É tempo de férias, pelo que decidi fazer uma recomendação de leitura. Levezinha e humorística, que não queremos negrumes a ensombrar a espera entre os mergulhos. Ah, pensa agora o caro leitor, vem aí o livro preferido da série Jeeves e seu empregador Bertie Wooster, de P. G. Wodehouse. Está enganado, caro leitor. Recomendo algo mais hilariante: a última crónica de Boaventura Sousa Santos sobre a Venezuela.
Visto tratar-se de obra seminal – como todas as do eminente académico – vou tomar a liberdade de citar algumas frases, para poder fornecer aos leitores uma amostra da intensa e variada panóplia de emoções (e risotas) que o esperam se ler o texto inteiro, seguidas de uma hermenêutica da minha autoria.
Em boa verdade a crónica de BSS não é só sobre a Venezuela. Além do enlevo pelo excelente regime chavista, o sociólogo de esquerda também delira com aquilo que chama de democracia. Que, desconfiamos, à boa maneira dos estalinistas antes da queda do muro de Belim, tem mais a ver com suprimir a liberdade dos desconchavados cidadãos de decidirem não viver sob um regime proto-comunista do que com eleições. BSS gosta da verdadeira democracia, não da sua corrupção burguesa que implica aquela maçada dos votos e dos contra-poderes.
Por alguma razão que não vislumbro, Boaventura Sousa Santos esqueceu-se de referir a maravilha económica que a família Chavez, benza-os Deus, por meios inteiramente legítimos de recompensa à bondade de tal figura em governar o país, lhe viu acontecer. Ou o ascetismo da família de Maduro. Os enteados do grande líder, certamente numa viagem com grande sacrifício pessoal e totalmente em prol do bem estar dos venezuelanos obrigados às filas de racionamento de comida, hospedaram-se no Ritz de Madrid, fizeram compras nas lojas da Calle Serrano e Ortega Y Gasset, transportaram-se de carro com motorista e, em poucos dias, espatifaram dezenas de milhar de euros. Suponho que estas historietas terão ficado de fora apenas por falta de espaço.
Por mistérios insondáveis, Boaventura também não aludiu à violação de direitos humanos, de que prender opositores políticos pela noite em suas casas pela polícia secreta é só o último episódio. Afinal, se estas mariolices vierem de um governo de esquerda, tal nada retira à democracia do regime que assim se conduz. BSS, inexplicavelmente, nem sequer uma linha dedicou a esse símbolo maior das democracias (piscar o olho) sulamericanas: o fato de treino, que Filipa Guimarães aqui disseca.
Mas houve, claro, caracteres para elencar as maravilhas económicas e sociais conseguidas pelo estratosfericamente bom Chávez. Em todo o caso, o sociólogo de esquerda lá concede que aqui e ali algo corre mal.
‘A morte prematura de Hugo Chávez em 2013 e a queda do preço do petróleo em 2014 causou um abalo profundo nos processos de transformação social então em curso. A liderança carismática de Chávez não tinha sucessor’, escreve. Ficamos sem saber por que razão a queda do preço do petróleo interrompeu o maravilhoso progresso social – daqueles progressos de que fazem parte encerramentos de órgãos de comunicação social, bem entendido. Descobrimos, ainda, que é um problema o líder carismático morrer sem sucessor. Onde já se viu dar oportunidade aos rústicos dos cidadãos elegerem o líder que lhes aprouver? No máximo, apresenta-se o herdeiro e permite-se generosamente que a populaça finja que, em eleições, ratificou a escolha que lhe foi imposta.
‘A situação foi-se deteriorando até que, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional.’ De facto chegámos ao fim da linha numa democracia quando a oposição mais chegada à direita tem a lata de vencer eleições. Gente ruim que não aceita ficar a acenar beatificamente a cada decisão do governo de esquerda, comportamento que qualquer pessoa sensata sabe ser o fim último de uma oposição de direita. E a malta de esquerda até está a ser estupendamente generosa, permitindo desta forma à direita a ilusão de que existe. Linhas à frente, Boaventura Sousa Santos justifica as pacíficas eleições do passado fim de semana com a necessidade de ‘ultrapassar a obstrução da Assembleia Nacional dominada pela oposição’, essa irritante inconveniência.
Mas não pense injustamente o leitor que BSS está desconhecedor da escassez de bens essenciais na Venezuela, ou da inflação galopante ou de mais um ou dois contratempos. Não. O sociólogo refere explicitamente: ‘a confrontação institucional agravou-se e foi progressivamente alastrando para a rua, alimentada também pela grave crise económica e de abastecimentos que entretanto explodiu’. A grave crise económica e a crise de abastecimentos que entretanto explodiu, concluirá o leitor que apenas se informa lendo Boaventura Sousa Santos, foi uma espécie de downburst na economia venezuelana. É que depois de nacionalizarem empresas, ameaçarem capitalistas, imporem preços máximos, imprimirem dinheiro como se não houvesse amanhã, entre muitas outras bestiais decisões socialistas, depois disto ninguém, absolutamente ninguém, que já tenha lido aí meio compêndio de economia previa escassez e crise económica. Como tão experimentada receita para a fome popular, quer dizer, para o sucesso democrático pôde ser tão desvirtuada? Inclino-me para extraterrestres que sabotaram o tecido produtivo venezuelano.
É que os extraterrestres, tal como a comunicação social mundial, são de direita. Boaventura Sousa Santos está escandalizado com os ‘media globais’, que ‘já tomaram partido pela oposição’. Devem ser os mesmos valdevinos que nos anos oitenta vertiam simpatia pelo Solidariedade de Lech Walesa contra o governo estalinista da Polónia. Os media não sabem respeitar a Venezuela e as democracias.