixo, a demografia é um pesadelo e o dinheiro deixou de estar onde costumava estar. Enquanto foi possível ir subindo os impostos, havia dinheiro para o voluntarismo social-democrata. Quando deixou de ser possível aumentar mais os impostos, os empréstimos e a dívida permitiram manter esse voluntarismo, mas sem o entusiasmo de outrora. Quando também esse dinheiro acabou, a esquerda ficou sem forma de aplicar os seus programas, e por toda a Europa a única alternativa que encontrou foram as causas marginais, o que também ajudou a que em muitos países se desligasse das suas bases populares.

Nada disto comove os utópicos de todas as gerações, nem gerações de revolucionários aburguesados no dia-a-dia mas radicalizados no discurso e nas frustrações. É por isso que o problema do PS não é um Livre, ou um Fórum Manifesto, pois o que lá não falta é gente com vontade de se juntar ao PS, como já sucedeu tantas vezes no passado. O seu problema também não são os irredutíveis da extrema-esquerda. O seu problema é que essa esquerda utópica e lunática sempre esteve dentro do PS, sempre complicou a vida ao PS, sempre limitou o pragmatismo dos seus líderes e sempre assustou os seus estrategas, receosos de que esse corpo indistinto de gente “autenticamente de esquerda” se movesse para fora do espaço e do eleitorado do partido, como de resto sucedeu quando Bloco conseguiu atrair uma parte desse eleitorado.

É de tudo isto que se faz a dificuldade de em Portugal se chegar a compromissos que envolvam o PS – até porque o PS nem certos compromissos assume, como nunca assumiu o memorando de entendimento com a troika. É por tudo isso que Cavaco Silva, mesmo estando a discursar nos Paços do Concelho, no fundo esteve a pregar num deserto.

Vamos precisar de um desastre ainda maior do que aquele que vivemos com a quase-bancarrota para alguma coisa mudar. E isto é ser optimista.