Este último acórdão do Tribunal Constitucional tem uma vantagem sobre os anteriores. É que, ao realizar vários contorcionismos jurídicos e retóricos com o único objectivo de lograr o objectivo de chumbo das normas em discussão, a maioria dos juízes deu oportunidade à minoria dissidente para proclamar alto e bom som a sua radical divergência. Podemos mesmo dizer que estalou o verniz e que, a partir de agora, é mais claro do que nunca que as sentenças do Tribunal não correspondem a uma interpretação consensual da nossa Constituição, antes à interpretação muito particular de um grupo de juízes que, conjunturalmente, está em maioria naquele órgão de soberania.

Mas vamos por partes, que o acórdão merece comentário detalhado.

 

1. São indiscutivelmente fortes algumas das passagens das declarações de voto dos juízes que votaram vencidos em pontos como a redução salarial na Administração Pública ou as alterações ao regime das pensões de sobrevivência. De facto, quando Maria Lúcia Amaral, juíza que também é vice-presidente do Tribunal, escreve que se afasta “radicalmente” da decisão maioritária isso sinaliza que não estamos apenas perante uma diferença de interpretação dos preceitos constitucionais, mas perante um corte mais profundo no que toca à forma como o TC deliberou. E estamos mesmo. Para Maria Lúcia Amaral o que o Tribunal fez foi invadir “um campo que pertencia ao legislador”, tanto mais que mesmo princípios desenvolvidos em anteriores acórdãos foram desrespeitados, sendo que “não foram seguidas na fundamentação exigências básicas”.

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2. Um ponto importante da argumentação de Maria Lúcia Amaral refere-se precisamente à forma como o Tribunal interpreta princípios gerais que integram qualquer Estado de Direito. Estamos a falar de princípios como os da igualdade, da confiança ou da proporcionalidade, princípios que o Tribunal tem invocado amiúde e que exigem muito cuidado, diria mesmo parcimónia, na forma como podem ser utilizados por um tribunal na sua relação com decisões do poder político democrático. Reparemos nesta frase da declaração de voto daquela juíza:

“As normas constitucionais que têm a estrutura de um princípio são, por causa da indeterminação do seu conteúdo, normas de dificílima interpretação. A ‘descoberta’ do sentido destas normas enquanto parâmetros autónomos de vinculação do legislador tem sido portanto feita, gradual e prudencialmente, tanto na Europa quanto na tradição mais antiga norte-americana, em trabalho conjunto da doutrina e da jurisprudência. A razão por que tal sucede é a de evitar saltos imprevisíveis na compreensão do conteúdo destes princípios.”

Esta questão é essencial e tem sido muito pouco discutida ao longo desta saga que já leva mais de dois anos. O que Maria Lúcia Amaral está a dizer é que este tipo de princípios não tem uma leitura cristalina, como sucede com outras normas constitucionais, e que existe toda uma doutrina relativa à forma como estes temas devem ser abordados pelos juízes constitucionais. Por um lado, porque é necessário respeitar a separação de poderes e saber se quando se avalia uma questão como a do respeito pela igualdade, o critério prevalecente – não existindo parâmetros claros, como não existiam nos casos recentes – deve ser o de uma maioria de um pequeno grupo de juízes, ou a maioria existente nos parlamentos legitimados pelo voto popular. Por outro lado, porque, ao intervir em áreas tão sensíveis, os juízes constitucionais devem ter preocupações de coerência, enviando mensagens claras ao poder político. Ora, ainda de acordo com esta declaração de voto, isso não sucedeu:

“Da sua argumentação, não se pode extrair qualquer critério material percetível que confira para o futuro uma bússola orientadora acerca dos limites (e do conteúdo) da sua própria jurisprudência”.

 

3. A incoerência argumentativa da maioria do Constitucional foi sublinhada por outro dos juízes dissidentes, Pedro Machete. Ele notou, por exemplo, que o Tribunal, ao não estabelecer “qualquer critério jurídico que permita ao legislador saber quando é que afinal, para o Tribunal, o valor mínimo salvaguardado será suficiente [nas prestações de doença e desemprego]”, deixando isso a um processo casuístico de “tentativa/erro”, cria um relação malsã com o poder político. “É o que acontece quando o Tribunal deixa de rever as decisões do legislador à luz de parâmetros normativos de controlo, e passa a reexaminar o seu mérito, eliminando-as sempre que discorde das escolhas que nelas são plasmadas”, conclui Pedro Machete.

Por outras palavras, estas minhas: a incoerência detectada entre os acórdãos, a ausência de critérios claros, da tal “bússola”, acaba por ser uma característica estruturante desta maioria de juízes. Eles decidem mais depressa em função das suas inclinações políticas ou pessoais do que de critérios jurídicos objectivos. Agem, no fundo, de forma discricionária e que só é previsível porque já se sabe que, pelo menos enquanto existir esta maioria política, eles estarão contra. Sempre contra.

 

4. A gravidade desta decisão, e das anteriores sobre o mesmo tema, é que ela baseia-se sempre numa espécie de dissonância cognitiva. Para a maioria dos juízes só existe uma espécie de sacrifícios: os que são determinados directamente em sede de Orçamento do Estado. O que se passa fora desse perímetro, no resto do país, no resto da economia, não entra nas suas equações. É por isso que insistem em centrar a sua avaliação no “grau do sacrifício adicionalmente imposto aos trabalhadores do setor público no confronto com aquele que é exigido dos demais titulares de rendimentos”.

Na óptica dos juízes só há dois tipos de sacrifício comparáveis: os que resultam da diminuição de salários ou prestações sociais e os que resultam do aumento da carga fiscal. Para eles o mundo termina na fronteira daquilo que o Estado determina directamente. Assim é-lhes indiferente neste acórdão, como foi em acórdãos anteriores, que o principal preço pago pelos portugueses nestes anos de crise tenha sido o desemprego, de longe o principal drama social com que Portugal se confronta. Também lhes é indiferente o que se tem passado no sector privado, onde tem sido notória a existência de reduções salariais muito significativas. Já aqui me referi ao tema e não vou repetir argumentos.

Mas há mesmo assim no acórdão passagens que são bem reveladoras desse autismo: é quando os juízes elaboram longamente sobre o regime das horas extraordinárias na Administração Pública (para provarem que os funcionários do Estado estão a ser muito sacrificados) e ignoram por completo que idênticas restrições foram adoptadas no sector privado. O seu dogma é o dogma, errado, erradíssimo, de que as únicas vítimas do ajustamento têm sido os funcionários do Estado e os pensionistas. Se isto não é ver o mundo a partir do seu umbigo, então não sei o que é.

 

5. A cereja em cima do bolo deste acórdão é esta frase lapidar: “medidas de incidência universal – como são as de caracter tributário – oferecem melhores garantias de fugir, à partida, a uma censura decorrente da aplicação do principio da igualdade”. Ou seja, o Tribunal assume, preto no branco, que prefere aumentos de impostos a reduções da despesa com incidência nos custos da Administração Pública. Não há aqui enorme novidade – isso já tinha sido claro há um ano, aquando do anterior chumbo de cortes salariais acompanhado pelo aprovação de uma CES com taxas que, em casos extremos, podem ser quase extorcionárias. A novidade é a franqueza.

Naturalmente que os juízes têm o direito de, como cidadãos, preferirem viver num país com uma carga fiscal ainda maior mas que pague salários, muitas vezes imoderados, a todos os seus funcionários públicos. Mas, como juízes, não é essa opinião que vale, ou que devia valer. O que devia valer era a Constituição, e nela isso não está dito, ou previsto, em nenhum ponto.

Nos últimos dois anos os juízes têm combatido de forma denodada todos os esforços para reduzir a despesa pública – e aceite todas as subidas do lado da receita. Os juízes impediram reduções nos salários dos funcionários públicos, e impediram também que eles possam um dia ser despedidos. Não é possível imaginar como algum dia se reformará o Estado ou, mais modestamente, se realizará a consolidação orçamental, no quadro destas deliberações. Mas isso, aparentemente não preocupa a maioria dos juízes do Palácio Ratton.

Basta pensar no seguinte: só existe uma referência ao Tratado Orçamental a que Portugal está vinculado, e não é no corpo do acórdão, é na declaração de voto da juíza Fátima Mata-Mouros. O que é um sinal claro de que os juízes não de limitaram a ignorar o país que existe fora do Estado. Na verdade, eles ignoram o próprio país, o seu tempo e a sua circunstância.